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Processo n.º 279/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
O Centro Distrital de Viana do Castelo do Instituto da Segurança Social, IP, por despacho de 12 de agosto de 2011, decidiu cancelar o apoio judiciário anteriormente concedido a A., tendo a notificação de tal decisão, segundo informação prestada por aquela entidade, sido remetida à Requerente na mesma data de 12 de agosto de 2011, por via postal simples.
Através de requerimento datado de 13 de dezembro de 2012, a Requerente impugnou judicialmente aquela decisão junto do Tribunal Judicial de Vila Nova de Cerveira que, por decisão de 17 de janeiro de 2012, negou provimento ao recurso, com fundamento na extemporaneidade da impugnação.
A Requerente pediu a reforma desta decisão, a qual foi indeferida.
A Requerente interpôs, então, recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
“A., recorrente nos autos de recurso de impugnação - apoio judiciário, em epígrafe, em que é recorrido Instituto da Segurança Social, IP, notificada do despacho de fls...., que indeferiu o seu requerimento de reforma da sentença, no qual suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 70º, nº 1, al. a), do CPA quando interpretada no sentido de que, “porque existe distribuição domiciliária na localidade de residência do notificando, o envio de carta simples para notificação da recorrente da decisão que lhe cancelou o apoio judiciário é suficiente e obedece aos trâmites e requisitos legais, não exigindo a lei que o correspondente expediente postal seja enviado sob registo, bastando a via postal simples”, tendo, assim, sido violados os direitos de informação e de acesso ao direito e ao tribunal para defesa dos direitos da recorrente consignados na norma do artigo 20º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, assim como violadas foram também as normas dos seus artigos 202º, nº 2, e 204º, suscitação que foi feita de modo processualmente adequado perante este tribunal, que proferiu a decisão recorrida, em termos de estar obrigado a dela conhecer, não admitindo a mesma recurso ordinário, por a lei o não prever, mostrando-se inconformada, vem, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 280º da já referida Constituição da República Portuguesa e da al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de novembro, da mesma interpor recurso para o Venerando Tribunal Constitucional.”
A Recorrente apresentou as respetivas alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
«1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida no proc. nº 30/08.4TBVNC-A, a qual foi objeto de requerimento de reforma, que foi indeferido, no qual foi suscitada a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 70º, nº 1, al. a), do CPA (Código de Procedimento Administrativo) cometida, obviamente, na sentença, tendo-o sido ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, quando interpretada, como se fez na mesma, no sentido de que, “porque existe distribuição domiciliária na localidade de residência do notificando, o envio de carta simples para notificação da recorrente da decisão que lhe cancelou o apoio judiciário é suficiente e obedece aos trâmites e requisitos legais, não exigindo a lei que o correspondente expediente postal seja enviado sob registo, bastando a via postal simples”;
2. Tendo, por isso, sido violados os direitos de informação e de acesso ao direito e ao tribunal para defesa dos direitos da recorrente consignados na norma do artigo 20º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, assim como violadas foram também as normas dos artigos 202º, nº 2, e 204º da mesma;
3. Suscitação que foi feita perante o tribunal que proferiu a referida sentença, tendo-o sido de modo processualmente adequado, em termos de estar aquele obrigado a dela conhecer, não o tendo feito, porém, não admitindo, por outro lado, a dita sentença recurso ordinário, por a lei o não prever;
4. Com efeito, constitui manifesto lapso, cometido na sentença, o invocar-se a norma do artigo 70º, nº 1, al. a), do CPA para julgar extemporâneo o recurso interposto da decisão que cancelou o apoio judiciário concedido à recorrente;
5. Que o foi pelo mandatário e signatário, por mera cautela, como no mesmo se salientou, após ter sido o mesmo notificado do documento enviado pelo recorrido para o processo principal (proc. nº 30/08.4TBVNC) com a decisão de que havia sido retirado o apoio judiciário à recorrente;
6. Tendo-se, insolitamente, entendido que, porque aquela disposição estabelece que as notificações podem ser feitas por via postal, desde que exista distribuição domiciliária na localidade de residência do notificando, e o recorrido informou para o processo que enviou carta simples à recorrente a, pretensamente, notificá-la da decisão que lhe cancelava o apoio judiciário antes concedido, tal notificação tinha obedecido aos trâmites e requisitos legais, não exigindo a lei que a referida carta tivesse sido enviada sob registo, sendo total o nosso desacordo e inconformidade;
7. Na verdade, aquela disposição só fala em via postal, não se referindo a correspondência registada ou simples, não devendo, porém, interpretar-se, como erradamente se fez, que o deva ser por via postal simples;
8. A lei, ao falar na possibilidade de fazer-se as notificações por via postal, quando há a referida distribuição domiciliária, quer apenas dizer que tal via pode ser utilizada, a par das demais referidas na dita disposição;
9. Sem prejuízo, contudo, de a entidade notificante, in casu o recorrido, dever poder provar que o notificando, a aqui recorrente, recebeu a carta de notificação;
10. Ou, mesmo, de que a enviou, não sendo suficiente que o tenha, angelicamente, vindo dizer no processo, sendo necessário que o comprove ou demonstre, cfr. artigo 341º do Código Civil, como acontece com todos os processos, quer judiciais quer administrativos ou fiscais e tributários;
11. O que viola o princípio da certeza que deve dominar todos os atos processuais;
12. Jamais se viu que em processo algum se possa fazer uma notificação, como a dos autos, por via postal simples, acontecendo, até, que quando a lei o admite, como em certas circunstâncias em processo penal, tal o seja com prova de depósito da carta;
13. Tal é a preocupação que a mesma chegue ao seu destino e ao conhecimento do notificando;
14. Aliás, não foi essa a forma, ou seja, a via postal simples, que o recorrido utilizou para notificar a recorrente da sua intenção de cancelar-lhe o apoio judiciário concedido, com vista a ser ouvida em audiência prévia, mas, sim, a via postal registada com prova de receção, como de fls … bem se alcança;
15. Pelo que não faz qualquer sentido que, para a notificar da decisão que lhe retirou o apoio, o tenha feito por carta simples, quando com a mesma o recorrido pretende extinguir o direito ou interesse legalmente protegido da recorrente, cfr. artigo 66º, al. c), do CPA;
16. Ou seja, o concedido apoio judiciário, sendo a mesma recorrível por via de impugnação judicial no prazo de 15 dias a contar do conhecimento da mesma, cfr. artigo 27º, nº 1, in fine, da Lei nº 34/2004, de 29 de julho;
17. E, a fortiori, devia, também, ter utilizado a via postal registada com, pelo menos, prova de receção;
18. O que, obviamente, significa que se dela não tem conhecimento não pode da mesma interpor recurso de impugnação, pelo que o referido prazo não se inicia;
19. A doutrina assim o diz, comentando o artigo 70º do CPA, cfr. Código de Procedimento Administrativo Comentado, 2ª edição, de Mário Esteves de Oliveira e Outros, a fls. 361, referindo que “o envio da notificação pelos correios é feito sob a forma registada, não havendo nenhuma razão para distinguir neste aspeto o processo judicial e o procedimento administrativo, considerando-se, portanto, que vale aqui, até por razões de certeza, a regra do artigo 254º do Código de Processo Civil”.
20. E com tal entendimento coincide toda a jurisprudência conhecida a propósito da questão sub judice, da qual destacamos o acórdão do Tribunal Constitucional publicado no DR-2ª Série, nº 52, a fls. 9984/9, de 16 de março de 2009, onde se diz o seguinte: “do que se expõe decorre que a notificação deve ser sempre um ato comunicativo que garanta, ao respetivo destinatário, a efetiva cognoscibilidade do ato notificando, de modo a não tornar excessivamente oneroso o acesso à justiça”;
21. E, na conclusão do mesmo, que “decorre de tudo quanto atrás se disse que o dever de notificar, que impende sobre a administração nos termos do n.º 3 do artigo 268.º da CRP, tem um conteúdo — determinado em parte, e como já se sabe, pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no n.º 4 do mesmo preceito constitucional — que pode ser compreendido pela reunião dos seguintes requisitos essenciais: a pessoalidade, a efetiva cognoscibilidade do ato notificando e a não excessiva onerosidade do acesso à justiça”;
22. É, também, este o entendimento que se vê retratado e sintetizado no acórdão do STJ proferido, em 20/09/2009, no processo nº 08S3439, também a propósito de notificação levada a cabo pela Segurança Social, dizendo-se no seu sumário, ao referir-se ao artigo 70º do CPA, que “a notificação postal é feita, por regra, através de registo simples, mas nada impede que o seja por carta registada com aviso de receção”;
23. Estando, como se vê, absolutamente excluída a hipótese de tal poder acontecer por via postal simples, o que a intuição jurídica repele, quanto mais ao ler-se os preceitos da Constituição da República Portuguesa que se passa a transcrever;
24. O seu artigo 20º, que garante o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, dispõe no seu nº 1 que “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…”, acrescentando o seu nº 2 que “todos têm direito, nos termos da lei, à informação….”;
25. Também o artigo 202º, nº 2, da mesma impõe que “na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”;
26. E o seu artigo 204º que “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”;
27. Outrossim, preceitua o artigo 268º, nº1, da mesma que “os cidadãos têm o direito de ser informados pela Administração, sempre que o requeiram, sobre o andamento dos processos em que sejam diretamente interessados, bem como o de conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas”;
28. E o seu nº 3 que “os atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos”;
29. Tal significa que, interpretando-se a norma do mencionado artigo 70º, nº 1, al. a), do CPA como se fez na sentença sub judice, foram violadas as anteriores disposições da Constituição;
30. Sendo, por isso, aquela inconstitucional, já que a recorrente tinha direito, não só a ser informada da decisão que lhe tinha cancelado o concedido apoio judiciário através de notificação com um mínimo de garantia de que a mesma chegaria à recorrente, dela tomando conhecimento, o que não aconteceu;
31. Assim como, por via disso, lhe foi negado o acesso ao direito e ao tribunal para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, nomeadamente interpondo recurso daquela decisão por via de impugnação judicial, como é o dos presentes autos;
32. Também, tem a recorrente o direito de que o tribunal assegure a defesa do seu direito e interesse legalmente protegido, que é o de poder impugnar por via de recurso judicial a decisão que lhe cancelou o concedido apoio judiciário;
33. Tendo o tribunal infringido o disposto nas normas dos artigos da Constituição antes referidos e nela consignados;
34. A possibilidade de interposição, pela recorrente, de recurso da decisão que lhe foi desfavorável tem de ser real e efetiva e não meramente fictícia, como sucederia no presente caso, se se atribuísse relevância à notificação da mesma por via postal simples;
35. Que manifestamente não garante, com o mínimo de certeza, a cognoscibilidade da decisão impugnanda.
36. Foram, pois, violados os direitos de informação e de acesso ao direito e ao tribunal para defesa dos direitos da recorrente consignados no dito artigo 20º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa;
37. E violados foram também os seus artigos 202º, nº 2, e 204º, quando se inseriu na sentença a interpretação dada à norma do referido artigo 70º, nº 1, al. a), do CPA,;
38. Pelo que é esta inconstitucional e como tal deve ser declarada;
39. Esta norma deve ser interpretada como podendo ser utilizada pela entidade notificante, o aqui recorrido, a via postal, desde que este possa comprovar a receção da notificação pelo notificando, in casu, a ora recorrente, tendo da decisão tomado conhecimento, pois que é a contar do mesmo que corre o prazo de 15 dias para poder impugná-la por via de recurso judicial;
40. Igualmente, o próprio envio da notificação com a decisão tem de ser comprovado pelo recorrido, não sendo admissível que apenas venha afirmar no processo que remeteu à recorrente carta simples, não comprovando sequer, de forma alguma, que enviou tal carta;
41. Quando é certo que o ónus da prova impende sobre o dito recorrido, já que àquele que invoca um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do mesmo, cfr. artigo 342º do Código Civil;
42. Todos sabemos como se extraviam as cartas por via postal simples, sendo umas entregues a terceiros, que não aos destinatários das mesmas, e nunca a estes chegam, e outras que, pura e simplesmente, se perdem e são destruídas;
43. O mesmo acontece, até, por vezes, com cartas enviadas sob registo, como é do conhecimento de todos e faz parte da experiência comum, quanto mais com cartas por via postal simples;
44. Como se alcança de vários Arestos deste Venerando Tribunal, em que, por todos, se indica o Acórdão nº 72/2009, publicado a fls. 9984/9 do Diário da República, nº 52, 2.ª série, de 16/03/2009, “a Constituição da República Portuguesa inclui, entre os direitos e garantias dos cidadãos, o direito à notificação dos atos administrativos;
45. A notificação desempenha um papel garantístico ou processual, na medida em que, só após a notificação, pode o ato ser oponível e iniciar-se o decurso do prazo de impugnação;
46. O direito à notificação dos atos administrativos apresenta, assim, uma estreita conexão com aqueloutro direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva;
47. A exigência de que uma decisão administrativa não produza efeitos ablativos enquanto não tiver sido notificada àqueles que ela afeta constitui uma decorrência garantística do valor do Estado de Direito;
48. A este direito fundamental dos sujeitos de direito enquanto administrados corresponde o dever da Administração de dar conhecimento aos interessados, mediante uma comunicação oficial e formal, das decisões que os afetem;
49. A notificação há de ser um ato, não só formal, mas também regido pelo princípio da receção, ou seja, o direito à receção do ato na esfera da percetibilidade normal do destinatário, sob pena de estarmos perante a inexistência ou, pelo menos, a insuficiência absoluta da notificação, pelo que será, então, o ato inoponível ao administrado e não pode ser iniciado o decurso do prazo de defesa;
50. E, ainda que a lei deixe alguma margem de discricionariedade quanto às formalidades, não é de considerar notificação o envio da mesma por correio simples, nomeadamente pelas razões já acima expostas, o que não respeita, reitera-se, o principio da certeza que tem de presidir a todos ao atos, in casu, a certeza da receção do ato pelo seu destinatário;
51. A atuação da Administração deve corresponder, desde logo, ao tipo da notificação pessoal e recetício do destinatário do ato que foi praticado;
52. O que importa acautelar, como exigência constitucional, é que os destinatários de uma decisão, judicial ou administrativa, tenham conhecimento do seu conteúdo, nomeadamente para contra ela poderem reagir, através dos meios processuais adequados”;
53. À luz de tais ensinamentos, a interpretação da referida norma inserida na sentença é, pois, inadmissível, por inconstitucional, ferindo o sentido de justiça mais embotado e a mais rudimentar intuição jurídica;
54. Violou, pois, a sentença em crise as normas dos artigos referidos nas precedentes conclusões, assim como os princípios e direitos constitucionais nas mesmas consagrados…”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Fundamentação
A Recorrente pretende sindicar a constitucionalidade da norma do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento Administrativo, quando interpretada no sentido de que, existindo distribuição domiciliária na localidade de residência do notificado, é suficiente o envio de carta, por via postal simples, para notificação da decisão de cancelamento do apoio judiciário, proferida com fundamento no disposto no artigo 10.º, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, sustentando que tal interpretação normativa viola os direitos de informação e de acesso ao direito e ao tribunal para defesa dos direitos da recorrente, consignados nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição, assim como nos artigos 202.º, n.º 2, e 204.º, também da Constituição.
No caso dos autos, está subjacente a esta questão de constitucionalidade a forma de notificação à ora Recorrente, beneficiária de apoio judiciário, de uma decisão do Centro Distrital de Viana do Castelo do Instituto da Segurança Social, IP, no sentido do cancelamento de tal benefício, com fundamento no disposto no artigo 10.º, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto.
O artigo 37.º da referida Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, determina a aplicação subsidiária das disposições do Código do Procedimento Administrativo ao procedimento administrativo de concessão de proteção jurídica, pelo que, a tal notificação é aplicável o disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento Administrativo.
No que respeita ao âmbito do dever de notificação dos atos administrativos, o artigo 66.º do Código de Procedimento Administrativo estabelece o seguinte:
«Devem ser notificados aos interessados os atos administrativos que:
a) Decidam sobre quaisquer pretensões por eles formuladas;
b) Imponham deveres, sujeições ou sanções, ou causem prejuízos;
c) Criem, extingam, aumentem ou diminuam direitos ou interesses legalmente protegidos, ou afetem as condições do seu exercício.»
Por sua vez, relativamente à forma de notificação dos atos administrativos, o referido artigo 70.º, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento Administrativo, dispõe o seguinte:
«Artigo 70º
Forma das notificações
1 – As notificações podem ser feitas:
a) Por via postal, desde que exista distribuição domiciliária na localidade de residência ou sede do notificando;
[…]»
No caso concreto, conforme se disse, está em causa a notificação do despacho do Centro Distrital de Viana do Castelo do Instituto da Segurança Social, IP, nos termos do qual se decidiu cancelar o apoio judiciário anteriormente concedido. Tal despacho, segundo informação daquela entidade, terá sido notificado por via postal simples, alegando a Recorrente que não recebeu tal notificação.
Neste circunstancialismo, a decisão recorrida interpretou a referida norma do artigo 70.º, n.º, 1, alínea a) do Código de Procedimento Administrativo, no sentido de que a notificação aí prevista pode ser efetuada através de via postal simples, considerando a notificação em causa regularmente efetuada.
O artigo 70.º do Código de Procedimento Administrativo, relativamente à forma de notificação dos atos administrativos, estabelece, como regra geral, a notificação por via postal. Pode, no entanto, levantar-se a questão de saber a que tipo de notificação por via postal se refere a dita norma (designadamente, se se trata de via postal simples, registada ou registada com aviso de receção).
Segundo o entendimento de José Manuel Santos Botelho, Américo J. Pires Esteves e José Cândido de Pinho (cfr. Código do Procedimento Administrativo Anotado, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 1996, pág. 293) «Quando a notificação seja feita pelo correio, será aconselhável que o seja através de carta registada com aviso de receção, pois só assim se consegue uma prova inequívoca de que o ato notificado terá chegado ao seu destinatário.»
Por sua vez, Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco Amorim (Código do Procedimento Administrativo, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 361), a propósito da forma de notificação prevista no artigo 70.º, n.º 1, alínea a) do Código de Procedimento Administrativo, escrevem o seguinte:
«II. O envio da notificação pelos correios é feito sob a forma registada, não havendo nenhuma razão para distinguir neste aspeto o processo judicial e o procedimento administrativo, considerando-se, portanto, que vale aqui, até por razões de certeza, a regra do art. 254.º do Código de Processo Civil: fica feita a prova no processo (ao qual é junto o respetivo talão de “registo”) de que a notificação foi enviada e em que data, podendo presumir-se (como em juízo) que os serviços postais entregam, nos prazos normais, aos respetivos destinatários, a correspondência que lhes é confiada.
Note-se, porém, que não funciona para as notificações procedimentais feitas por registo postal a regra aplicável em matéria de notificações judiciais (n.º 3, do art. 1.º do Decreto-Lei n.º 121/76), segundo o qual elas se consideram feitas no terceiro dia posterior à data do registo (ou no primeiro dia útil imediatamente subsequente).»
Neste mesmo sentido se pronuncia António Francisco de Sousa (Código do Procedimento Administrativo, Anotado e Comentado, Quid Juris, 2009, pág. 234):
«A notificação por via postal deve ser feita em carta registada, aplicando-se neste domínio o regime previsto no art.º 254.º do CPC. A carta registada permite a recolha de prova no processo (pela apensação do talão de registo, que prova o envio e a sua data). Neste caso, há a presunção (sempre ilidível) de que os serviços postais procederam à respetiva entrega ao destinatário em prazo normal. Para as notificações judiciais vigora a regra de que elas se consideram feitas no terceiro dia posterior à data do registo (ou no primeiro dia útil imediatamente subsequente). […]»
Não cabe ao Tribunal Constitucional tomar posição sobre qual a correta interpretação desta norma, no plano infraconstitucional. Compete-lhe apenas apreciar se a interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida é ou não desconforme com normas ou princípios constitucionais, designadamente, os invocados nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 2, 202.º, n.º 2, e 204.º, da Constituição.
Estando-se, no caso, perante a notificação de um ato administrativo, não se poderá deixar de ter também em consideração o disposto no n.º 3 do artigo 268.º da Constituição, o qual dispõe que «Os atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos.»
Esta norma tem origem na revisão constitucional de 1982, na sequência da qual passou a estar consagrado no artigo 268.º, n.º 2, da Lei Fundamental que «os atos administrativos de eficácia externa estão sujeitos a notificação aos interessados, quando não tenham de ser oficialmente publicados, e carecem de fundamentação expressa quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos.» Ou seja, estabeleceu-se o dever de os atos administrativos com eficácia externa serem notificados aos interessados, dever esse que, no entanto, era limitado aos casos em que os atos administrativos não tinham de ser oficialmente publicados.
Com a revisão constitucional de 1989 alargou-se o âmbito deste dever de notificação, que passou a estar consagrado, no artigo 268.º, n.º 3, em relação a todos os atos administrativos com eficácia externa, independentemente de deverem ou não ser obrigatoriamente publicados.
Finalmente, na revisão constitucional de 1997, para além do dever de notificação e de fundamentação expressa dos atos administrativos, acrescentou-se a exigência da fundamentação destes atos ser acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos.
Os fundamentos da consagração constitucional deste dever de notificação que impende sobre a Administração encontram-se sintetizados no Acórdão n.º 72/2009 do Tribunal Constitucional (acessível na Internet, tal como os restantes acórdãos que infra se referem sem outra menção, em www.tribunalconstitucional.pt), no qual, a este propósito, se refere o seguinte:
«[…]
A razão de ser desta opção constitucional reside na tutela de dois diferentes valores que se reconduzem, no essencial, a dois princípios estruturantes do nosso ordenamento jurídico: de um lado, o princípio da segurança (ínsito na ideia de Estado de Direito), do qual decorre a necessária cognoscibilidade, por parte dos destinatários dos atos da Administração, de todos os elementos que os integrem; de outro lado – mas de forma indissociável do primeiro – o princípio da tutela jurisdicional efetiva, dado que só será impugnável o que for cognoscível.
Daqui decorre a relação estreita que se estabelece, a este propósito, entre o disposto no nº 3 e o disposto no nº 4 do artigo 268º da CRP. O dever de notificação vem consagrado no nº 3. Tal dever tem, como acabou de se ver, uma razão de ser ou um fundamento autónomo, na medida em que é ele próprio concretização de uma ideia mais vasta de segurança – ou da necessária cognoscibilidade de todos os atos do poder –, que vem inscrita no princípio do Estado de direito. Mas é este um dever que se justifica por ser, ele também, instrumento de realização do princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no nº 4 do mesmo artigo, dado que, se não forem cognoscíveis os atos da administração, se não poderá nunca vir a garantir a efetiva proteção judicial dos «direitos e interesses» dos administrados.»
Desta norma constitucional resulta inequívoco que é ao legislador ordinário que é deixada a tarefa de concretizar a forma como é efetuada a notificação, a qual deverá, no entanto, ser constitucionalmente adequada. Significa isto que, ao regular o modo como deverá ser efetuada a notificação dos atos administrativos, embora o legislador possa ter em conta o interesse na celeridade e eficácia processuais, não poderá fazê-lo em termos excessivos e desproporcionados, não pode deixar de conciliar tal interesse com as exigências de segurança e de certeza compatíveis com a garantia do efetivo conhecimento do ato, transmitido ao seu destinatário em condições seguras e idóneas para o exercício oportuno dos meios de reação previstos, por forma a que se mostre observado o princípio constitucional da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
Embora a propósito de outras normas que não a que está em causa nos presentes autos, o Tribunal Constitucional já se pronunciou diversas vezes sobre questões em que estava em causa o formalismo exigível para a realização de citações e notificações no domínio do direito processual. Essa jurisprudência tem assentado na ideia de que o regime a que obedece a realização de tais atos deve sempre assegurar a possibilidade de defesa efetiva, sendo pacífico o entendimento de que a proibição de indefesa se contém no princípio mais vasto de acesso ao direito e aos tribunais, constante do artigo 20.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
Assim, no domínio do processo civil, mas com interesse para a questão que ora nos ocupa, o Tribunal Constitucional já se pronunciou por diversas vezes relativamente a normas que previam, mediante certos formalismos, a citação do réu por via postal simples, instituída pelo Decreto Lei n.º 183/2000, que aditou o artigo 236.º-A e alterou a redação do artigo 238.º, ambos do Código de Processo Civil, e que foi posteriormente revogada pelo Decreto Lei n.º 38/2003, de 8 de março.
Assim, no Acórdão n.º 287/2003 o Tribunal julgou «inconstitucional, por violação dos princípios da “proibição da indefesa“ e do “processo equitativo“, consagrados no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 238º nº 2 do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de, em ação declarativa que se segue ao procedimento de injunção em que se frustrou a notificação por carta registada com aviso de receção do requerido, e não havendo estipulação de domicílio no contrato de que emerge a pretensão condenatória, dever o réu ser imediatamente citado por via postal simples, sem que o tribunal deva averiguar previamente, por consulta das bases referenciadas no n.º 1 do mesmo artigo 238º do CPC, se a residência indicada pelo credor coincide com o teor dos registos públicos constantes daquelas bases».
Escreveu-se nesse acórdão:
«7 – Ora, no caso em apreço, seguindo esta linha jurisprudencial, o que importa decidir é se, no balanceamento daqueles princípios e interesses, referidos no acórdão que se acabou de transcrever, a solução legislativa em causa – tal como o julgador a interpretou – ofende desproporcionadamente os direitos de defesa do demandado, pela forma adotada de comunicação da propositura da ação, nomeadamente se ela oferece as garantias mínimas de segurança e fiabilidade em termos de se não tornar impossível ou excessivamente difícil a ilisão da presunção de efetivo recebimento da citação, defendendo-se contra a eventualidade de ausências ocasionais.
E recorde-se, uma vez mais, que a interpretação judicial em causa – afastada por inconstitucionalidade – se configura nos seguintes termos:
Em caso de cobrança de um crédito inferior à alçada da 1ª instância, emergente de um contrato escrito, sem domicílio convencionado, a citação do demandado, na ação subsequente ao processo de injunção em que se frustrou a notificação por carta registada endereçada para o domicílio indicado pelo autor, deve fazer-se por via postal simples, sem prévia consulta às bases referidas no artigo 238º nº 1 do CPC.
Entende-se que esta “norma“ ofende o disposto no artigo 20º da Constituição.
Tem, com efeito, razão o recorrente quando sustenta que deste modo se confere uma tutela desproporcionada ao interesse da celeridade no andamento dos processos “desvalorizando, concomitantemente, as exigências de segurança e justiça e o cabal cumprimento da regra do contraditório“.
De facto, tal “norma“ acaba por fazer aplicar aos casos em que não há domicílio convencionado – e, consequentemente, não há por parte do devedor o dever de informar o credor das alterações do domicílio, nem a obrigação de controlar periodicamente o correio depositado no recetáculo postal do domicílio – o regime previsto para as situações de domicílio pactuado.
Com este regime, em que não há qualquer comprovação de exatidão do dado referente ao domicílio do réu (não se consultam as bases referidas no artigo 283º nº 1 do CPC), torna-se extremamente oneroso ou mesmo impossível a ilisão da presunção de depósito da carta simples no recetáculo postal daquele domicílio (a prova de um facto negativo), sendo certo que a certificação do depósito é feita pelo distribuidor do servidor postal que, como diz o recorrente, “não pode considerar-se um funcionário público provido de fé pública“.
Trata-se, pois, de uma situação em que se pressupõe o efetivo conhecimento da petição, por parte do réu, quando o depósito da carta simples não representa um índice seguro da sua receção e difícilmente pode ser ilidido. Tudo com a consequência de a falta de contestação gerar a condenação de preceito consagrada no artigo 2º do “Regime dos Procedimentos“ anexo ao Decreto-Lei nº 269/98 e a subsequente execução do réu.
Mostra-se, assim, violado o princípio constitucional da “proibição da indefesa“ e a exigência de um “processo equitativo“, ínsitos no artigo 20º da CRP.»
Posteriormente, através dos Acórdãos n.º 91/2004 e 243/2005, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a referida norma do n.º 2, do artigo 238.º, do Código de Processo Civil. Nestes acórdãos a situação era diversa da apreciada no Acórdão n.º 287/2003, pois havia sido inicialmente tentada a citação através de carta registada com aviso de receção, que resultou frustrada por a carta não ter sido reclamada pelo destinatário, e a secretaria procedera a pedidos de informação às entidades oficiais e a consulta das aludidas bases de dados, tendo sido expedidas cartas postais simples para todos os endereços apurados.
Já no Acórdão n.º 182/2006 o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 236.º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de agosto. Tal norma possibilitava, nas ações para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato reduzido a escrito, a citação mediante o envio de carta simples, dirigida ao citando e endereçada para o domicílio ou sede que tenha sido inscrito naquele contrato para identificação da parte, exceto se esta tiver convencionado um outro local onde se deva considerar domiciliada ou sedeada para efeitos de realização da citação em caso de litígio, não se exigindo, em tais situações, ao contrário do que sucedia na previsão do artigo 238.º do Código de Processo Civil, nem a prévia tentativa (frustrada) de citação por via postal registada, nem a consulta de bases de dados para controlo da correção da indicação da morada do citando.
Considerando que estava em causa, neste caso, tão-só a fiabilidade da tramitação desta forma de citação, o Tribunal entendeu «que o legislador rodeou a utilização deste modo de comunicação de atos de especiais cautelas: exige que o oficial de justiça lavre cota no processo com a indicação expressa da data da expedição da carta simples ao citando ou ao notificando e do domicílio ou sede para a qual foi enviada (n.º 5 do artigo 236.º-A do CPC e n.º 2.º da Portaria n.º 1178-A/2000, de 15 de dezembro) e exige que o distribuidor do serviço postal emita duas declarações escritas (uma no verso do sobrescrito depositado e a outra na prova de depósito, que deve destacar do sobrescrito e enviar de imediato ao tribunal remetente) de que efetuou o depósito da carta na caixa de correio do citando ou do notificando, confirmando o local exato deste depósito, indicando a respetiva data e apondo a sua assinatura de forma legível (n.º 6 do artigo 236.º-A do CPC e n.º 3.º da Portaria n.º 1178-A/2000). A isto acresce que eventual falsa declaração de depósito fará incorrer o distribuidor de serviço postal seu autor em infracção disciplinar e mesmo, caso exista intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, infração criminal (artigo 256.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal)».
Considerou ainda o Tribunal que «não surge como excessivamente oneroso para os particulares destinatários das comunicações judiciais, no âmbito do dever de colaboração com a administração da justiça, enquanto manifestação de uma cidadania responsável, a manutenção, em condições de segurança, de recetáculos para a correspondência postal que lhes seja dirigida e a consulta regular da mesma. Ao que acresce a previsão, no n.º 3 do artigo 252.º-A do CPC (na redação do Decreto-Lei n.º 183/2000, alterada pela Lei n.º 30-D/2000, de 20 de Dezembro), de que ao prazo de defesa do citando acresce uma dilação de 30 dias quando a citação haja sido por via postal simples, o que previne situações de eventuais ausências temporárias do citando da sua residência.»
Assim, o Tribunal acabou por concluir que:
«Neste contexto, associando, por um lado, as particulares cautelas previstas pelo legislador para evitar a ocorrência de erros na tramitação deste meio de comunicação, com clara identificação de todos os passos dessa tramitação e respetivos responsáveis, com, por outro lado, a colaboração razoavelmente exigível aos destinatários das comunicações, e ainda, por último, a concessão da aludida dilação, impõe-se a conclusão de que o sistema instituído oferece suficientes garantias de assegurar, pelo menos, que o ato de comunicação foi colocado na área de cognoscibilidade do seu destinatário, em termos de ele poder eficazmente exercitar os seus direitos de defesa, o que é o suficiente para não dar por verificada a violação dos princípios da proibição da indefesa e do processo equitativo.»
Por sua vez, no acórdão n.º 632/2006, o Tribunal decidiu «julgar inconstitucional, por violação do artigo 20º da Constituição, a norma constante do artigo 238° do Código de Processo Civil, na redação emergente do Decreto-Lei n.º 183/00, ao estabelecer que se presume, em termos absolutos e irremediáveis, que o citando reside ou trabalha em algum dos locais referenciados nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da Segurança Social, da Direção-Geral dos Impostos e da Direção-Geral de Viação, ficcionando-se que o demandado teve oportuna cognoscibilidade da pretensão contra ele formulada através do simples depósito de carta nos respetivos recetáculos postais – e quando foi demonstrado pelo réu que, à data do depósito da carta na caixa do correio, já não residia no local – ficando sujeito ao consequente efeito cominatório da revelia e ao caso julgado, formado no caso de procedência da pretensão, qualquer que seja o montante desta.»
Estava em questão, neste caso, a norma do artigo 238.º do Código de Processo Civil, na redação do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 1 de agosto, interpretada no sentido de presumir, nos casos em que se frustra a citação por via postal registada, que o citando reside em algum dos locais referenciados nas bases de dados dos serviços públicos indicados no preceito, consumando-se a citação, com o mero depósito de carta simples no recetáculo postal das residências presumidas, independentemente de o citando ter ou não efetivo e oportuno conhecimento da existência do ato e do respetivo conteúdo.
Escreveu-se neste acórdão:
«Com efeito, afigura-se desproporcionado, em face das respetivas consequências referidas supra, considerar definitivamente como atual, isto é, sem qualquer possibilidade de infirmação, a morada que consta das bases de dados indicadas nos autos em questão e presumir que a citação por via postal simples é suficiente para assegurar a cognoscibilidade da pretensão do demandante e para assegurar o direito de defesa, mesmo nos casos em que foi alegado e demonstrado que, à data do depósito da carta no recetáculo postal, o demandado já não residia no local.
Não procede contra este entendimento o argumento segundo o qual impende sobre os sujeitos o ónus de manter atualizadas as informações constantes dessas bases de dados. De facto, não está em causa um litígio que oponha o sujeito e uma das instituições que detêm as bases de dados (o que poderia merecer uma ponderação diversa), mas sim um litígio entre particulares surgindo um contexto (responsabilidade civil extracontratual) no qual não faz sequer sentido invocar um domicílio eletivo ou convencional.»
Mais recentemente, no Acórdão n.º 376/2010, decidiu o Tribunal Constitucional «não julgar inconstitucional a norma do artigo do artigo 238º do CPC, segundo a redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de agosto».
Da análise desta jurisprudência, resulta que o Tribunal Constitucional tem mantido uma linha de orientação no sentido de que não são inconstitucionais as normas que prevejam a possibilidade de citação ou notificação de atos processuais por via postal simples e que presumam o seu conhecimento pelo destinatário, desde que tais presunções sejam rodeadas das cautelas necessárias a garantir a possibilidade de conhecimento efetivo do ato por um destinatário normalmente diligente, ou seja, desde que o sistema ofereça suficientes garantias de assegurar que o ato de comunicação foi colocado na área de cognoscibilidade do seu destinatário, em termos de ele poder eficazmente exercer os seus direitos de defesa.
Poderá dizer-se, a exemplo do que acontece no regime da notificação dos atos processuais no âmbito do processo civil, que também em matéria de notificação dos atos administrativos a regulamentação jurídica da notificação dos atos processuais mediante via postal procura articular flexibilidade e simplificação com a garantia da efetiva comunicação.
Deste modo, e no que para o caso releva, importa apreciar, desde logo, se as formalidades da notificação postal prevista no artigo 70.º, n.º a, al. a) do Código de Procedimento Administrativo, na interpretação aplicada pela decisão recorrida, são suficientes para assegurar o efetivo conhecimento do ato administrativo em causa, segundo um critério de normal diligência do seu destinatário, por forma a que não seja colocada em causa a garantia constitucional de impugnação dos atos administrativos, ou se, pelo contrário, tal interpretação normativa afeta a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial do respetivo destinatário, em violação das exigências decorrentes do n.º 3, do artigo 268.º, ou do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
Por outro lado, cumpre ainda analisar se as referidas formalidades oferecem garantias mínimas e razoáveis de segurança e de fiabilidade, de modo a que não se crie para o notificado um circunstancialismo tal que torne praticamente impossível ilidir uma presunção do efetivo recebimento da notificação, ou em que impenda sobre este um ónus excessivo de provar um facto negativo, isto é, de demonstrar que certa carta não foi recebida nem depositada, em determinado momento, no seu recetáculo postal.
Ora, no caso dos autos, mesmo que se admita que a carta para notificação foi enviada para o domicílio indicado pelo requerente do apoio judiciário e constante do respetivo processo administrativo de concessão de proteção jurídica, o certo é que, tendo sido já sido decidida a concessão do apoio judiciário, o requerente não poderá razoavelmente contar com a possibilidade de uma eventual nova notificação relativa a um hipotético cancelamento do apoio judiciário concedido. Não pode, por isso, desde logo, ser afastado quer o risco de ausência ocasional, quer o risco de extravio da carta, de cujo envio não existe registo, o que torna extremamente difícil para o destinatário afastar uma eventual presunção de oportuna receção da carta, demonstrando que esta, sem culpa da sua parte, não foi recebida no seu domicílio.
Assim, não se poderá dizer que através desta forma de notificação se mostre suficientemente acautelado o conhecimento, por parte do requerente do apoio judiciário já concedido, do ato de notificação da decisão no sentido de o mesmo lhe ter sido cancelado.
Acresce que a tramitação associada a esta forma de notificação, nos termos em que foi efetuada nos atos – mero envio, segundo informação prestada pela entidade administrativa em causa, de carta por via postal simples – não oferece suficientes garantias de fiabilidade e segurança.
Com efeito, não está, no caso, associada ao envio da notificação por via postal simples qualquer cautela ou formalidade adicional. Designadamente, não é exigível que o funcionário administrativo que procedeu ao envio da carta lavre qualquer informação no processo administrativo, com indicação da data da expedição da carta e do domicílio para onde foi enviada, não se exige que o distribuidor postal certifique, mediante qualquer documento ou declaração escrita por si assinada, o dia em que tenha procedido ao depósito da carta e a morada em que o fez, nem se exige qualquer outra formalidade que permita saber, com um mínimo de segurança, designadamente, se a carta foi efetivamente enviada e para que morada, qual a data da sua expedição, se a carta foi efetivamente entregue ou depositada no recetáculo postal do seu destinatário e em que data tal se verificou. Acresce que também não é exigível, ao contrário do que acontece noutras situações em que a lei admite a possibilidade de citação e/ou notificação por via postal simples, que tenha havido uma anterior tentativa frustrada efetuada por via postal registada, nem que se efetue qualquer procedimento no sentido de se apurar se a morada para a qual se envia a carta corresponde efetivamente à morada do destinatário.
Pelo exposto, estando-se perante uma situação em que se pressupõe o efetivo conhecimento de um ato administrativo, quando o envio de carta simples para notificação deste não representa um índice seguro da sua receção e dificilmente pode ser ilidido, forçoso é concluir que interpretação normativa sindicada afeta a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz do respetivo destinatário, em violação das exigências decorrentes do n.º 3 do artigo 268.º da Constituição e do princípio constitucional da “proibição da indefesa”, ínsito no artigo 20.º também da Constituição.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) julgar inconstitucional a interpretação normativa extraída do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), do Código do Procedimento Administrativo, no sentido de que, existindo distribuição domiciliária na localidade de residência do notificado, é suficiente o envio de carta, por via postal simples, para notificação da decisão de cancelamento do apoio judiciário, proferida com fundamento no disposto no artigo 10.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, por violação dos artigos 268.º, n.º 3 e 20.º, n.º 1, da Constituição.
b) conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 26 de setembro de 2012.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.