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Proc. n.º 70/02
2ª Secção
Relator: Cons. Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, nesta 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO recorre para este Tribunal nos termos dos art.os 70.º, n.º 1 , al. a), 71.º 72.º, n.º1, al. a) e 78º n.º 3 da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro do Acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo, de 25 de Setembro de 2001, 'restrito à questão da inconstitucionalidade orgânica da norma constante do art.º 39º do Regulamento de Obras na Via Pública (Edital n.º 156/63) publicado no D. M. de 21-09-63 da Câmara Municipal de Lisboa'.
2. O recorrente sintetiza as razões do seu inconformismo com o decidido nas seguintes conclusões:
«1º - Estando o pagamento à autarquia da 'compensação pela modificação da resistência dos pavimentos e pelas despesas de fiscalização' directa e concretamente conexionado com obras levadas a cabo na via pública por certa entidade – funcionando, deste modo, o pagamento de tal 'tributo' como contrapartida de uma intervenção consentida em bens do domínio público, cuja guarda ou tutela está cometida aos municípios - verifica-se a bilateralidade de tal prestação que caracteriza o núcleo essencial do conceito de 'taxa'.
2º - A circunstância de o interesse individual da entidade devedora coincidir com o interesse público na realização das atribuições postas a cargo da empresa concessionária sobre que recai a obrigação de pagamento daquele tributo não preclude a 'bilateralidade' – nada obstando a que possam ser devidas
'taxas' por certa entidade pública em benefício de uma outra pessoa colectiva pública.
3º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de constitucionalidade da norma regulamentar questionada, estranha ao âmbito da 'Constituição Fiscal' e da reserva de lei que caracteriza o conceito jurídico-constitucional de 'imposto'».
3. A recorrida A contra-alegou, defendendo o julgado com base nos fundamentos levados às seguintes conclusões:
«1. Inexiste, como sobejamente se infere do Acórdão recorrido, qualquer contrapartida entre a actividade desenvolvida pela recorrente e a satisfação de uma necessidade individual da Recorrida.
2. Sem essa sinalagmaticidade, a primeira acha-se impossibilitada de exigir a liquidação de qualquer tributo, como é entendimento pacífico, quer do STA, quer deste mesmo Tribunal.
3. De resto, e apesar de se afigurar duvidoso que a questão tenha sido colocada do modo processualmente adequado, parece que a sua análise não redunda na apreciação com o texto fundamental.
4. Com efeito, o que está em causa é a caracterização da natureza do tributo em causa, juízo de prognose que precede e que nada belisca a constitucionalidade do diploma regulamentar, uma vez que o que se expende não é que a realidade em causa não se pode subsumir, pelas razões expostas, a uma taxa.
5. E como este Tribunal, conforme jurisprudência pacífica e uniforme, se acha vedado a apreciar as interpretações feitas por outros tribunais, parece, que também por esta razão o recurso deve improceder.
6. Termos em que deve o presente recurso ser julgado insubsistente e infundado, com as demais consequências legais».
B – A fundamentação
4. A questão decidenda
É a de saber se o art.º 39º do Regulamento de Obras na Via Pública (Edital n.º
156/63), que foi aprovado em 19 de Junho de 1963 e publicado no D. M. de
21-09-63 da Câmara Municipal de Lisboa', padece, ou não, de inconstitucionalidade orgânica.
5. Dos fundamentos do acórdão recorrido O acórdão recorrido assentou na consideração de que o tributo liquidado à ora recorrida, por aplicação da norma sindicada constitucionalmente, tinha a natureza de imposto e não de uma taxa, porquanto, em síntese, 'a sinalagmaticidade que caracteriza a taxa poderá ser identificada desde que se verifique como contrapartida, a utilização individual de um bem semipúblico, ou seja de um bem que satisfaz, além das necessidades colectivas, necessidades individuais, também chamadas necessidades de satisfação activa, cuja satisfação exige a procura pelo consumidor' e 'na situação em apreço ... a quantia em causa exigida à ora recorrida não visa qualquer satisfação individual da recorrida que efectuou as obras em acatamento da concessão de serviço público de telecomunicações que lhe está cometido e, por consequência, em ordem à satisfação do interesse público'. Consequentemente, a norma que serviu de base à liquidação do tributo, foi tida por organicamente inconstitucional.
6. Do mérito do recurso de constitucionalidade
A resolução da questão nos termos em que foi equacionada e decidida no acórdão recorrido e foi enfrentada no recurso pressuporia que se analisasse qual seria a natureza do tributo em causa - se imposto, se taxa - para que, da resposta obtida num ou noutro sentido, se pudesse apurar se a norma ao abrigo da qual foi liquidado o tributo sofreria, ou não, de inconstitucionalidade orgânica. Mas acontece que a norma aplicada, cuja inconstitucionalidade foi questionada, foi criada por um regulamento municipal que foi aprovado em 19/06/1963 e foi publicado no Diário Municipal, de 21 de Setembro de 1963.
Estamos, assim, perante uma norma que foi gerada e publicitada quando ainda vigorava a Constituição de 1933 ou seja, anteriormente, portanto, à Constituição de 1976.
E, sendo assim, tem este Tribunal de se interrogar sobre se essa norma caberá, ou não, na opção que a actual Constituição tomou, nas suas várias versões, nos preceitos correspondentes ao actual 290.º n.º 2, quanto à permanência do direito ordinário anterior, desde que não seja contrário a ela ou aos princípios nela consagrados.
A questão não é nova, tendo-a o Tribunal já resolvido, quando apreciou a constitucionalidade de outros tributos criados igualmente por regulamento, no sentido dessa permanência só estar excluída no caso de existir discrepância material com a actual Constituição (neste sentido, cfr. os Acórdãos n.os 2/84, 261/86 - e a numerosa jurisprudência aí citada, mesmo do tempo da Comissão Constitucional - e 443/87, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional 2º vol., pp. 198, 8º vol., pp. 351 e 10º vol., pp. 541) e, mais recentemente, os Acórdãos n.os 415/02, publicado no D.R., II Série, de
17/12/2002 e 470/02 (inédito).
Justificando esta solução escreveu-se, a propósito, no citado Acórdão n.º 261/86:
'Efectivamente compreende-se que o legislador constituinte, sob pena de vir a criar um hiato ou vazio global de regulamentação jurídica, haja desejado assegurar uma continuidade fundamental de ordenamento, apenas dela excluindo aquilo que intoleravelmente brigasse com a nova ordem de valores constitucional; entretanto, e por outro lado, não se compreenderia que se fosse averiguar da regularidade «formal» (no sentido complexivo da palavra) de determinadas normas jurídicas recorrendo a critérios e princípios constitucionais que só posteriormente à emissão delas vieram a ser consagrados'
(itálico nosso). Tendo em conta esta compreensão do actual art.º 290º, n.º 2, da Constituição, o problema será agora o de apurar se o princípio da legalidade dos impostos, tal qual ele é, agora, nela gizado, será de incluir nesse direito ordinário anterior, para os efeitos da permanência ditada por tal comando constitucional.
É que não poderá esquecer-se que o princípio da legalidade dos impostos assume uma verdadeira dimensão 'garantística' nos cidadãos, que vai para além da consideração da existência de novas regras de forma e de competência que estão ditadas no actual texto constitucional [art.os 103.º n.os 2 e 3 e 165.º n.º 1, al. i)]. Estão, seguramente, nesse campo aquelas exigências que contendem com a definição dos elementos essenciais dos impostos que são postuladas pelo art.º
103.º n.os 2 e 3, mormente no que toca aos princípios do nullum tributum sine lege, da tipicidade fechada, da determinabilidade das normas de incidência e agora, também, da não retroactividade dos impostos e a sua violação não pode deixar de ser tida como uma inconstitucionalidade 'material' (cfr., com referência à Constituição de 1933, J. M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2ª ed. pp. 180 e ss.)
Só que a reserva da lei formal está conexionada ou indexada directamente com as exigências de competência e de forma que a nova Constituição previu, na medida em que esta passou a exigir a sua subordinação ao princípio de reserva de lei do Parlamento [art.º 165.º n.º 1, al. i)].
Deste modo, a aplicação dessas novas imposições relativamente ao direito anterior acabaria por implicar uma aplicação retroactiva das novas regras de forma e de competência instituídas pela CRP. Ora, foi precisamente o afastamento de um tal entendimento que justificou o referido comando constitucional: relativamente a tais matérias, e desde que salvaguardada a sua conformidade material, a lei fundamental orientou-se, precisamente pelas razões acima transcritas, pelo princípio do tempus regit actum.
Mas independentemente do que vai dito, é ainda de acompanhar o que sobre a mesma matéria se afirmou no citado Acórdão n.º 261/86:
'A não se entenderem as coisas como vem de referir-se, dir-se-ia então que a caducidade do direito anterior ocorreria pelo menos, quando não se houvesse observado a forma correspondente à exigida pela nova Constituição. Só que este outro entendimento levaria pressuposta, por sua vez, uma particular sensibilidade do legislador constituinte de 1976 aos precedentes critérios orgânicos-formais de legitimação constitucional, o que não é muito plausível em todas as situações.
De qualquer modo, por último e em definitivo, não se afigura crível - reportando-nos agora especificamente aos reflexos do art.º 293º (art.º que, ao tempo da escrita, regia a situação) no domínio dos impostos - que haja estado nas intenções do mesmo legislador constituinte inconstitucionalizar a posteriori, por motivos ligados exclusivamente á «forma» como foram estabelecidas, quaisquer figuras tributárias. Não é isso crível atenta a sua preocupação de salvaguardar basicamente a continuidade do ordenamento jurídico, e atenta, em particular, a imprevisibilidade das consequências de uma tal solução, dados os imediatos reflexos financeiros, sobre o funcionamento das instituições'. Como se infere do acima relatado, foi precisamente a exigência da subordinação da norma cuja aplicação se rejeitou à forma (entendida esta, também, em sentido complexivo) da instituição dos impostos que se encontra consagrada na actual Constituição que levou o acórdão recorrido a ditar a sua inconstitucionalidade orgânica. Mas irrelevando essa forma, pelas razões expostas, caiem os fundamentos da decisão recorrida. Consequentemente, tem a mesma de ser revogada. C – A decisão
7. Destarte, atento tudo o exposto, decide-se: a) Não julgar inconstitucional a norma constante do art.º 39º do Regulamento de Obras na Via Pública (Edital n.º 156/63) publicado no D. M. de 21-09-63 da Câmara Municipal de Lisboa'; b) E, por consequência, conceder provimento ao recurso, devendo o Acórdão recorrido ser reformado de acordo com o juízo de constitucionalidade aqui emitido.
Lisboa, 12 de Fevereiro de 2003- Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário Torres Luís Nunes de Almeida