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Proc. nº 548/2000
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A, opôs embargos ao arresto de dois lotes, integrantes do prédio rústico destinado à construção urbana, denominado ..., em Vila Nova de Gaia. O arresto havia sido requerido por B, e foi decretado por a requerente ser credora da requerida e por os únicos bens desta serem alguns lotes de terreno da mencionada quinta, que iriam ser dados em pagamento de dívidas para com um outro credor. O Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, na sentença de 22 de Janeiro de 1999, entendeu o seguinte: Sendo estes os factos que fundamentaram o arresto, tendo em consideração o que dispõe o art. 406°, nº 1 do Código de Processo Civil e a distribuição do ónus da prova a que fizemos referência, entendemos que para os presentes embargos serem julgados procedentes seria necessário que os embargantes / arrestados demonstrassem nestes autos, pelo menos uma das seguintes situações a) a embargante possui no seu património outros bens para além dos imóveis arrestados e suficientes para a eventual garantia do crédito dos embargados. b) não ser verdade que a embargante tenha procurado alienar esse bem imóvel. Ora, dos factos apurados não resulta, sendo certo que impendia sobre a embargante o ónus da prova, que possui outros bens para além dos arrestados e que não pretendiam nem pretendem aliená-los. Em consequência julgou os embargos improcedentes e manteve o arresto decretado sobre as fracções.
2. A, interpôs recurso da sentença de 22 de Janeiro de 1999 para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 12 de Outubro de 1999, negou provimento ao recurso.
3. A, interpôs recurso do acórdão de 12 de Outubro de 1999, para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas respectivas alegações, sustentou o seguinte: G) Tal, de resto, também configuraria uma inconstitucional limitação do direito a um processo equitativo, consagrado no art. 20.º, n.º 4, da Constituição, e no art. 3.º, do C. P. Civil, na redacção anterior à Reforma do Processo Civil, instituída pelos Decretos-Lei nºs 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/9, inconstitucionalidade essa que vai suscitada, com referência ao entendimento perfilhado no douto acórdão recorrido relativamente ao nº 1 do art. 406., do C. P. Civil, de que decorreria a necessidade do embargante dever sempre alegar e provar factualidade alternativa, incompatível com a que fundamentou a providência cautelar; O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 22 de Março de 2000, considerou o seguinte: Quando é notificado do arresto e convocado para exercer o direito de oposição, o arrestado confronta-se, assim, com uma prova de primeira aparência, um princípio de prova, que o força a um esforço alegatório e probatório algo mais exigente do que o que, normalmente, é necessário ao réu, perante os factos constitutivos do direito invocado pelo autor (àquele bastará, respaldado no princípio consagrado no n.º 1, do art° 342°, CC, impugnar os factos, exercer sobre eles uma negação simples, pois caberá ao autor todo o trabalho de transformar a dúvida inicial do juiz numa certeza moral sobre a veracidade dos factos afirmados, na plena convicção de que acima falamos); o arrestado, confrontado com aquela prova de primeira aparência, com tal princípio de prova, é, desde logo, forçado, como se disse, a um exercício mais exigente e duro: terá de produzir a contraprova, figura de técnica probatória que não visa a prova do contrário mas, apenas, fazer que volte ao juiz o estado de dúvida ou incerteza que precedera a produção da prova de primeira aparência.
4. Vistas, assim, as coisas, está claro que o embargante não poderá limitar-se a impugnar os factos que serviram de fundamento ao arresto, pois, sobre estes, já recaiu um princípio de prova que é mister atacar . Para abalar e destruir aquele juízo de probabilidade acerca dos ditos factos sumariamente provados, não resta ao embargante outra atitude impugnatória que não seja a de alegação e prova de factos que contrariem aquele juízo, e que tanto poderá concretizar-se naquilo que, aplicado à contestação, se designa por impugnação motivada, como na alegação e prova de factos que abalem a credibilidade das testemunhas cujos depoimentos foram decisivos para a fundamentação da providência (cfr. art° 406°, n.º 4, CPC67). A simples impugnação por negação só é eficaz quando, sobre a parte contrária, recai o ónus da prova. Consequentemente, negou provimento ao recurso.
4. A, arguiu a nulidade do acórdão de 22 de Março de 2000, com os seguintes fundamentos:
1 - Compulsado o teor do douto acórdão recorrido, constata-se que, na sua parte final, e quanto à questão de inconstitucionalidade no mesmo suscitada, se perspectiva a mesma face ao disposto no art. 29.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, preceito este relativo à lei criminal;
2 - Ora sucede que a questão inconstitucionalidade suscitada não se reporta ao disposto no art. 29.º, n.º 4, da Lei Fundamental, mas, antes, ao art.º 20.º, n.º
4, da Constituição, pelo que, com o devido respeito se não tomou conhecimento da questão que efectivamente se suscitou, incorrendo-se na nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 668.º, do C. P. Civil - cfr . ítens VIII a X das alegações e al. G) das conclusões.
3 - Na alínea J) suas alegações, por manifesto e ostensivo lapso de escrita, faz-se referência ao art. 29.º, n.º 4, da Constituição, lapso esse que se requer seja rectificado, e que, embora com o concurso involuntário da agravante, de que esta se penitencia, terá determinado o conhecimento de uma segunda questão de inconstitucionalidade, distinta da que consta dos ítens VIII a X das alegações e al. G) das conclusões e da qual se não tomou conhecimento nos termos supra referidos. O Supremo Tribunal de Justiça prolatou o seguinte acórdão:
1. A recorrente arguiu a nulidade do acórdão final, por omissão de pronúncia
(art. 668°, n.º 1, d, 1ª parte, CPC), e, apesar da dose de responsabilidade que lhe cabe, não deixa de ter razão. Na verdade, embora termine as alegações a pedir que se repare a violação do n.º
4, do art° 29°, Const, assim nos induzindo em erro, certo é que, tanto no texto das alegações como no desenvolvimento das conclusões, a referência é ao art°
20°, n.º 4, daquele diploma fundamental, e não ao art° 29°, n.º 4. O lapso é relevável, como vem pedido, e, portanto, há que conhecer da questão de constitucionalidade na perspectiva do citado n.º 4, do art° 20°.
2. Neste campo, dir-se-á que também não existe inconstitucionalidade
(material). Dizer que o n.º 1, do art° 406°, CPC (versão de 1967) fere os princípios subjacentes àquela disposição de direito fundan1ental, designadamente, o do direito a um processo equitativo, é esquecer a natureza e função dos procedimentos cautelares e o papel de guarda avançada que representam no sistema de meios de exercício e de tutela dos direitos. Tal como é dito no texto do acórdão, a urgência e a provisoriedade das decisões tomadas em procedimentos cautelares, como é o caso do arresto, justificam a sumaria cognitio que é própria daquela categoria especial de processos, e tornam aceitável que a impugnação dos fundamentos daquela providência se não deva ficar por uma simples negação pura. O princípio de prova que subjaz ao decretamento do arresto implica, para o embargante, um exercício alegatório e probatório mais pesado do que o normalmente exigido, em processo declaratório, àquele contra quem o direito é invocado. Sem ir ao ponto de onerar o embargante com a prova do contrário, o art° 406°, n.º 1, citado, apela, tão só, ao exercício da contraprova, que é o natural contraponto do chamado princípio de prova, ou da chamada prova de primeira aparência que constituem o sustentáculo de qualquer providência cautelar. Entendido assim (como foi), o velho art° 406°, n.º 1, distribui com equidade os
ónus alegatório e probatório entre o beneficiário da providência e o embargante, sem desequilíbrios injustificados, sem impossibilitar a afirmação, ou negação, e prova dos direitos em causa, e sem a imposição de ónus incomportáveis ou inexequíveis.
3. Pelo exposto, deferem a reclamação, e, suprindo a nulidade, julgam improcedente a questão de constitucionalidade levantada no recurso, confirmando, assim, a negação da revista. Sem custas, mantendo-se, porém, a condenação, a tal respeito, constante do acórdão, de que este passa a fazer parte integrante.
5. A, interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo
70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma do nº 1 do artigo 406º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à resultante da reforma de 1995, quando interpretada no sentido de não permitir a um «arrestado, contra quem foi decretada providência cautelar sem a sua audiência, defender-se posteriormente através de embargos em que procede à negação pura e simples dos factos que se consideraram provados sem o seu contraditório, mormente, em caso de arresto, com a negação da factualidade que consubstancia o justo receio de perda da garantia patrimonial, impondo-lhe assim um ónus de contraprova, além de '(...) um exercício alegatório (...) mais pesado que o normalmente exigido, em processo declaratório (...)'». Junto do Tribunal Constitucional a recorrente concluiu as suas alegações do seguinte modo: A) Na sua petição de embargos ao arresto, a aqui recorrente, conforme se alcança do teor dos arts.º 29.º e 30.º dessa peça, impugnou o único facto que poderia subsumir-se ao requisito dessa providência cautelar, estabelecido no art.º 403.º, n.º 1, do C. P. Civil, de justificado receio de perda da garantia patrimonial, reputando-o de falso, tendo essa matéria sido incluída como quesito
2.º (fls.94) do douto questionário elaborado na primeira instância, sendo que, após a produção de prova mediante audiência contraditória das partes, essa mesma matéria foi considerada não provada; B) Não obstante, o arresto foi mantido quer nas instâncias, quer no Supremo Tribunal de Justiça, propugnando-se no douto acórdão proferido por este último Supremo Tribunal, que se impunha, face ao disposto no n.º 1 do art.º 406.º, do C. P. Civil, que a aqui recorrente, em sede de oposição, através de embargos, à providência cautelar de arresto, nesse meio de defesa fosse mais além de uma simples negação pura, já que aquele normativo implica, '(...) para o embargante, um exercício alegatório e probatório mais pesado do que o normalmente exigido, em processo declaratório, àquele contra quem o direito é invocado.' C) O carácter urgente e provisório das providências cautelares, justifica, sem dúvida, que estas possam ser decretadas sem audiência prévia da parte contra quem são requeridas, não se vislumbrando, porém, que após serem decretadas, ainda demandem um exercício alegatório e probatório mais exigente que o das restantes providências cautelares que são decretadas com audiência prévia, e, até, do que o sucede nas acções (declarativas, por regra) principais de que dependem, já que, nestas últimas situações, tal forma de defesa é amplamente admissível D) Decorrem, da doutrina adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça, outras consequências : (1) o requerente de uma providência cautelar que, por lei ou despacho judicial relativo ao caso concreto, haja logrado que a mesma fosse decretada sem a audiência da parte requerida, obterá, por essa simples circunstância, o prémio de ainda onerar mais aquele contra quem a providência é decretada, no que se refere à alegação e prova da inexistência dos respectivos fundamentos da providência; (2) na espécie destes autos, um facto que, após audiência contraditória da parte é considerado não provado, é, ainda assim, ultra-eficaz, continuando a fundamentar a providência decretada, além, de que se prefere um juízo de verosimilhança ao da certeza que decorre de. não se ter provado um determinado facto após as provas produzidas por ambas as partes; E) Reconhecendo-se que o legislador, ponderando certos valores e bens jurídicos, mormente os referentes à exigência de que seja garantida uma tutela efectiva e atempada dos direitos dos cidadãos, possa, em situações excepcionais, deferir para um momento ulterior ao decretamento da providência judiciária, a oportunidade para a dedução de tais meios de defesa, não se concede, porém, é a possibilidade do legislador, justamente em tais situações, comprimir não só a oportunidade como, posteriormente, a amplitude ou âmbito que esses meios de defesa terão de observar, como resulta da interpretação empreendida no douto acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, quanto ao disposto no art.º
406.º, n.º 1, do C. P. Civil, que, assim, deve considerar-se inconstitucional neste caso concreto, face ao n.º 4 do art.º 20.º, da Constituição . A recorrida não contra-alegou. Após distribuição à ora Relatora em 6 de Janeiro de 2003, por o anterior Relator ter cessado funções no Tribunal Constitucional, cumpre apreciar e decidir.
II Fundamentação
6. A recorrente submete à apreciação do Tribunal Constitucional a norma do nº 1 do artigo 406º do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de exigir o exercício de contraprova ao embargante de arresto decretado. A recorrente considera que tal dimensão normativa viola o direito a um processo equitativo, uma vez que o arresto é decretado sem audição do titular dos bens arrestados, sendo a fase de embargos o primeiro momento em que este tem possibilidade de se pronunciar. Ora, cabe sublinhar que o arresto, para ser decretado, pressupõe a realização de uma actividade probatória cujo resultado terá de ser a demonstração da existência de indícios do direito invocado pelo requerente e do perigo na demora inerente à acção principal (cf. artigo 384º do Código de Processo Civil). É verdade que a providência é decretada sem audição da parte contrária. Tal circunstância apoia-se, porém, na natureza cautelar da providência, no seu modo de eficácia e no seu carácter acessório (cf. artigo 385º, nº 1, do Código de Processo Civil). De resto, o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 163/2001
(inédito) já se pronunciou sobre tal questão, tendo decidido não julgar inconstitucional a norma do artigo 408º, nº 1, do Código de Processo Civil. Sendo, pois, o arresto decretado na sequência de uma actividade probatória tendente a demonstrar a existência (ainda que indiciária) do direito e do perigo na demora, corresponde a uma certa repartição do ónus da prova a exigência de contraprova ao titular dos bens que pretende, por via de embargos, impugnar o arresto. Na verdade, estando nos autos demonstrado, através de actividade probatória específica, a existência de indícios dos factos constitutivos do direito da requerente, não teria qualquer fundamento admitir como meio procedente de impugnação desses indícios a mera alegação de factos contrários sem um mínimo de exigência quanto à prova, ainda que sumária, desses mesmos factos. Trata-se, no essencial, de abalar a convicção do julgador formada com a prova necessária para que seja decretado o arresto, o que exige, naturalmente, a contraprova inerente. Não será este sistema o único possível nem é, obviamente, imposto deterministicamente pela natureza da providência, sendo constitucionalmente aceitáveis outras soluções, mas não substancia qualquer afectação constitucionalmente intolerável do direito a um processo equitativo ou do princípio do contraditório. Conclui-se, pois, que não se verifica qualquer violação do artigo 20º, nº 4, da Constituição, nem do princípio do contraditório. Com efeito, não estando agora em apreciação a norma do artigo 408º, nº 1, do Código de Processo Civil, os embargos constituem um mecanismo adequado para o titular dos bens se pronunciar sobre o arresto requerido. Improcede, portanto, o presente recurso.
III Decisão
7. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 406º, nº 1, do Código de Processo Civil, na redacção anterior à reforma de 1995, quando interpretada no sentido de exigir ao embargante do arresto a contraprova dos factos fundamento do arresto, confirmando consequentemente a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 12 de Fevereiro de 2003 Maria Fernanda Palma Mário Torres Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida