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Proc. n.º 966/98
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, de 24 de Janeiro de
1997, foi julgada parcialmente procedente a acção declarativa com processo sumário que A e mulher (ora recorridos), intentaram contra B e mulher (ora recorrentes), no âmbito da qual pediam, designadamente, (a) a condenação dos Réus a reconhecerem que os autores são legítimos e exclusivos donos de um prédio rústico dos autores (identificado nos autos); (b) a condenação dos Réus a não transitarem pelo referido prédio, nem por qualquer modo violarem o seu direito de propriedade. No que se refere ao pedido referido em (b), ponderou aquele Tribunal:
'(...) No entanto, e apesar de os réus (sic) [autores] não verem proceder o pedido de condenação dos réus a não transitarem pelo prédio dos autores, nem por qualquer modo violarem o direito de propriedade dos autores sobre esse mesmo prédio, por se não ter provado que os mesmos assim agiam, julgamos dever tecer algumas considerações sobre a matéria da excepção peremptória invocada pelos autores
(sic) [réus] contra tal pedido. Tal é a da existência de um caminho público que atravessa, entre outros, o prédio dos autores a que se reporta estes autos.
(...) Como se sabe não existe unanimidade na doutrina e jurisprudência sobre a caracterização dos caminhos públicos. Segundo uma orientação consideram-se caminhos públicos os caminhos sempre que estejam no uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais (...). Segundo outra, porém, além desses requisitos exige ainda que tais caminhos tenham sido administrados pelo Estado ou outra pessoa de direito público e se encontrem sob a sua jurisdição (...). O Supremo Tribunal de Justiça, por Assento de 19.04.89, in DR, 1ª série, pág.
2162, de 2.06.1989, veio consagrar a primeira das orientações apontadas, postulando que são públicos os caminhos que estão no uso directo e imediato do público.
À luz destes ensinamentos, é óbvia a dominialidade pública do caminho que atravessa o prédio dos autores em apreço nestes autos, face às respostas positivas aos quesitos 15º a 27º. Por outro lado, falecem em absoluto as argumentações dos autores no que toca à classificação de tal espaço físico como atravessadouro. Pelo que não é lícito aos autores impedirem quem quer que seja use tal caminho que atravessa o seu prédio, pois que não podem apropriar-se daquilo que não lhes pertence, por pertencer ao domínio público(...).'
2. Inconformados com esta decisão os Autores apelaram para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1 – Os ora apelantes são donos do prédio identificado na alínea A da Especificação.
2 – Tal prédio confina a sul com estrada, outrora caminho.
3 – Pelo prédio dos autores transitam os réus e outras pessoas a pé, de bicicleta, de motorizada, com veículos de tracção animal e tractores, para encurtarem o percurso entre os lugares de Casais Matos e Pousos.
4 – Trata-se de atalho ou atravessadouro, pois o leito do mesmo caminho é pertencente aos prédios dos particulares que atravessa e destina-se a encurtar o percurso a efectuar entre os lugares de Casais Matos e Pousos.
5 - Tal atalho ou atravessadouro não se dirige a fonte ou ponte de manifesta utilidade pública.
6 – Neste sentido o acórdão do STJ de 10 de Novembro de 1993 – CJ/STJ, 93, II,
135.
7 – Foram violados os art.s 1305º, 1383º e 1384º do CC e Assento 19/04/89'.
3. O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 21 de Outubro de 1997, julgou procedente a apelação e, em consequência, condenou os réus/apelados a não transitarem pelo prédio dos autores e a não violarem por qualquer modo o direito de propriedade destes. Escudou-se para tanto, designadamente, na seguinte fundamentação:
'(...) A questão a dirimir é a qualificação da via em causa: se como caminho – tese dos recorridos sufragada pela douta sentença – se como atravessadouro – tese dos recorrentes.
(...) A propriedade dos respectivos leitos não é pressuposto mas antes efeito da qualificação como caminho ou como atravessadouro: sendo caminho público o leito
é dominial; sendo mero atravessadouro o leito é parte integrante dos prédios particulares atravessados.
(...) A via, acesso ou caminho em causa esteve e está no uso público imemorial como passagem, a pé e de carro (resposta ao quesito 22º/ponto 16 do quadro dos factos). Foi até há cerca de 10/14 anos o único caminho de ligação directa entre as povoações de Casais de Matos e Pousos (resposta ao quesito 27º/ponto 21). Desde então o público dispõe de uma outra via de comunicação directa entre as referidas povoações, permanecendo o primitivo caminho como atalho daquela nova via, encurtando o respectivo percurso (resposta ao quesito 31º/ponto 22). Enquanto foi a única via de comunicação directa entre as localidades, tal caminho revestia-se de um «índice evidente de utilidade pública», ao mesmo tempo que correspondia a um «interesse colectivo relevante», sendo, por isso, um caminho público originado pelo uso directo, imediato e imemorial do público. Com a abertura do novo caminho há cerca de 10/14 anos, a satisfação desse interesse colectivo transferiu-se para esta nova via e a primitiva passou a ser um mero atalho daquela. Esta utilidade de encurtamento de percurso não é relevante para justificar as restrições inerentes à dominialidade pública, sendo própria dos atravessadouros. Assim, é de qualificar como atravessadouro a passagem em causa, o qual tem de considerar-se abolido (...)'.
4. Deste acórdão, pretenderam os agora recorrentes interpor um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento na alegada violação da jurisprudência uniformizada por Assento de 19 de Abril de 1989, o qual, não tendo sido considerado admissível pelo Conselheiro Relator, com o fundamento invocado, foi objecto de despacho em que se concluiu pelo não conhecimento do objecto do recurso. Requereram então os ora recorrentes, 'nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 700º do C.P.C.' que sobre a matéria do despacho recaísse um acórdão, o que veio a acontecer com o acórdão de fls. 272. Esse acórdão, confirmando 'a legalidade da decisão do despacho reclamado, de não admissibilidade do recurso interposto e consequente não conhecimento do seu objecto', manteve o despacho reclamado. Na sequência deste último acórdão, foi interposto (ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70º da LTC), o presente recurso para o Tribunal Constitucional. Segundo os recorrentes, 'vem o presente recurso para o T.C. interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls..., ou se assim se não entender, o que só por mera cautela e sem conceder se aduz, do não menos douto acórdão do S.T.J. de fls..., ou caso também assim se não entenda, do igualmente douto despacho mantido por este último aresto'. Pretendem os recorrentes ver apreciada, nos termos do respectivo requerimento de interposição, 'a inconstitucionalidade material da norma do art. 1383º do Cód. Civil, na interpretação que lhe foi dada pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls..., isto é, na interpretação segundo a qual se um caminho público, bem do domínio público, passar a ser usado para encurtar um percurso por haver sido aberta outra via pública, perde automaticamente a dominialidade pública, devendo considerar-se abolido e propriedade privada, por passar a constituir um atravessadouro'. Entendem os recorrentes que 'a citada norma, assim interpretada e aplicada, viola, nomeadamente, o disposto nos artigos 2º,
3º, n.ºs 2 e 3, 9º, al. b), 62º, n.º 1, 65º, n.º 4, 84º, n.º 1, al. f) e n.º 2,
108º, 11º, n.º 1, 202º, n.ºs 1 e 2, 204º e 235º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa. Reconhecem ainda os recorrentes que só suscitaram a questão de constitucionalidade já depois de proferida a decisão recorrida, concretamente nas alegações do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que não foi admitido, mas alegam que 'só o não foi antes: a) por apenas na resposta à contestação, num processo que não admite tréplica, ter sido aventada pelos autores, ora recorridos, a hipótese de a via em questão ser um atravessadouro; b) e, fundamentalmente, por a questão sub-judice nunca ter sido, até à notificação do douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, a de decidir se um caminho público poderá considerar-se abolido e propriedade privada, constituindo um mero atravessadouro, nos termos do disposto no art. 1383º do C. Civ., por haver sido aberto um outro caminho público há um dia, um ano ou dez anos, passando aquele a ser utilizado para encurtar distância; a questão sub-judice era tão só a de saber se a via em causa nos autos deveria ser qualificada como atravessadouro ou como caminho público; ou seja, a decisão contida no douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra foi inesperada e inédita, pelo que só após a mesma se pôde suscitar a questão de inconstitucionalidade'.
5. O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator no Supremo Tribunal de Justiça nos seguintes termos: 'Admito o recurso, com efeito meramente devolutivo, interposto do acórdão de fls. 272, para o Tribunal Constitucional
(artigo 78º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro', tendo este despacho sido notificado às partes.
6. Já no Tribunal Constitucional foram os recorrentes notificados para alegar, o que fizeram, tendo apresentado, designadamente, as seguintes conclusões:
'(...)
6ª - Como decorre do seu conteúdo, o douto aresto da R.C. entendeu e decidiu que pelo facto de actualmente as pessoas passarem por essa via «para encurtarem o seu trajecto entre os lugares de Casais de Matos e de Pousos», a mesma deixou de ser um caminho público, como era até há cerca de 10/14 anos, para passar a ser um atravessadouro nos termos e com os efeitos previstos no art. 1383º do C.C., assim estando extinto.
7ª - Ora, o simples facto de se edificar, entre as mesma povoações, outro ou outros caminhos públicos, estradas, ips., ics., auto-estradas, vias de metropolitano, linhas de caminho de ferro, etc., passando o (ou os) primitivo(s) caminho(s) público(s) a ser utilizado(s) para encurtar a distância, não retira esta(s) via(s) do conceito uniformizado no dito e douto Assento, desafectando-a(s) automaticamente do domínio público e transmitindo-a(s) ipso iuri para a propriedade privada (?...).
8ª - O que a R.C. fez foi integrar no conceito de atravessadouro previsto na citada norma do art. 1383º do C.C. um caminho público – bem do domínio público
-, só por o mesmo estar actualmente a ser utilizado nos termos em que o são os atravessadouros, para assim o declarar extinto ao abrigo desse preceito e o considerar parte integrante de um prédio que é propriedade privada dos ora recorridos.
9ª - Com esta interpretação, segundo a qual se um caminho público, bem do domínio público, passar a ser usado para encurtar um percurso, por haver sido aberta outra via pública, perde automaticamente a dominialidade pública, devendo considerar-se abolido e propriedade privada, por passar a constituir um atravessadouro, a citada norma do art. 1383º do C.C., padece de inconstitucionalidade material.
10ª - A não se entender desse modo, permitir-se-ia, pura e simplesmente, a privatização pelo Poder Judicial de bens do domínio público das autarquias locais, para mais sem qualquer contrapartida.
11ª - Com esta interpretação referida, a norma em causa viola, pois, entre outros, o sacro princípio da separação de poderes, consagrado nos art.s 2º e
111º da C.R.P.
13ª (sic)- Além desse preceitos constitucionais, tal norma, com a dita interpretação, contraria igualmente o disposto, entre outros, nos artigos 3º,
9º, al. b), 84º, n.º 1, al. f) e n.º 2, 108º, 202º, nºs 1 e 2, 235º e 238º, todos da CRP.
14ª - O presente recurso foi apresentado ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art.
70º da Lei n.º 28/82, de 15/11, na redacção dada pela Lei n.º 85/89, de 7/9, tendo a inconstitucionalidade referida sido suscitada nas alegações do sobredito recurso interposto para o S.T.J., nomeadamente nas respectivas conclusões 20ª a
23ª.
15ª - E só o não foi antes em virtude de, por um lado, apenas na resposta à contestação, num processo que não admite tréplica, ter sido aventada pelos autores, ora recorridos, a hipótese de a via em questão ser um atravessadouro.
16ª - E, por outro lado (motivo essencial), por a questão sub-judice nas instâncias nunca ter sido, até à notificação do douto acórdão da R.C., a de decidir se um caminho público poderia considerar-se abolido e propriedade privada, constituindo um mero atravessadouro, nos termos do disposto no art.
1383º do C.C., por haver sido aberto um outro caminho público há um dia, um ano ou dez anos, passando aquele a ser utilizado para encurtar distância.
17ª - Assim, nunca tendo a referida interpretação do art. 1383º do C.C. sido aventada nos autos, até à notificação do douto acórdão da R.C., não havendo notícia dessa interpretação em qualquer obra doutrinária ou decisão jurisprudencial e sendo a mesma ... estranha, só pode concluir-se que tal interpretação é inédita e não poderia ser esperada, não sendo, portanto, previsível para os recorrentes que viesse a ser perfilhada pela R.C.'.
7. Contra-alegaram os recorridos, tendo concluído da seguinte forma:
'a) Este Venerando Tribunal não deve tomar conhecimento do presente recurso, atento o facto da questão da inconstitucionalidade não ter sido deduzida de modo a que o Tribunal Recorrido estivesse obrigado a dela conhecer; b) Mesmo que se entenda que Este Venerando Tribunal está obrigado a dela conhecer, não pode o mesmo merecer provimento, pois os Recorrentes partem de factores conclusivos, qual seja a existência de um caminho público; c) Quando o que está em causa é a qualificação do mesmo como caminho ou atravessadouro; d) O Tribunal da Relação de Coimbra decidiu correctamente tendo em atenção a interpretação restritiva do Assento de 19 de Abril de 1989; e) Não foi violada qualquer norma constitucional; f) nem a interpretação efectuada pelo douto acórdão da Relação de Coimbra violou qualquer norma constitucional; g) Não foi violada qualquer norma constitucional, antes e só foi correctamente interpretada a lei'.
8. Notificados para se pronunciarem sobre a questão prévia suscitada pelos recorridos os recorrentes responderam através do requerimento de fls. 300 a 302, em que concluem:
'1ª - A admissibilidade do presente recurso encontra-se plenamente justificada nas alegações, particularmente nas respectivas conclusões 14ª a 17ª, ambas inclusive, pelo que aqui se dão as mesmas por integralmente reproduzidas para todos os legais efeitos.
2ª - A revista solicitada ao STJ foi interposta ao abrigo do disposto no n.º 6 do art. 678º do CPC, e quando ainda não se encontrava em vigor o DL n.º 13-A/98, tendo os recorrentes, para tal, invocado a divergência entre o douto aresto da RC e o não menos douto assento de 19/4/89.
3ª - Os recorrentes esgotaram a hierarquia dos tribunais comuns, seguindo os meios processuais que a lei lhes permitia e de acordo com a sua opinião.
4ª - Não tendo a revista sido rejeitada por erro processual, sequer por a causa carecer de valor, mas tão só por o STJ haver entendido que inexistia divergência entre ambos os arestos supra citados'. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação.
9. Questão prévia. Da admissibilidade do recurso. Cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do objecto do recurso, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76º, n.º 3, da LTC).
9.1. Com efeito, o recurso previsto na al. b), do n.º 1, do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, cabe 'das decisões dos tribunais (...) que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo', o que implica que o recurso seja interposto apenas de decisões judiciais que apliquem norma ou normas jurídicas cuja questão de inconstitucionalidade o recorrente haja suscitado durante o processo. É necessário, assim, que a decisão judicial recorrida tenha resolvido, ao menos implicitamente, uma questão de inconstitucionalidade. Além disso, porém, tal recurso pressupõe, designadamente, que a decisão recorrida tenha efectivamente aplicado no julgamento do caso, como ratio decidendi, a norma cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada. Ora, como é por demais evidente, tal não aconteceu nos presentes autos, em relação ao recurso interposto para o Tribunal Constitucional e que foi admitido no Supremo Tribunal de Justiça. Referem os recorrentes, no requerimento de interposição do recurso, que pretendem ver apreciada 'a inconstitucionalidade material da norma do art. 1383º do Cód. Civil, na interpretação que lhe foi dada pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls...,'. A verdade, porém, é que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de que o próprio Supremo Tribunal de Justiça admitiu o recurso, manifestamente não aplicou esse preceito. Com efeito, tal acórdão de fls. 272, confirmando a legalidade da decisão de não admissibilidade do recurso interposto do acórdão da Relação de Coimbra e consequente não conhecimento do seu objecto, limitou-se a manter o despacho reclamado, por considerar, como refere, por remissão para os fundamentos do despacho de fls. 262/263, que não estava preenchida a previsão do n.º 6 do artigo 678º do Código de Processo Civil. Dessa forma, torna-se evidente que não pode conhecer-se do objecto do recurso de constitucionalidade, interposto pelos recorrentes ao abrigo da alínea b), do n.º
1, do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional e admitido no Supremo Tribunal de Justiça, por não estarem preenchidos os seus pressupostos legais de admissibilidade.
9.2. Como parece ressaltar do processo, os recorrentes terão, porventura, pretendido interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra. A ser assim – a discussão da questão nas alegações para isso aponta – deveriam tê-lo feito em requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida, pois a ele compete apreciar a admissão do respectivo recurso (artigo 76º, n.º1, da Lei 28/82). Mas, ainda que assim tivesse acontecido e que um tal recurso tivesse sido admitido, sempre se dirá que não teriam conseguido o seu desiderato. Com efeito, o recurso previsto na alínea b), do n.º 1, do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pressupõe, efectivamente, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma jurídica que pretende ver apreciada, constituindo, desde há muito, jurisprudência unânime, constante e uniforme neste Tribunal que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo quando tal se faz em tempo de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão para resolver e, consequentemente, de a poder e dever decidir. Tal implica, em suma, que a questão de constitucionalidade seja suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita; ou seja: em regra, antes da prolação da decisão recorrida (veja-se, entre muitos nesse sentido, os Acórdãos n.ºs 62/85 e 232/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., p. 497 e 27º vol., p. 1129, respectivamente). Este Tribunal tem, todavia, admitido, nomeadamente em casos excepcionais e anómalos, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de o fazer antes ou em que não fosse exigível que o tivesse feito, que a questão da constitucionalidade seja suscitada depois de proferida a decisão recorrida. É esta última hipótese factual que os recorrentes referem que se encontraria retratada nos autos. Os recorrentes reconhecem que só suscitaram a questão de constitucionalidade que pretenderiam ver apreciada já depois de proferida a decisão recorrida, concretamente nas alegações do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que não foi admitido. Sustentam, porém, que não tiveram oportunidade processual de o fazer antes, porquanto, 'a questão sub judice nunca ter[ia] sido, até à notificação do douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, a de decidir se um caminho público poderá considerar-se abolido e propriedade privada, constituindo um mero atravessadouro, nos termos do art. 1383º do C.Civ., por haver sido aberto um outro caminho publico há um dia, um ano ou dez anos, passando aquele a ser utilizado para encurtar distância; a questão sub judice era tão só a de saber se a via em causa nos autos deveria ser qualificada nos autos como atravessadouro ou como caminho público; ou seja, a decisão contida no douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra foi inesperada e inédita, pelo que só após a mesma se pôde suscitar a questão de inconstitucionalidade'. Porém, não lhes assistiria razão. Na verdade, compulsados os autos, verifica-se que o que vinha sendo discutido, desde sempre, era a questão de saber se a via em causa deveria ser qualificada como um caminho público (conforme defendiam recorrentes) ou como um atravessadouro (consoante sustentavam os ora recorridos). Ora, foi precisamente essa questão que foi decidida pelo acórdão da Relação de Coimbra. Nesse sentido pode ler-se na decisão recorrida, logo a abrir a fundamentação 'De Direito': 'A questão a dirimir é a qualificação da via em causa: se como caminho - tese dos recorridos sufragada pela douta sentença - se como atravessadouro - tese dos recorrentes'. Referem, porém, os recorrentes que a decisão surpresa estaria não tanto na qualificação da via como atravessadouro, mas no facto de se ter admitido que a mesma, até uma determinada altura (há cerca de 10/14 anos), pudesse ter tido a natureza de caminho público (por ser até então o único caminho a permitir uma ligação directa entre duas povoações), passando, depois, a assumir a natureza de mero atravessadouro (por ter entretanto sido construída uma outra via a ligar directamente aquelas povoações, servindo o caminho em causa, desde então, apenas para encurtar distância). Também aqui, contudo, lhes não assistiria razão. Com efeito, a lógica subjacente a uma decisão que faça depender (e, portanto, variar) a qualificação jurídica de uma via, que atravessa uma propriedade privada, como caminho público ou como atravessadouro, em função do índice de utilidade pública da mesma ou do grau ou relevância dos interesses colectivos que é apta a satisfazer, é pressuposta pela forma como tradicionalmente se tem feito - na doutrina e na jurisprudência (citada, aliás, na decisão do Tribunal da Relação de Coimbra de que teriam pretendido interpor recurso) - a distinção entre caminhos públicos e atravessadouros. Por outras palavras: a utilização de um critério normativo que ligue a qualificação da via em causa ao índice de utilidade pública da mesma, não pode, manifestamente, ser encarada como decisão surpresa, em termos de permitir excepcionar a regra de que a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada antes de proferida a decisão recorrida. E isto independentemente de se vir a apreciar se, no caso concreto, poderia considerar-se efectivamente questionado pelos recorrentes um critério normativo ou, ao invés, apenas a própria decisão de qualificar a via em causa como atravessadouro. Ora, como este Tribunal tem afirmado repetidamente, recai sobre as partes o ónus da análise das diversas possibilidades interpretativas susceptíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão e da utilização das necessárias precauções, de modo a poderem, em conformidade com a orientação processual considerada mais adequada, salvaguardar a defesa dos seus direitos (cfr., nesse sentido, entre muitos outros, o acórdão n.º 479/89, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., p. 149). Assim, ainda que o recurso interposto e admitido tivesse sido do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, não tendo os requerentes suscitado a questão da inconstitucionalidade durante o processo e não se verificando uma das hipóteses, excepcionais, em que o Tribunal tem admitido que essa questão seja suscitada depois de proferida a decisão recorrida, não poderia, de acordo com a jurisprudência antes expressa, que mantém inteira validade, conhecer-se do seu objecto. III - Decisão Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 8 unidades de conta. Lisboa, 14 de Fevereiro de 2003 Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida