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Proc. nº 35/03 Acórdão nº 103/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A deduziu reclamação, ao abrigo do disposto no artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho do Relator que, no Supremo Tribunal Militar, não admitiu o recurso que pretendia interpor para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido pelo mesmo Supremo Tribunal Militar, através do qual se decidira não conhecer do recurso por si interposto de despacho anteriormente proferido pelo Chefe do Estado Maior da Força Aérea.
2. Resulta dos autos que:
2.1. Instaurado e instruído processo disciplinar ao arguido A, Tenente Coronel da Força Aérea, foi este punido com a pena de três dias de detenção por decisão do Comandante da BA5, de 27 de Dezembro de 2001.
2.2. Deduzida pelo arguido reclamação para a mesma entidade, foi tal reclamação indeferida, por despacho de 14 de Janeiro de 2002.
2.3. Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Comandante Operacional da Força Aérea que, por despacho de 21 de Fevereiro de 2002, manteve a decisão recorrida.
2.4. Tendo sido interposto pelo arguido novo recurso para o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, foi o mesmo rejeitado, com fundamento em extemporaneidade, em virtude de ter sido interposto depois de esgotado o prazo previsto no artigo 114º, nº 1, do RDM (despacho de 3 de Abril de 2002).
2.5. Deste último despacho foi interposto recurso pelo arguido A para o Supremo Tribunal Militar.
O recorrente defendeu que a norma do artigo 114º, nº 1, do RDM 'é redutora dos mais elementares direitos de defesa do arguido' e violadora dos artigos 13º, 20º, nº 4, 27º, nºs 3, alínea d), e 4, 266º, nºs 3, 4 e 5, e 270º, todos da Constituição da República Portuguesa.
2.6. O Supremo Tribunal Militar, por acórdão de 17 de Outubro de 2002 (fls.
9 e seguintes destes autos de reclamação), decidiu não conhecer do recurso, por intempestividade.
Lê-se no texto desse acórdão:
'O âmbito do presente recurso é restrito à questão da invocada inconstitucionalidade do art. 114°, nº 1, do RDM, na parte em que fixa o prazo de cinco dias para a interposição do recurso que prevê e à consequente questão da tempestividade do mesmo recurso. Para se conhecer dele, necessário se torna que se mostrem efectivamente verificados todos os pressupostos processuais, o que não acontece, desde logo, relativamente à tempestividade, agora do presente recurso. Com efeito, o art. 123° do Regulamento de Disciplina Militar fixa o prazo de trinta dias para a interposição de recurso contencioso. Ora, os únicos elementos que, a tal respeito, constam dos autos e que por ninguém, nomeadamente pelo recorrente, foram postos em causa, são a data da assinatura do aviso de recepção da notificação do despacho recorrido e a data da interposição do presente recurso. Tais datas são, respectivamente, as de 4 de Junho de 2002 e 15 de Agosto de 2002. Entre elas medeia um período de tempo muito superior a trinta dias, sendo certo que também é superior o tempo decorrido entre a primeira e a data de inicio das férias judiciais, 16 de Julho de 2002. Sendo assim, e tratando-se de prazo peremptório, não se mostra, pois, que o dito recurso tenha sido interposto no período de tempo em que o recorrente conserva a titularidade do respectivo direito de recurso, prévia à extinção deste operada pelo decurso do referido prazo. Nesta conformidade, este Supremo Tribunal não pode conhecer do objecto do recurso em causa.
[...].'
2.7. A interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, invocando como fundamento a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, através de requerimento assim redigido (fls. 15):
'[...] no recurso interposto invocou o Recorrente a inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 114º do RDM – que não conheceu do recurso hierárquico interposto para o CEMFA com fundamento de que «o prazo de recurso hierárquico em matéria disciplinar é de 5 (cinco) dias como previsto no artigo 114º, nº 1 do Regulamento de Disciplina Militar (RDM) – por violação das normas dos artigos
13º, 20º, nº 4, 27º, nºs 3, alínea d) e 4, 266º, nº 2, 268º, nºs 3, 4 e 5 e
270º, todos da CRP. Destarte, reproduzindo o teor e sentido com que a Entidade Recorrida, o Senhor General CEMFA, não conheceu do recurso hierárquico, o Venerando Supremo Tribunal Militar, «mutatis mutandis», não conhece do recurso contencioso com o fundamento de que o artigo 123º do Regulamento de Disciplina Militar fixa o prazo de 30
(trinta) dias para a interposição do recurso aqui «sub juditio». Seja que, aplicando agora a norma do artigo 123º do RDM esta viola as normas da Constituição da República Portuguesa enunciadas supra, as quais aqui expressamente se invocam para os demais efeitos legais, nomeadamente europeus.'
2.8. Notificado, nos termos do artigo 75º-A, nº 5, da Lei do Tribunal Constitucional, para completar o requerimento de interposição do recurso, o recorrente respondeu através do requerimento de fls. 20, nos seguintes termos:
'– A norma é a do artigo 123º do Regulamento de Disciplina Militar (RDM) que fixa o prazo de 30 (trinta) dias para a interposição do recurso contencioso de anulação, com base na qual não conheceu o Alto Tribunal do objecto de tal recurso, sendo certo que as normas dos artigos 105º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR) e 168º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) postulam prazo diferente e mais favorável ao recorrente, na senda do que se extrai dos nºs 6 e 7 do artigo 2º do CPA, consentâneo com a leitura que hoje é possível fazer-se do espírito do próprio legislador, plasmado já quer na Lei nº
13/2002 de 19 de Fevereiro quer na Lei nº 15/2002 de 22 de Fevereiro, «maxime» nos artigos 58º, nº 2, alínea b) e 69º, nº 2, ambos desta última Lei, que vêm estabelecer o prazo de 3 (três) meses – noventa dias – para a impugnação de actos anuláveis e o de propositura de acção de condenação à prática de acto devido no caso de indeferimento, respectivamente.
– A inconstitucionalidade, desta norma do artigo 123º do RDM, foi suscitada no primeiro e único momento em que podia sê-lo, porquanto o recorrente em nenhum outro momento podia suscitar a questão da inconstitucionalidade, na medida em que a aplicação de tal norma «nasceu» para o recorrente no momento da prolação da Douta decisão de não conhecimento do objecto do recurso, aplicando-a.
– Viola tal norma do artigo 123º do RDM, as normas constitucionais dos artigos
13º; 20º, nº 4; 27º, nºs 3, al. d) e 4; 266º, nº 2; 268º, nºs 3, 4 e 5 e 270º todos da CRP.
[...].'
2.9. Por despacho de 18 de Novembro de 2002 (fls. 23 e seguinte), o Relator, no Supremo Tribunal Militar, decidiu não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional pelas razões a seguir indicadas:
'[...] a inconstitucionalidade em causa não foi suscitada «durante o processo». Apenas no requerimento de interposição do presente recurso para o Tribunal Constitucional, foi, pela primeira vez no processo, suscitada a questão da inconstitucionalidade da norma constante do art. 123º do RDM; em momento processual em que se tinha já esgotado o poder jurisdicional do STM e este já não dispunha, portanto, do poder legal de proferir decisão sobre tal questão. O recorrente esboça uma tentativa de, in extremis, se valer do efeito surpresa. Infundadamente o faz, já que, sem sombra de dúvida legitima, era de esperar que o Supremo Tribunal Militar para onde recorria, se debruçasse, como devia e fez, sobre todos os pressupostos processuais incluindo a tempestividade do recurso. O recorrente não pode alegar desconhecimento de que estava em causa um recurso interposto em matéria disciplinar; a não ser assim, não o teria interposto para o Supremo Tribunal Militar mas sim para os tribunais administrativos. E não pode, legitimamente, alegar que desconhecia que a norma reguladora do respectivo prazo era a do já citado art. 123º, do RDM. Trata-se, incontestavelmente, de uma especial norma vigente cuja aplicabilidade é pacífica. E, de tão clara redacção, que muito dificilmente admitiria outro sentido para além daquele a que se chegou com a linear interpretação aplicada. Assim, se o recorrente, efectivamente, estivesse convencido da inconstitucionalidade da norma em causa, na medida em que fixa um prazo de trinta dias para o recurso, teria suscitado tal questão, desde logo no requerimento de interposição de recurso para o Supremo Tribunal Militar. Tendo tido oportunidade de o fazer e não o tendo feito oportunamente, perdeu o direito de recorrer, em tal matéria, para o Tribunal Constitucional. Sendo assim, o presente recurso não é admissível – art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
[...].'
2.10. A veio então deduzir reclamação do despacho de não admissão do recurso, ao abrigo do disposto no artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional
(fls. 1 a 3).
No requerimento apresentado, formulou as seguintes conclusões:
'[...] O Supremo Tribunal Militar indeferiu o recurso de inconstitucionalidade interposta da norma do artigo 123º do RDM que fixa o prazo de trinta dias para a interposição do recurso contencioso de anulação. O recorrente nas alegações de recurso de anulação invocou vícios procedimentais e materiais passíveis de anular o acto administrativo de punição do recorrente com fundamento em ilegalidade tanto pelo ângulo da simples anulabilidade como ainda pelo da nulidade. O recorrente não contava com a decisão dos autos e com o sentido dado à norma do artigo 123º do RDM, notificada que foi a Entidade Recorrida que apresentou a sua resposta, nomeadamente àquelas questões de nulidade. O Tribunal «a quo» não pode furtar-se ao conhecimento do objecto do recurso sem apreciar as questões de nulidade suscitadas no processo, porquanto a nulidade é invocável a todo o tempo, nos termos do disposto nos artigos 286º e 289º do CCivil e do artigo 134º do CPA. Coloca-se aquele venerando Tribunal numa postura de «non liquet» furtando-se a apreciar a questão de fundo dos autos, esquecendo tudo quanto a lei dispõe acerca da nulidade, nomeadamente que, independentemente de ser invocável a todo o tempo por qualquer interessado, pode ela ser declarada oficiosamente pelo tribunal. Tal nulidade suscitada logo nas alegações de recurso e tendo a Entidade Recorrida tomado posição sobre ela, não pode aquele Alto Tribunal deixar de conhecer do objecto do recurso, ao menos quanto àquela questão de nulidade do acto recorrido e já controvertida no processo pela intervenção da Entidade Recorrida, para o efeito notificada por aquele Alto Tribunal.
[...]. Normas Violadas: Art. 13º; 20º, nº 4; 27º, nº 3, al. d) e 4; 266º, nº 2; 268º, nºs 3, 4 e 5 e270º todos da CRP.'
2.11. O Relator, no Supremo Tribunal Militar, manteve o despacho reclamado, pelos fundamentos que a seguir se indicam:
'[...] o reclamante nunca pôs em causa a razoabilidade do prazo de recurso fixado no acima citado art. 123º do Regulamento de Disciplina Militar nem tão pouco que o recurso para este Supremo Tribunal tenha sido interposto após o decurso daquele mesmo prazo. Se bem apreendemos o teor da reclamação, parece pretender-se que a norma do citado art. 123º deve ser interpretada de maneira a, pura e simplesmente, não se atender ao prazo nela previsto, o que excluiria qualquer limite temporal para a interposição de recurso; ou será que, excedendo os limites próprios de uma reclamação se pretende que o Tribunal Constitucional decida por forma a vincular este Supremo Tribunal a, com violação de regras de competência, conhecer de certas questões suscitadas pelo reclamante? A norma do art. 123º do Regulamento de Disciplina Militar não suporta, de tão clara que é, qualquer outra interpretação legítima que não seja a que lhe foi dada por este Supremo Tribunal, pelo que é manifesta a irrazoabilidade de qualquer invocação de surpresa originada por tal interpretação. Surpreendente (e ilegal) seria a interpretação da lei propugnada pelo reclamante se por ela se tivesse optado. Nesta conformidade e sem necessidade de mais considerações, mantém-se o despacho reclamado.
[...].'
3. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de que a presente reclamação é improcedente, por não poder considerar-se o recorrente dispensado do ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade durante o processo (fls. 30 vº e 31).
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. O ora reclamante pretendia interpor recurso de constitucionalidade da decisão proferida nos autos pelo Supremo Tribunal Militar, com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
O Relator, no Supremo Tribunal Militar, não admitiu o recurso, por entender que não estavam verificados no caso os pressupostos processuais exigidos pela disposição invocada, designadamente por considerar que a questão de inconstitucionalidade que o ora reclamante pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional não foi suscitada 'durante o processo'.
5. Não merece censura o despacho reclamado.
Na verdade, o ora reclamante só invocou a inconstitucionalidade da norma que pretende ver apreciada no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, isto é, em momento processual em que já estava esgotado o poder jurisdicional do Supremo Tribunal Militar e em que portanto este não podia pronunciar-se sobre tal questão.
E não pode, no caso dos autos, considerar-se o ora reclamante dispensado do ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade 'durante o processo', no sentido em que tal exigência tem sido interpretada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional. Na verdade, era previsível que, na apreciação do recurso que lhe foi submetido pelo então recorrente, o Supremo Tribunal Militar procedesse à verificação dos respectivos pressupostos processuais, incluindo a tempestividade do recurso. E era assim previsível que, no âmbito dessa apreciação, o tribunal aplicasse a norma do artigo 123º do Regulamento de Disciplina Militar, enquanto preceito especial que fixa o prazo para a impugnação jurisdicional de decisão proferida em processo disciplinar militar.
Ora, sendo inequívoco o sentido do artigo 123º do RDM e sendo incontestada a vigência de tal preceito – aspectos que o ora reclamante nem sequer põe em causa –, competiria ao ora reclamante suscitar, no momento da interposição do recurso para o Supremo Tribunal Militar, a inconstitucionalidade da norma que fixa para a impugnação jurisdicional em sede de disciplina militar um prazo mais curto do que o estabelecido para o processo disciplinar comum.
Não o tendo feito, e sendo certo que teve oportunidade processual para o fazer, não podem dar-se como verificados os pressupostos do tipo de recurso interposto.
III
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 19 de Fevereiro de 2003 Maria Helena Brito Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida