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Processo n.º 503/02
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional I. Relatório A veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23 de Maio de 2002, que, 'ao abrigo do art. 420º, n.º 1 do CPP', decidiu 'rejeitar o recurso por manifesta improcedência' – ou seja, o recurso por ele interposto da sentença da primeira instância que o condenou
'como autor material, de um crime de desobediência, p. e p. art.º 348º, n.º 1 a) do C.P., na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 32.43 Euros, o que perfaz a quantia global de 2594.40 Euros ou Esc. 520 130$50, ou subsidiariamente na pena de 53 dias de prisão e, ainda, na proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria, por um período de 5 meses, nos termos do art.º 69º, n.º 1 c) do C.P.'. Por decisão sumária de 29 de Outubro de 2002, o Conselheiro-Relator no Tribunal Constitucional decidiu não tomar conhecimento do recurso, por falta de verificação dos respectivos pressupostos, considerando que:
'(...)
2. É facto que a sentença da primeira instância se limitou, à luz do direito aplicável ao caso – artigo 348º, n.º 1, a), do Código Penal, e artigo 158º, n.º
3, do Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro –, a constatar que se provou que o arguido, ora recorrente, ‘conduzia um veículo automóvel, no dia 05/01/2002, pelas 04h25, na EN 9, Km 64, comarca de Torres Vedras, tendo-se recusado a fazer o exame de pesquisa de álcool no ar expirado face à ordem emanada do soldado da G.N.R., tal como impunha a disposição legal constante do art.º 158º, n.º 3, do Código da Estrada, preenchendo, assim, com a sua conduta os elementos objectivos do tipo penal transcrito’ e mais se provou ‘que o arguido quis agir do modo descrito, sabendo que, enquanto condutor, não se podia recusar a realizar a supra mencionada prova
(elemento subjectivo do tipo), sabendo que a sua conduta era vedada por lei
(tinha consciência da ilicitude dessa conduta)’ (e daí a condenação acima transcrita).
É também facto que na motivação do recurso interposto pelo recorrente para o Tribunal da Relação de Lisboa, não se encontra arguida nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, designadamente reportada ao questionado Decreto Regulamentar. Tal diploma vem referenciado pela primeira vez no acórdão recorrido (depois de se concluir que ‘o arguido praticou um crime de desobediência, previsto e punível pelo art.º 348º, n° 1, al. a), do Código Penal, por referência ao disposto no art.º 158º, n° 3, do Código da Estrada, aprovado pelo Dec.-Lei n°
265-A/2001, de 28 de Setembro’), a propósito da resposta oferecida pelo Ministério Público, ‘de harmonia com o disposto no art.º 413º, do Código de Processo Penal’, em que se diz haver ‘desconhecimento, por parte do recorrente, da existência do Decreto Regulamentar n°24/98 de 30 de Outubro, que regulamenta os procedimentos para a fiscalização sob a influência do álcool’. E lê-se a seguir no acórdão:
‘Dispõe o seu art.° 1º que a presença de álcool no sangue pode ser indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo e que a quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo. Verifica-se, assim, a necessidade de realização de um segundo teste quando o primeiro acusa resultado positivo porque os aparelhos para despistagem de álcool habitualmente utilizados pelas entidades fiscalizadoras dentro dos veículos fazem a pesquisa da taxa de álcool no ar expirado (TAE), procedendo, posterior e automaticamente à sua conversão em taxa de álcool no sangue, isto é convertem TAE em TAS. Acontece que tais aparelhos, para além de não serem dotados de um alto grau de precisão, operam em arredondamentos de 0,05 em 0,058/1 e, em regra por excesso, havendo, assim, a necessidade de confirmar no aparelho Drager, com exactidão, o grau de alcoolémia acusado no Seres. Na sentença recorrida, não é referido qual dos testes o arguido recusou efectuar, nem havia necessidade de o referir, porquanto em ambos se faz a pesquisa da taxa de álcool no ar expirado e ambas as recusas são proibidas, sendo sancionadas com a prática do crime de desobediência. Não se verifica, assim, nenhuma incorrecta interpretação do art° 158°, n° 3 do C.E. sendo manifestamente inglória a pretensão do recorrente’. Daqui resulta que é irrelevante a circunstância de na sentença recorrida da primeira instância não vir referido ‘qual dos testes o arguido recusou efectuar’ e ‘nem havia necessidade de o referir, porquanto em ambos se faz a pesquisa da taxa de álcool no ar expirado e ambas as recusas são proibidas, sendo sancionadas com a prática do crime de desobediência’. Portanto, para a consideração da consumação do crime de desobediência previsto e punível no Código Penal não foi chamada à colação o Decreto Regulamentar n.º
24/98, apenas se interpretou e aplicou o artigo 158º, n.º 3 do Código da Estrada, concluindo-se no acórdão recorrido que não se verifica ‘nenhuma incorrecta interpretação’ desse artigo. A conclusão a tirar é, pois, a de que não houve aplicação no acórdão recorrido daquele Decreto Regulamentar, e nem sequer havia necessidade de o referir.
3. Face a tal conclusão, tem de se admitir uma outra, a de que nenhum relevo jurídico se pode extrair do requerimento de aclaração do acórdão recorrido apresentado pelo recorrente, em que se vem questionar se ‘é ou não é inconstitucional o normativo constante do Dec. Regulamentar n.º 24/98, devendo por isso ser desaplicado com fundamento nessa mesma inconstitucionalidade’, porque através da sua aplicação ‘determina-se se alguém vai ser ou não sujeito a uma pena’ e ‘as normas que conduzem à aplicação de penas (neste caso pode ser até privativa de liberdade), são normas processuais penais, que teriam, todo o cabimento, no Livro II do Código de Processo Penal, devendo, provavelmente, ser um dos capítulos desse mesmo Livro, mas nunca num Decreto Regulamentar’. E é irrelevante o requerimento exactamente porque o dito normativo não foi objecto de aplicação no acórdão recorrido. Tanto assim que ele foi liminarmente indeferido por ‘manifesta falta de suporte legal’ por despacho do Exmº Desembargador-Relator, que não conheceu daquela pretensa questão de inconstitucionalidade normativa. De tudo decorre faltar um pressuposto processual específico do tipo de recurso de constitucionalidade de que se serviu o recorrente, o da aplicação de norma arguida de inconstitucionalidade durante o processo e suposto mesmo que essa arguição se fez no momento próprio. Com o que não pode tomar-se conhecimento do presente recurso.' Desta decisão de não conhecimento veio o recorrente 'apresentar reclamação, de acordo com o n.º 3 do art. 78º-A da LTC (redacção da Lei n.º 13-A/98 de 26 de Fevereiro)', sustentando que 'para a consideração do crime de desobediência previsto e punível no Código Penal não só se interpretou e aplicou o artigo
158º, n.º 3 do Código da Estrada, como foi chamado à colação o Decreto Regulamentar n.º 24/98, sendo que, deste modo, houve aplicação, da norma arguida, no acórdão recorrido, existindo pressuposto processual de recurso de constitucionalidade'. Na sua resposta, o 'representante do Ministério Público junto deste Tribunal' sustentou ser esta 'manifestamente improcedente'. Pelo Acórdão n.º 488/2002, de 26 de Novembro de 2002, foi indeferida a reclamação, com os seguintes fundamentos:
'O reclamante não alcançou com a sua argumentação abalar minimamente a conclusão a que se chegou na DECISÃO reclamada, quanto à não aplicação no acórdão recorrido do decreto regulamentar questionado, que não é, portanto, e como diz o Ministério Público, ratio decidendi do julgado naquele acórdão. Aliás, é o próprio reclamante a reconhecer que ‘para a consideração da consumação do crime de desobediência previsto e punível no Código Penal, basta a verificação do art. 158° n.º 3 do Código da Estrada, que estatui essa, punição’ e que ‘nesse caso, inconstitucional seria o dispositivo constante do n.º 3 do art. 158º de Código da Estrada, por violação do art. 29º n.º 1 da C.R.P.’. Só que essa norma do Código da Estrada não integra o objecto do recurso de constitucionalidade, tal como ele foi exibido pelo recorrente, ora reclamante, e, portanto, não pode agora aproveitar-se o que ele adianta na sua reclamação. Tanto basta para concluir que não há motivo para alterar a DECISÃO reclamada. E. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e condena-se o reclamante nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta.' Notificado desta decisão, o reclamante veio, 'nos termos do art. 669º n.º1 al. a) do Código de Processo Civil, requerer o seu esclarecimento e a sua reforma, nos termos e com os fundamentos seguintes':
'(...)
2º Ora, salvo o devido respeito, estamos em crer, que o acórdão recorrido enferma de duas obscuridades.
3º Uma primeira relacionada com, salvo o devido respeito, uma interpretação errónea do vertido, pelo reclamante, na reclamação apresentada.
4º Com efeito, o Tribunal Constitucional conclui: «Aliás, é o próprio reclamante a reconhecer que ‘para a consideração da consumação do crime de desobediência previsto e punível no Código Penal, basta a verificação do art. 158° n.º 3 do Código da Estrada, que estatui essa, punição’ e que ‘nesse caso, inconstitucional seria o dispositivo constante do n.º 3 do art. 158º de Código da Estrada, por violação do art. 29º n.º 1 da C.R.P.’.»
5º Com o devido respeito, o Tribunal limitou-se a extrair excertos daquilo que o reclamante alegou, especificamente, parte do art. 9º e 14º da reclamação, apresentada pelo reclamante.
6º Relegando o expendido nos artigos intermédios, donde se conclui que tal é tido como uma hipótese.
7º Para tanto, julgamos conveniente transcrever o que, o reclamante, explanou na sua reclamação:
« 9º – Se é certo que, para a consideração da consumação do crime de desobediência previsto e punível no Código Penal, basta a verificação do art.
158° n.º 3 do Código da Estrada, que estatui essa punição, também nos merece certeza que, a verificação deste último, depende da consideração das provas obrigatórias estabelecidas e reguladas pelo Decreto Regulamentar.
10º – Assim sendo, para concluir sobre uma correcta interpretação e consequente aplicação do art. 158° n.º 3 do Código da Estrada é necessário, pelas considerações expostas, interpretar e aplicar o aludido Decreto Regulamentar.
11º – Se assim não for entendido, como poderemos saber quais as provas, obrigatórias, estabelecidas para a detecção do estado de influência do álcool, cuja recusa de prestação é punida por desobediência, se o art. 158. n.º 3 do Código da Estrada não as estabelece?
12º – Valerão quaisquer provas, e a recusa a qualquer uma consubstanciará um crime de desobediência?
13º – Nesta medida, não seria o próprio art. 158º n.º3 do Código da Estrada uma norma penal em branco, cuja aplicação directa, sem mais, sem determinação de quais as provas estabelecidas, levaria à punição por crime de desobediência?
14º – E, nesse caso, inconstitucional seria o dispositivo constante do n.º3 do art. 158º do Código da Estrada, por violação do art. 29º n.º 1 da C.R.P.»
8º Face ao exposto, deve o Tribunal esclarecer o porquê de tal interpretação e conclusão.
9º Por outro lado, o Tribunal parece ter seguido a doutrina do representante do M.P., junto desse Tribunal, que afirmou: «Sendo evidente que a decisão recorrida não fez apelo – como ‘ratio decidendi’ – às normas que constam do Decreto Regulamentar n° 24/98, considerando ‘desnecessária’ a invocação deste, por irrelevante o circunstancialismo nele previsto quanto à regulamentação dos testes destinados a determinar o grau de alcoolémia, fundando-se exclusivamente
– tal como a decisão da 1 a instância –, na norma constante do artigo 158°, n°
3, do Código de Estrada.»
10º Ora, salvo lapso manifesto da parte do recorrente, em parte alguma do acórdão recorrido se pode ler a palavra ‘desnecessária’, no contexto em que, o digno representante do M.P., a utiliza.
11º Deve pois, o Tribunal Constitucional esclarecer, uma vez que seguiu a tese do M.P., junto desse Tribunal, em que página e em que linha do acórdão recorrido foi considerada ‘desnecessária’ a invocação do dito Decreto Regulamentar, por irrelevante o circunstancialismo nele previsto, quanto à regulamentação dos testes destinados a determinar o grau de alcoolémia.
12º De resto, se o acórdão recorrido tivesse considerado desnecessária a invocação do dito Decreto Regulamentar, manifestaria desconhecimento do Direito aplicável ao caso concreto, o que, estamos certos, não aconteceu.
(...)
15º Parece, pois, que, contrariamente ao digno representante do M.P., junto desse Tribunal, a Procuradora Adjunta do Tribunal Judicial de Torres Vedras, entende ser desnecessário referir qual dos testes o recorrente se recusou a fazer, não parece, de modo algum entender desnecessária a aplicação do Decreto Regulamentar
24/98, de 30 de Outubro.
16º Pelo contrário, fundou a defesa da sentença de 1ª Instância na existência deste diploma e da sua aplicação.
(...)
31º Afirmar agora que, o Decreto de Lei 24/98, de 30 de Outubro, não foi aplicado é o mesmo que dizer que, o Cabo da G.N.R., que tomou conta da ocorrência agiu fora da Lei, que a Digna Magistrada que assegurou a acusação, agiu fora da lei, que a Magistrada Judicial que proferiu a sentença, condenou sem Lei, que a Digna magistrada do M.P., que elaborou as contra alegações de recurso se enganou redondamente e que o Tribunal da Relação manteve uma decisão ilegal,
32º pois que, da aplicação isolada do n.º 3 do art. 158º do C.E., não pode resultar a condenação de ninguém, pois só se pode desobedecer a alguma coisa. É impossível, jurídica, lógica, materialmente e filosoficamente, desobedecer a coisa nenhuma.
33º Ao entender, que o Art.º 158º do C.E., foi aplicado isoladamente, o Tribunal Constitucional mais não faz do que afirmar que a condenação do recorrente foi ilegal, pondo em crise as posições das autoridades policiais, magistrados Judiciais e do Ministério Público que, anteriormente, se tinham debruçado sobre a questão.
34º Ora, salvo o devido respeito, cremos não estar no âmbito da competência do Tribunal Constitucional o julgar não aplicada uma norma que o Tribunal da Relação aplicou, pois que, como já foi dito, se a não tivesse aplicado teria sido impossível manter a sentença recorrida e a condenação seria ilegal e que, portanto, a recusa em realizar o segundo teste de alcoolémia foi legítima, sendo de referir que o requerente foi detido por não ter realizado o teste, conforme consta dos autos, violando princípios básicos e fundamentais do Estado de Direito, consagrados nos arts.º 18º n.º1, 20º n.º4 e 29º da CRP.' Notificado deste pedido, o Ministério Público veio responder-lhe dizendo:
'1 – A decisão proferida por este Tribunal é perfeitamente inteligível, não carecendo de qualquer esclarecimento no que toca ao juízo de constitucionalidade que emitiu e respectivos fundamentos.
2 – Sendo, por outro lado, evidente que não se verifica qualquer ‘lapso manifesto’ a carecer de correcção.
3 – Aliás, o que o reclamante verdadeiramente pretende é obter uma verdadeira impugnação do decidido, limitando-se, em termos substanciais, a reiterar a sua discordância com o acórdão proferido.
4 – O que traduz manifesto e inadmissível abuso da funcionalidade típica dos incidentes pós-decisórios previstos na lei de processo.' Após mudança de relator, por o anterior ter deixado de exercer funções no Tribunal Constitucional, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos O presente pedido de aclaração tem de ser desatendido, pois, como resulta do seu próprio teor, e, designadamente, da sua fundamentação, o requerente não visa o esclarecimento de qualquer dúvida resultante de uma ambiguidade ou obscuridade do Acórdão n.º 488/2002. Visa, antes, manifestar a discordância do requerente com a consideração, constante deste aresto, de que as normas por ele impugnadas
– do Decreto Regulamentar n.º 24/98 – não foram aplicadas, como ratio decidendi, pela decisão recorrida, bastando, 'para a consideração da consumação do crime de desobediência previsto e punível no Código Penal, (...) a verificação do art.
158° n.º 3 do Código da Estrada', por ser irrelevante o circunstancialismo previsto naquelas normas impugnadas. Aliás, aquele Acórdão n.º 488/2002 não enferma, quanto a este ponto, de qualquer ambiguidade ou obscuridade que necessite ser esclarecida, resultando da própria fundamentação do seu pedido que o requerente não ficou com dúvidas sobre o que no aresto se decidiu, nem sobre as razões da decisão tomada. O que acontece é que discorda de que não tenham sido aplicadas, como razões decisivas, também as normas que impugnou. É desta discordância que se dá conta no pedido da aclaração. Porém, este não serve para expor divergências relativamente à decisão tomada, e obter nova pronúncia do Tribunal, mas apenas para ver esclarecidas dúvidas que resultem de ambiguidades ou obscuridades que a decisão contenha. Como o requerente não tem – nem podia ter, à luz do teor da decisão reclamada – dúvidas, mas sim discordâncias, e a decisão não enferma de obscuridades ou ambiguidades, há que desatender o pedido de aclaração formulado. O presente pedido de aclaração constitui, pois, como bem salienta o Ministério Público, 'manifesto e inadmissível abuso da funcionalidade típica' deste incidente pós-decisório – se bem que, admite-se, se não descortinem já elementos que permitam concluir pela existência de má fé processual –, e tem de ser desatendido. III. Decisão Com estes fundamentos, decide-se desatender o presente pedido de aclaração e condenar o requerente em custas, com 10 (dez) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 12 de Fevereiro de 2003 Paulo Mota Pinto Mário Torres José Manuel Cardoso da Costa