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Processo n.º 416/02
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional, I. Relatório Por sentença de 26 de Abril de 2002, o Tribunal Judicial da Comarca de Fronteira decidiu recusar a aplicação dos artigos 17º, nº 1, alínea f), e 37º, n.ºs 1 e 2 do Regulamento sobre Organização e Funcionamento do Mercado Municipal de Alter do Chão, por violação do disposto no artigo 112º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa. Todas estas normas tinham sido invocadas na decisão de 14 de Janeiro de 2002 do Presidente da Câmara Municipal de Alter do Chão, que puniu B com a coima de €12,47, por não ter obedecido às ordens do 'Auxiliar de Serviços Gerais em serviço no Mercado Municipal, nem do Fiscal Municipal Especialista, no sentido de respeitar a deliberação do Executivo Municipal de quatro de Abril de dois mil e um' – embora a norma do n.º 2 do artigo 37º do dito Regulamento, que previa diversas sanções acessórias, não tenha sido aplicada na decisão. Tendo o arguido deduzido impugnação judicial, o Tribunal determinou a sua notificação e a do Ministério Público para se oporem, querendo, à decisão do recurso por simples despacho, tal como previsto no n.º 2 do artigo 64º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, e que fosse notificada a Câmara Municipal de Alter do Chão para 'juntar cópia do Regulamento sobre a Organização e Funcionamento do Mercado Municipal e referência da sua publicação'. Perante a remessa do dito Regulamento, em proposta – antecedida do seguinte aviso: 'Aviso n.º 7137/99 (2ª Série) - AP. - Nos termos do artigo 118º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro, submete-se à opinião pública, para recolha de sugestões, a proposta de Regulamento sobre Organização e Funcionamento do Mercado Municipal' –, publicada no Apêndice n.º 132 do Diário da República, de 18 de Outubro de 1999, com o citado aviso, e acompanhados do Aviso nº 498/2000 (2ª Série), publicado no Apêndice n.º 13 do Diário da República, II Série, de 25 de Janeiro de 2000 (do seguinte teor: 'Pelo presente torna-se público que a Assembleia Municipal de Alter do Chão, no uso das competências que lhe são conferidas pela alínea a) do n.º 2 do artigo 53º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, aprovou, na sua sessão ordinária de 17 de Dezembro de 1999, decorrido que foi o período de inquérito público, o Regulamento sobre Organização e Funcionamento do Mercado Municipal, sem quaisquer alterações à sua versão original.'), o Tribunal determinou que o Ministério Público, a Câmara Municipal de Alter do Chão e o recorrente se pronunciassem, querendo, sobre a eventual incompatibilidade formal de tal Regulamento com o disposto no n.º 8 do artigo 112º da Constituição. O Ministério Público e o recorrente pugnaram pela inconstitucionalidade do Regulamento sob apreciação, enquanto que o Presidente da Câmara defendeu a sua conformidade com a Lei Fundamental. Como se disse, o Juiz do Tribunal da Comarca de Fronteira adoptou a primeira posição, considerando, designadamente que:
'no Regulamento sobre a Organização e Funcionamento do Mercado Municipal de Alter do Chão não consta qualquer indicação de onde se extraia, directa ou indirectamente, implícita ou explicitamente, qual a lei definidora da competência do órgão que emanou tal Regulamento e, bem assim, qual a lei que habilitaria a emissão de normas com o conteúdo das que estão em causa - ou seja, a definição de determinados comportamentos como ilícitos contra-ordenacionais.' Depois de considerar que no aviso n.º 7137/99, publicado com a proposta de Regulamento, se fazia apenas referência às exigências 'de natureza procedimental que devam ser observadas aquando da adopção de normas regulamentares por certas entidades', acrescentava, citando vária jurisprudência constitucional, que a referência à alínea a) do n.º 2 do artigo 53º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, constante do aviso n.º 498/2000 era insuficiente, pois que
'se ficou claro, com a indicação de tal norma, que a Assembleia Municipal de Alter do Chão tinha poderes para aprovar posturas e regulamentares (competência subjectiva), não foi, sequer minimamente (ou implicitamente) [identificada] a norma legal que atribuísse competência à Assembleia Municipal de Alter do Chão para editar as normas respeitantes à matéria que regulamentou (competência objectiva).'
2. O Ministério Público veio recorrer desta decisão, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, tendo nas alegações produzidas neste Tribunal concluído da seguinte forma:
'1. O princípio da primariedade ou precedência da lei sobre o regulamento implica que todo e qualquer diploma regulamentar deva conter citação da respectiva lei habilitante, de modo a facilitar aos destinatários da norma a fácil e efectiva percepção das normas legais que suportam tal regulamento.
2. Tratando-se de regulamentos autónomos, editados pelas autarquias locais no exercício das suas atribuições próprias, tal citação deverá permitir a identificação das normas que atribuem competência subjectiva e objectiva para a emissão da norma regulamentar.
3. Satisfaz, de modo minimamente adequado, a referida exigência constitucional a invocação, em regulamento autónomo editado pela autarquia, da norma da lei das autarquias locais que atribui à assembleia municipal competência para a edição de posturas e regulamentos - naturalmente conexionadas com as genéricas atribuições de tais entes públicos.
4. No caso dos autos, incidindo a norma regulamentar sobre a disciplina da utilização de bens públicos municipais, especificando as obrigações dos respectivos concessionários e ocupantes, é patente e notória a conexão de tal norma com as atribuições dos municípios, mostrando que a assembleia municipal não desbordou das suas competências legais.
5. Termos em que deverá proceder o presente recurso.' Por sua vez, o arguido concluiu assim a sua resposta àquelas alegações:
'I. A posição assumida pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto, nas suas doutas Alegações, é uma posição isolada perante a doutrina e perante a jurisprudência deste Altíssimo Tribunal. II. O ‘Regulamento sobre a Organização e Funcionamento do Mercado Municipal de Alter do Chão’, sofre de inconstitucionalidade formal, na medida em que não indica expressamente a lei que tem como objectivo regular. III. Viola o disposto no n.º 8 do art. 112º da Constituição da República Portuguesa. IV. Ao contrário do defendido pelo Ministério Público, não deve vigorar um
‘critério funcionalmente adequado.’ V. O que a Lei Fundamental pretende garantir, com o dever de citação da lei habilitante, é a subordinação do regulamento à lei. VI. No Diário da República, em que o Regulamento foi aprovado, nada consta no sentido de indicar a lei que o citado Regulamento visa regular. VII. O ‘Regulamento do Mercado Municipal de Alter do Chão’ é omisso no que tange
à indicação expressa da lei que visa regulamentar. VIII. O Regulamento em apreço não indica, implicitamente sequer, a lei ao abrigo da qual foi emitida. IX. No que tange à matéria do regulamento em apreço (organização e funcionamento dos mercados municipais) existe expressa determinação legal sobre este assunto: o Decreto-Lei n.º 340/82, de 25 de Agosto. X. Os Regulamentos que não respeitam a imposição feita pelo art. 112º, n.º 8 C.R.P. são constitucionalmente ilegítimos. XI. Esta é a jurisprudência defendida por este Tribunal Constitucional. XII. Por todo o exposto, deve ser julgado inconstitucional, por violação do n.º
8 do art. 112º C.R.P., o ‘Regulamento sobre a Organização e Funcionamento do Mercado Municipal de Alter do Chão’ '. Cumpre decidir. II. Fundamentos
3. De entre a já vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a obrigação de os regulamentos citarem, em termos bastantes, a sua lei habilitante, importa reter o precedente mais próximo do caso dos presentes autos. E o precedente mais próximo - tanto no tempo (já que foi decidido dois meses e meio depois de juntas as contra-alegações a que se fez referência), como no modo (já que, sendo recorrente e recorrido os mesmos, as conclusões das alegações do Ministério Público eram, tirando um inciso na penúltima, rigorosamente iguais, e, das doze conclusões do recorrido, só duas diferiam – se se descontarem as referências aos diferentes regulamentos em causa) – é, sem dúvida, o do Acórdão n.º 394/02, publicado no Diário da República de 29 de Novembro de 2002. Estava aí em causa uma coima de €3 aplicada ao arguido, por violação da alínea a) do artigo 94º do Código de Posturas Municipais de Alter do Chão, sendo que este fora divulgado por um edital onde se referia ter sido 'cumprido o que está estabelecido na alínea a) do n.º 2, do artigo 39º do D.L. 100/84, de 29 de Março', sem outras referências à lei habilitante. E o que este Tribunal teve de decidir então foi se tal referência era 'dotada de suficiência para os efeitos do que se consagra no n.º 7 do artigo 115º da Constituição na versão decorrente da Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro'. Mantendo-se o preceito inalterável no actual n.º 8 do artigo 112º, resultante da revisão constitucional de 1997, o juízo então obtido é, do ponto de vista do parâmetro, inteiramente transponível para o caso dos presentes autos (do que se trata de apurar agora é da equivalência do juízo sob o ponto de vista da relação entre as normas regulamentares e as leis habilitantes). Escreveu-se então: 'No Decreto-Lei n.º 100/84 – cfr. alínea a) do n.º 2 do seu art. 39º – prescreve-se que é da competência da assembleia municipal a aprovação de posturas e regulamentos. De acordo com tal prescrição, torna-se desde logo límpido que, no caso da postura em causa, da menção constante do edital que a tornou pública e, desta arte, a deu a conhecer ao universo a que se destinava, se retira inequivocamente qual fosse a competência subjectiva do órgão dotado de poderes para a respectiva emissão, ou seja, que esse órgão era a assembleia municipal. Mas, porque, a par da indicação do órgão de onde emana a norma regulamentar, o citado dispositivo constitucional impõe ainda a indicação do poder facultado a tal órgão para a edição de normas com o conteúdo das sub iudicio, mister é que se saiba se da aludida se pode retirar sem grandes equivocidades que aquele poder estava, concretamente, cometido à assembleia municipal em causa, ou seja, qual a competência objectiva para editar as normas respeitantes à matéria que regulamentou.' E, depois de fazer apelo às normas dos artigos 1º, 2º e 30º do Decreto-Lei n.º
100/84, concluia-se que
'Neste contexto, é de fácil apreensão a ideia de que as assembleias municipais, sendo um órgão do município – cfr. art. 2º do mencionado diploma –, visam a prossecução dos interesses próprios das autarquias, competindo-lhes, nomeadamente, proceder à administração dos bens próprios sob a sua jurisdição.
(...) Ora, a norma questionada (...) tem como fim implícito a regulamentação de matérias que se situam no âmbito da sua competência legal, uma vez que estabeleceu o uso e destino a dar para a conservação, manutenção e fruição de determinados bens pertencentes ao domínio público da autarquia, desta arte se vislumbrando o objectivo determinante que presidiu a esta específica actividade regulamentar na matéria.'
4. Tendo isto em conta – e o que se dirá a seguir –, há que concluir que a similitude entre o caso que então se decidiu e o que ora está em apreciação – já indiciada pela semelhança das conclusões das alegações dos intervenientes processuais, num e noutro caso – é grande, não obstante serem diferentes os regulamentos em causa, serem diferentes as normas habilitantes e serem diferentes os parâmetros constitucionais invocados. De facto, já se viu que a renumeração do n.º 7 do artigo 115º da Constituição
(passando a n.º 8 do artigo 112º da Constituição) não lhe alterou o sentido. Por outro lado, a norma mencionada no edital n.º 498/2000, referente ao Regulamento sobre a Organização e Funcionamento do Mercado Municipal de Alter do Chão, que aqui está em causa, é idêntica à norma mencionada no edital n.º 23/85, referente ao Código de Posturas Municipais de Alter do Chão, que esteve sob apreciação naquele processo – enquanto esta norma, a da alínea a) do n.º 2 do artigo 39º do Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março, dispunha que 'Compete ainda à assembleia municipal, sob proposta ou pedido de autorização da câmara: a) Aprovar posturas e regulamentos', a que está aqui em causa, a da alínea a) do n.º 2 do artigo 53º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro (antes da alteração introduzida pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de Janeiro, que é a que ora importa), dispunha que 'Compete à assembleia municipal, em matéria regulamentar e de organização e funcionamento, sob proposta da câmara: a) Aprovar posturas e regulamentos'. Por último, embora os regulamentos autónomos sejam diversos num e noutro caso, e embora sejam diferentes também as normas implicadas nas condenações em cada um deles, a verdade é que, como se escreveu no citado Acórdão n.º 394/02, também aqui a regulamentação em causa 'é, de modo inequívoco, enquadrável no poder regulamentar próprio das autarquias – e, assim, da assembleia municipal, enquanto seu órgão –, sendo, pois, expressão da autonomia normativa local.'
5. Como escreveu nas suas alegações neste Tribunal o Ministério Público (aliás, no que diz respeito ao segundo parágrafo a citar, reproduzindo o que já escrevera nas suas alegações no caso de que resultou o Acórdão n.º 394/02, onde o trecho é citado):
'no caso dos autos, é evidente que a norma citada revela plenamente a
‘competência subjectiva’ para a emissão do regulamento, já que a defere, de modo explícito, à assembleia municipal. No que respeita à competência objectiva, ela decorre, bem vistas as coisas, da ampla legitimação dos municípios para editarem regulamentos autónomos sobre toda e qualquer matéria situada no âmbito das suas atribuições e competências legais, exercendo, por esta via, o poder regulamentar autónomo que a própria Lei Fundamental lhes outorga.'
É que, como se salientou também naquele acórdão (citando Gomes Canotilho e Vital Moreira),
'o núcleo da autonomia local consiste no direito e na capacidade efectiva de as autarquias locais regularem e gerirem, nos termos da lei, sob sua responsabilidade, e no interesse das populações, os assuntos que lhe estão confiados.' E assim sendo, a existência de um diploma específico, atribuindo aos municípios competências em matéria de mercados municipais (o Decreto-Lei n.º 340/82, de 25 de Agosto) seria, sobretudo, relevante como limite negativo das competências das autarquias (enquanto norma especial que se entenda dever prevalecer sobre a genérica atribuição de competências resultante da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, como, antes, do Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março), mas não seria decisiva como atributiva da competência objectiva que a Assembleia Municipal de Alter do Chão exerceu ao aprovar o Regulamento sobre Organização e Funcionamento do Mercado Municipal, como, aliás, não seria decisiva para fundar a obrigatoriedade de cumprimento da norma regulamentar violada (o n.º 1 do artigo
17º: 'Todos os concessionários e ocupantes ficam obrigados a: (...) f) Respeitar os funcionários municipais e outros agentes da fiscalização, acatando as suas ordens quando em serviço;'), ou a previsão da norma sancionatória de tal comportamento (o n.º 1 do artigo 37º: 'As infracções às disposições deste Regulamento constituem contra-ordenação e serão punidas com a coima fixada entre s 2 000$ e 100 000$ e entre 10 000$ e 200 000$, consoante seja pessoa singular ou colectiva.'). Pode, pois, concluir-se como no Acórdão n.º 394/02, mutatis mutandis:
'que a menção ínsita no [aviso n.º 498/2000] deve considerar-se suficiente para definir com clareza, quer a competência objectiva, quer a subjectiva, para a emissão da Postura em causa, desta sorte se satisfazendo a exigência constitucional constante do [n.º 8 do artigo 112º da Constituição].'
III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se: a) Não julgar inconstitucionais os artigos 17º, n.º 1, alínea f), e 37º, n.º 1 do Regulamento sobre Organização e Funcionamento do Mercado Municipal de Alter do Chão; b) Em consequência, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em harmonia com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 12 de Fevereiro de 2003 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário Torres Benjamim Rodrigues Luís Nunes de Almeida