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Proc. nº 322/03 TC – 1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea a) da LTC, do acórdão de fls. 6195 e segs., dizendo no respectivo requerimento de interposição:
'O Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal vem interpor recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional do acórdão prolatado em 27 p.p. nos autos em epígrafe indicados (fls. 6195 a 6210), na medida em que não aplicou a norma constante do artº 40º do Código Penal, declarando-a inconstitucional por violação do artº 32º n.ºs 5 e 1 da CRP, quando interpretada no sentido de que apenas o juiz que em inquérito ou instrução aplica a medida de prisão preventiva ao arguido e posteriormente a mantém está impedido de intervir em julgamento.
O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto nos artºs 72º, n.º 3, 75º, n.º 1, 75º-A, n.º 1 e 78º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional), é de subida imediata e nos próprios autos e tem efeito suspensivo.
..............................................................................................'
Admitido o recurso no tribunal 'a quo', foram os autos remetidos a este Tribunal.
O relator determinou a produção de alegações.
O Ministério Público alegou, formulando as seguintes conclusões:
1 - A fiscalização concreta da constitucionalidade está indissoluvelmente ligada à especificidade do caso 'sub judice', apenas cumprindo ao Tribunal Constitucional sindicar da concreta e específica dimensão normativa, aplicável a esse caso, configurando-se como mero 'obter dictum' quaisquer considerações que - versando sobre casos ou situações meramente hipotéticas ou conjecturais - apreciem em abstracto a constitucionalidade de um preceito legal, em dimensões não convocáveis para a situação fáctica ou processual efectivamente verificada.
2 - Face ao teor do próprio acórdão recorrido, a dimensão normativa do artigo 40º do Código de Processo Penal que constitui objecto do presente recurso
é a que se traduz em saber se é conforme à Lei Fundamental a interpretação normativa de tal preceito, segundo a qual não estaria impedido de participar no julgamento o juiz que, no turno, logo no início do inquérito, procedeu ao interrogatório de quatro arguidos que lhe foram apresentados e decretou a respectiva prisão preventiva, autorizando concomitantemente, nessa mesma data, a realização de uma busca domiciliária.
3 - Tal dimensão normativa não colide com os princípios do acusatório e da independência e imparcialidade, objectivas e subjectivas, do juiz do julgamento, por não se configurar relevante tal actuação processual, isolada e liminar, em termos de dever determinar automaticamente o impedimento para intervir no julgamento.
4 - Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com a constitucionalidade da interpretação normativa desaplicada pelo tribunal recorrido.'
Em contra-alegações, os recorridos concluíram:
' - Os arguidos dão por integralmente reproduzidos os fundamentos e as conclusões do douto acórdão recorrido.
- Na verdade, como muito bem acentua o douto acórdão, a conclusão 'a retirar' é a de que o preceito ínsito no artº 40º do Código Processo Penal, ao permitir o entendimento 'restritivo de que, apenas o Juiz que no inquérito ou instrução tiver aplicado e posteriormente tiver mantido a prisão preventiva do arguido, está impedido de participar no julgamento, é inconstitucional, por violação do disposto no artº 32º n.ºs 5 e 1 da Constituição da República e ainda de que a sua aplicação apenas com esse âmbito é de recusar, por inconstitucional, acrescentando que se deve concluir que toda a intervenção de um Juiz em sede de inquérito ou em instrução, que se não traduz na realização de meros actos de expediente e que impliquem uma tomada de posição, com a valoração dos indícios até então recolhidos, deve ser motivo de impedimento.
- A imparcialidade dos Juízes e bem assim o julgamento que efectua deve surgir aos olhos do público, como um julgamento imparcial e independente.
E essa confiança é essencial nas decisões dos magistrados para que os tribunais ao administrar justiça actuem de facto em nome do povo.
- Claramente não existe qualquer razão ao Ministério Público para referenciar a decisão da Justiça dinamarquesa, já que a mesma se enquadra dentro dos pressupostos previstos pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
- No julgamento da 1ª Instância interveio um Juiz que aplicou a medida de prisão preventiva a determinados arguidos entre os quais os ora contra-alegantes A., B. e C., mantendo-a posteriormente, e nesse sentido está impedida de intervir no julgamento, como o fez, para além de ter intervindo no inquérito, realizando o primeiro interrogatório e assinando mandados de busca.
- Tal situação, tendo ocorrido nestes precisos termos, determinará a existência de nulidade insanável, a qual implica a anulação do julgamento, como decidiu, e muito bem, dizemos nós, o Tribunal da Relação de Lisboa.
- Finalmente uma breve alusão, porque impõe repor a verdade dos factos, e para cabal esclarecimento sobretudo pela repercussão que teve em alguma imprensa, não foi feito, nem nunca poderia ter sido feito qualquer
'acordo de cavalheiros' sobre a participação no julgamento da Mma Juíza D., violando princípios constitucionais, como, de resto, comentou na imprensa um Mmo Juiz Conselheiro Jubilado.
..........................................................................................................'
Cumpre decidir.
2 - Começa por se assinalar que, no requerimento de interposição de recurso, o recorrente se reporta ao 'artº 40º do Código Penal', o que constitui um manifesto lapso de escrita (tal como aliás, acontece no acórdão recorrido), pois pretende-se a verificação da constitucionalidade da norma do artigo 40º do Código de Processo Penal e não do Código Penal.
Feito este reparo, que, por se tratar de mero lapso material, não obsta ao conhecimento do objecto do recurso, salienta-se que, nas suas alegações e consoante leva às conclusões, o Ministério Público restringe o objecto do recurso.
E com inteira razão.
Com efeito, é de fiscalização concreta de constitucionalidade o presente recurso, o que demanda que o seu objecto se conforme à dimensão com que a norma foi aplicada (ou recusada) na decisão recorrida.
Ora, o acórdão recorrido adopta uma formulação ampla no juízo de recusa de aplicação, por inconstitucionalidade, da norma ínsita no artigo 40º do Código de Processo Penal.
Ali se diz:
'A conclusão a retirar é a de que o preceito ínsito no artº 40º do Código Processo Penal, ao permitir o entendimento (restritivo) de que apenas o juiz que no inquérito ou instrução tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido está impedido de participar no julgamento é inconstitucional por violação dos artºs 32º, n.ºs 5 e 1 da Constituição da República e ainda a de que sua aplicação apenas com este âmbito é de recusar, por inconstitucional. Deve, em suma, concluir-se que toda a intervenção de juiz em sede de inquérito ou instrução que se não traduza em realização de meros actos de expediente e que implique uma tomada de decisão, com valoração dos indícios até então recolhidos, deve ser motivo de impedimento.'
E a concluir, escreveu-se no mesmo acórdão:
'Termos em que acordam em conferência em conceder provimento ao recurso, declarando inconstitucional o preceito contido no artº 40º do Código de Processo Penal [por manifesto lapso de escrita, escreveu-se: 'Código Penal'] quando entendido no sentido de que apenas o juiz que em inquérito ou instrução aplica a medida de prisão preventiva ao arguido, e, posteriormente, a mantém, está impedido de intervir no julgamento, em consequência, que a decisão recorrida enferma de nulidade por nela ter intervindo juiz que interveio no inquérito, realizando primeiro interrogatório e assinado mandados de busca, pelo que se anula e se ordena a repetição do julgamento (...)'.
Ora, apesar desta formulação ampla do juízo de inconstitucionalidade, o que, em bom rigor e em concreto - ou seja, tendo em conta a situação que concretamente se aprecia - se recusa, por inconstitucionalidade, é uma interpretação da norma em causa que permita a intervenção como julgador do juiz 'que interveio no inquérito realizando o primeiro interrogatório judicial dos arguidos e assinando mandados de busca'.
Poderia , pois, admitir-se ser a esta dimensão normativa - mais restrita - que se deveria conformar o objecto do recurso.
Certo é, porém, que na delimitação deste objecto, feita nas alegações do recorrente, se insere, ainda, a intervenção do juiz no decretamento da prisão preventiva dos arguidos.
Ora, se bem que nos seus termos finais, só faça relevar, expressamente, como fundamento da sua decisão, a intervenção do julgador no interrogatório inicial dos arguidos e na assinatura de mandados de busca (mais rigorosamente, trata-se de autorização para a realização de buscas, de que a assinatura dos respectivos mandados é uma mera consequência) a verdade é que o acórdão recorrido dá por assente que, no caso, a juíza que interveio no julgamento, para além de ter procedido ao interrogatório inicial dos arguidos e assinado os mandados de busca, decretou, após aquele interrogatório, a prisão preventiva dos arguidos. E, considerando os termos em que o acórdão justifica ou fundamenta a sua tese, com larga citação de acórdãos do Tribunal Constitucional onde precisamente se ponderam casos de decretamento e manutenção da prisão preventiva, concede-se que o juízo de inconstitucionalidade, concretamente em causa, derive, também, daquela circunstância.
3 - A questão de constitucionalidade a resolver configura-se, pois, nos seguintes termos:
Viola o artigo 32º n.ºs 1 e 5 da Constituição (ou qualquer outra norma ou princípio constitucional), uma interpretação do artigo 40º do Código de Processo Penal que permita a intervenção como julgadora da juíza que na fase inicial do inquérito, e, no mesmo dia, procedeu ao interrogatório inicial dos arguidos, decretou a prisão preventiva desses arguido e autorizou a realização de buscas, assinando os respectivos mandados ?
4 - É extensa a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a constitucionalidade da norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, quer na redacção inicial do preceito, quer na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
3/99, de 13 de Janeiro - o Acórdão n.º 114/95, in ATC 30º vol., págs. 665 e segs., é o primeiro sobre tal matéria.
Mas a questão dos impedimentos do julgador em processo penal tinha já sido, anteriormente, apreciada, no domínio do Código de Processo Penal de 1929, pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 135/88 in ATC, 11º vol., págs 945 e segs. que julgou inconstitucional a norma do artigo 116º daquele Código, na parte em que proibia que o juiz se declarasse impedido em acções penais por virtude de ofensas que lhe tivessem sido feitas na sua presença e no exercício das suas funções, obstando, ainda, a que se lhe pudesse opor impedimento.
Já então - tendo como parâmetro de constitucionalidade o disposto nos artigos
208º (a que actualmente corresponde o artigo 203º) e 32º n.º 1 da Constituição - o que se punha em causa eram as garantias de imparcialidade e de objectividade do julgador, necessárias para a administração da justiça e exigíveis pelas garantias de defesa dos arguidos constitucionalmente consagradas. E, desde logo, acentuando que a independência dos juizes é, antes do mais, 'uma responsabilidade que terá a 'dimensão' ou a 'densidade' da fortaleza de ânimo do carácter e da personalidade moral de cada juiz', se referiu 'a necessidade de existir um quadro legal que 'promova' e facilite aquela 'independência vocacional', garantindo a imparcialidade do julgador e assegurando 'a confiança geral' (ou 'a confiança do público') naquela imparcialidade, finalidade esta (de algum modo enquadrável na 'teoria das aparências') que o Tribunal Constitucional sempre ponderou nos juízos que depois veio a proferir sobre a matéria.
É nos Acórdãos n.ºs 219/89 e 124/90 in ATC 13º - II vol., págs.703 e segs e 15º vol., págs. 407 e segs., respectivamente, que o Tribunal Constitucional vem a desenvolver a sua doutrina sobre a acumulação de funções, orgânica ou subjectiva, do juiz em processo penal, face ao disposto no artigo 6º n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, enquanto confere ao arguido o direito a que a sua causa seja examinada por um tribunal imparcial, e ao consagrado no artigo 32º n.º 5 da Constituição enquanto impõe a estrutura acusatória para o processo penal; estava, então, em causa a constitucionalidade das normas dos artigos 365º do CPP de 1929, 59º da Lei n.º 82/77, de 6 de Dezembro e 8º do Decreto-Lei n.º 269/78, de 1 de Setembro, por força das quais as funções de emitir o despacho de pronúncia e de julgar se congregavam no mesmo juiz.
Considerou-se, no primeiro acórdão citado, que o princípio do acusatório impunha a separação da função de investigação e acusação da função de julgamento como garantia de imparcialidade do julgador. Mas como se entendeu que a pronúncia, no caso de se manter nos limites da acusação, não participa do acto acusatório, assumindo uma dimensão 'puramente garantística' - o despacho de pronúncia limitar-se-ia 'a evitar a ida a julgamento de indivíduos injustamente acusados'
- concluiu-se que as referidas normas não padeciam de inconstitucionalidade.
A mesma tese vem a fazer vencimento no segundo acórdão, onde se acentua que 'o despacho de pronúncia não representa (...) uma qualquer antecipação de um juízo de condenação do arguido' e que 'destinando-se (...) a evitar que se seja submetido a julgamento por um crime grave, nem o arguido nem o público em geral podem ver no juiz que profere esse despacho alguém que está predisposto a condená-lo'.
As garantias de imparcialidade e objectividade no julgamento continuam a ser o elemento determinante de aferição da constitucionalidade, mas neste último aresto retoma-se (no Acórdão n.º 135/88 a questão foi - como se viu - aflorada) a ponderação da aparência de imparcialidade do julgador - a imparcialidade 'aos olhos do público'.
Não pode dizer-se que, relativamente à tese vencedora, os votos de vencido exarados nestes dois acórdãos assentem num entendimento diverso do princípio do acusatório. O que é substancialmente diferente é a avaliação do despacho de pronúncia no ponto em que, sem desmerecer a dimensão garantística deste despacho, aqueles votos fazem relevar o que nele se contém de pré-juízo, de prognose, sobre a séria probabilidade de o acusado vir a ser condenado pelos factos de que é acusado - 'o juiz é necessariamente envolvido na acusação, sendo forçado a uma pré-compreensão (ainda que provisória) sobre a responsabilidade do acusado', lê-se no voto de vencido do Consº Vital Moreira). E, por outro lado, vincam a necessidade de o sistema não deixar 'qualquer lugar para a mínima suspeita da opinião pública' sobre a imparcialidade do julgador.
O Tribunal Constitucional volta a pronunciar-se no Acórdão n.º 114/95 sobre a estrutura acusatória do processo criminal e a exigência constitucional de independência dos juizes, quando chamado a ajuizar da constitucionalidade da norma do artigo 40º do CPP de 1987, na sua versão originária.
A situação concreta em causa - na base da qual foi proferido o juízo de constitucionalidade - era a de um julgador que no início de um inquérito ordenara a emissão de mandados de busca.
No aresto, depois de se citar a doutrina sustentada nos Acórdãos n.ºs 219/89 e
124/90 e a jurisprudência do TEDH sobre o artigo 6º n.º 1 da CEDH que 'reflecte a exigência de um juízo imparcial não apenas numa perspectiva subjectiva - o que o juiz pensa no seu foro íntimo em determinada circunstância é uma vertente da imparcialidade que se presume até prova em contrário - mas também numa visão objectiva, de modo a dissiparem-se quaisquer reservas: deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos (...)', escreveu-se:
'3.1 - O artigo 40º do CPP é, a esta luz, um dos instrumentos legais accionáveis, se postos em causa os valores ínsitos na estrutura acusatória do processo criminal. Não obstante, transparece dos autos uma consensual maneira de entender o preceito, não compaginável com mera interpretação literal: a letra do preceito, cingida à situação de presidência do debate instrutório, deve ser entendida como abrangendo outras situações em que um ou mais membros do tribunal desempenharam no processo outras funções de modo a considerar-se abalada a exigência de imparcialidade, como índice de crise da confiança geral na objectividade da jurisdição. A chave da questão reside, precisamente, neste ponto.
3.2 - Com efeito, nem sempre uma acumulação subjectiva funcional colocará em crise os valores acautelados. No caso sub judicio, chega-se, por maioria de razão, à conclusão que nem a imparcialidade do juiz nem a estrutura acusatória (...) fazem perigar esses valores. Na verdade, em causa está, apenas, o controle judicial da existência de indícios de ocultação, em casa habitada, de quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova (Código de Processo Penal, artigos 174º n.º 2,
177º n.º1 e 269º n.º 1 alínea a)). A intervenção do juiz é exigida pela preocupação de controlar a legalidade da diligência e, bem assim, garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, no caso, o direito à inviolabilidade do domicílio, o que, por outras palavras, vale dizer ser a intervenção do juiz, in casu, de dimensão exclusivamente garantística - e não de valoração de provas.
(...) o juízo sobre a concreta existência de indícios de ocultação de objectos relacionados com o crime ou que possam servir de prova é frequentemente um juízo de natureza perfunctória, feito a partir de segmentos de prova num momento em que o objecto do processo, designadamente ao nível dos factos e respectiva imputação subjectiva, está longe de ser definido, pelo que tal juízo será até, muitas vezes por insuficiência de elementos probatórios, inidóneo para fundamentar pré-juízos relativamente à matéria dos autos. No caso vertente, aliás, os mandados de busca foram emitidos no início do inquérito, em momento em que não havia qualquer referência ao recorrente, e nem sequer foram cumpridos. A intervenção do magistrado que agora preside à audiência de julgamento foi meramente ditada pela preocupação de garantir o direito à inviolabilidade do domicílio, não envolveu assunção de direcção da instrução ou exercício da acusação. Numa palavra, a conduta do juiz que, na fase inicial do inquérito, ordenou a emissão de mandados de busca, aliás não executados, não se mostra idónea para, aos olhos dos sujeitos processuais e do público, abalar a independência e imparcialidade exigidas, nem envolve confusão censurável, no ponto de vista do princípio do acusatório, entre a entidade que faz a instrução, a que deduz a acusação e a que preside ao julgamento. Não se mostra, por conseguinte, abalada a imparcialidade objectiva do julgador.'
Deste acórdão retira-se em síntese que:
- O artigo 40º do CPP, na sua versão originária, deve ser interpretado em termos de abranger outras situações - mas não todas - em que o julgador interveio na fase do inquérito;
- As garantias de imparcialidade do julgador exigem que a intervenção deste em fase de inquérito não condicione a sua isenção e objectividade, nem ponha em crise a confiança que o arguido e o público devem ter nessas isenção e objectividade;
- Deve ser ponderado e avaliado o tipo concreto de intervenção do julgador na fase do inquérito, relevando a sua dimensão (garantística, ou não) e a fase em que ela ocorre.
Os acórdãos que depois o Tribunal Constitucional proferiu sobre a matéria
(Acórdãos n.ºs 935/96, 284/97 e 481/97, o primeiro publicado in ATC 34º vol., págs. 347 e segs.,) centram-se na interpretação da mesma norma, ínsita no artigo
40º do CPP, ainda na sua versão originária, em termos de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, na fase do inquérito decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido; o parâmetro de aferição da constitucionalidade da norma foi, fundamentalmente, a norma do artigo 32º n.º 5 da Constituição.
O primeiro daqueles acórdãos, para que os restantes remetem, acolhendo a doutrina exposta no Acórdão n.º 124/90, começa por analisar a situação em que o juiz, durante o inquérito, simplesmente decreta a prisão preventiva do arguido
(que não era o caso dos autos); e admite ('numa determinada visão das coisas' é a expressão utilizada) que se não verifique infracção ao princípio do acusatório
'desde logo porque a decisão do juiz sobre a prisão preventiva (...) assenta
(...) num juízo indiciário e, por natureza, precário, periodicamente revisível'; e conclui:
'Não representando a intervenção pontual do juiz, na fase do inquérito, de decretamento ou manutenção da prisão preventiva - intervenção essa imposta por preocupações de garantia dos direitos do arguido -, a assunção da direcção da instrução ou da autoria da acusação, continua a existir distinção entre a entidade que faz a instrução e deduz a acusação e aquela que procede ao julgamento. Além disso, sendo diferentes os universos e as exigências das provas que possibilitam a imposição da prisão preventiva e que fundamentam a condenação, o juiz que, na fase do inquérito, decide acerca da prisão preventiva do arguido não deixa de ser um juiz independente e imparcial para julgar o feito penal.'
Esta orientação situa-se na linha do que, adiante, o mesmo acórdão afirma -
'(...) a solução de estender o impedimento do artigo 40º do Código de Processo Penal a todos os actos isolados susceptíveis de serem praticados pelo juiz de instrução na fase preliminar do processo penal apresentar-se-ia, na generalidade dos casos, totalmente inadequada e desnecessária, em virtude de muitos deles não colocarem minimamente em causa as garantias de independência e de imparcialidade do tribunal, ínsitos no princípio da acusação, consagrado no artigo 32º, n.º 5 da lei fundamental.'
Simplesmente, como se disse, esta não era a situação dos autos: o juiz do julgamento decretara e posteriormente mantivera a prisão preventiva, na fase do inquérito; ou seja, nas palavras do acórdão, a norma 'foi aplicada, in casu, numa dupla dimensão: naquela em que o juiz decretou, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, a prisão preventiva e naquela em que, em data posterior, já bem próxima da data da acusação, confirmou a prisão preventiva '.
Esta circunstância leva, decisivamente, o Tribunal a julgar violadora do princípio da acusação, constante do artigo 32º n.º 5 da Constituição, a interpretação normativa em causa, nos seguintes termos:
'Na verdade, quando o juiz reaprecia a subsistência da prisão preventiva que antes decretou, num momento em que o inquérito está quase a chegar ao fim e em que já existem no processo quase todos os elementos que é possível carrear sobre a autoria do crime imputado ao arguido e sobre a sua gravidade, pode dizer-se que fica com uma convicção de tal modo arreigada quanto a estes aspectos do processo, que objectivamente - e sem prejuízo da independência que lhe for capaz de preservar - - fica inexoravelmente comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do julgamento.'
Tirados no mesmo sentido os Acórdãos n.ºs 284/97 e 481/97 e assim verificado o pressuposto contido no artigo 82º da LTC, o Acórdão n.º 186/98 in ATC 39º vol., págs. 87 e segs., veio a declarar, com força obrigatória geral, 'a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 40º do CPP, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, por violação do artigo
32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa .'
A fundamentação deste acórdão é basicamente a que fora adoptada no Acórdão n.º
935/96, pelo que se torna inútil repeti-la.
O que dela se retira com interesse para o caso é o particular enfoque do tipo e frequência da intervenção que o julgador teve, na fase do inquérito, com especial relevância do momento em que, dentro dessa fase, ela ocorreu (o mesmo acto pode ser valorado de modo diverso consoante o desenvolvimento da investigação).
É da conjugação destes factores que há-de resultar o juízo sobre a isenção, imparcialidade e objectividade do juiz enquanto julgador.
A declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 40º do CPP, foi a causa da alteração da redacção deste preceito, nos termos da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, a ele sendo aditado, como causa de impedimento, o facto de o juiz, no inquérito ou na instrução, ter 'aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido'.
Mas foi ainda sobre a constitucionalidade da norma do artigo 40º do CPP, na sua versão originária, que o Acórdão n.º 29/99, in ATC 42º vol., págs. 153 e segs., se pronunciou, estando, então, concretamente em causa, a prática de um acto de manutenção da prisão preventiva do arguido, no contexto do reexame trimestral dos pressupostos daquela medida de coacção.
O acórdão não se distancia, substancialmente, do entendimento que conduzira à decisão do Acórdão n.º 186/98, 'numa lógica de reiteração e de verificação de circunstâncias especiais que afectam a imparcialidade e isenção do juiz (...)', deixando, no entanto, claro que, no caso, a concreta dimensão normativa declarada inconstitucional não se verificava no caso.
Tendo como parâmetros de constitucionalidade as normas do artigo 32º n.ºs 1, 2 e
5 da CRP, o aresto conclui no sentido da não inconstitucionalidade; dele se extractam, como mais significativos os seguintes trechos:
- '(...) num plano garantístico, não excessivamente formalizado, uma intervenção esporádica antes do julgamento, na fase final do inquérito e posterior à dedução da acusação, apenas para manter a prisão preventiva já decretada por um outro juiz, por não terem sido alterados os respectivos pressupostos de facto e de direito e sem que tenham sido suscitados e apreciados fundamentos novos não é, por si só, uma condição que, em abstracto, propicie a parcialidade do juiz do julgamento (que estimule o juiz do julgamento a sustentar a condenação do arguido). Por outro lado, não se pode afirmar que aquela intervenção esporádica gere uma desconfiança geral sobre a imparcialidade do julgamento (suscitando representações sociais negativas sobre a imparcialidade e a isenção do juiz)'.
- '(...) se o respeito pelas garantias de defesa e pela presunção de inocência também impõe condições objectivas em abstracto adequadas a impedir um juízo parcial e comprometido do julgador relativamente aos factos, tais condições não estão necessariamente afectadas pela mera verificação de indícios da pratica de crime nas circunstâncias concretas de manutenção da prisão preventiva (que o juiz do julgamento poderá adquirir igualmente no despacho de saneamento do processo). Apenas a convicção intensa de que o crime teria sido praticado, inerente à prática reiterada de actos instrutórios reveladores dessa mesma convicção afecta, seguramente, as garantias de defesa e, especificamente, a presunção de inocência. A simples manutenção da prisão preventiva, no segundo reexame trimestral, após a dedução da acusação na fase final do inquérito, não conduz, por si só, a essa intensa convicção de que o crime foi praticado nem exige, constitucionalmente, a criação de obstáculos formais a que, por essa via, se produzam pré-juízos relativamente à culpabilidade do arguido.'
É ainda na mesma versão originária que o artigo 40º do CPP vem a ser objecto de pronúncia de constitucionalidade no Acórdão n.º 338/99 (inédito), estando então em causa uma interpretação da norma constante daquele preceito legal em termos de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, presidindo ao primeiro interrogatório dos arguidos, lhes decretou a prisão preventiva.
O acórdão salienta, desde logo, a diferença substancial entre o caso em apreço
(a dimensão normativa do artigo 40º do CPP cuja aplicação fora recusada na decisão recorrida por inconstitucionalidade) e o que determinara a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral no citado Acórdão n.º 186/98 - neste estava em causa uma dupla intervenção sucessiva do juiz na fase de inquérito e, no caso, uma intervenção isolada - evidenciando que tal acórdão expressamente alerta 'para a relevância da circunstância, entendida como decisiva na sua própria lógico argumentativa, de a intervenção do juiz na fase de inquérito não ser uma intervenção esporádica ou isolada, mas ser, pelo contrário, uma intervenção reiterada ou repetida' e 'de o juiz não se ter limitado a, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido, decretar a respectiva prisão preventiva', mas 'ter, em data posterior, já bem próximo da data da acusação, confirmado essa mesma prisão preventiva'.
Seguindo a tese que fizera vencimento nos acórdãos anteriores, o acórdão n.º
338/99 reitera que 'não é qualquer intervenção na fase de inquérito por parte do juiz que depois há-de participar no julgamento que é apta a justificadamente pôr em causa a sua independência e imparcialidade - ou a confiança do arguido e do público nessa mesma independência e imparcialidade - em termos de dever considerar-se que a norma que a permita é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32º n.º 5 da Constituição', dando como exemplos a ordem de uma busca domiciliária (caso versado pelo Acórdão n.º 114/95) ou o despacho de manutenção da prisão preventiva anteriormente aplicada ao arguido (caso do Acórdão n.º 29/99).
Conferindo, como na jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional, importância decisiva, para aferir da constitucionalidade da norma (ou de uma sua interpretação) do artigo 40º do CPP, a um critério assente na frequência, intensidade ou relevância da intervenção do juiz no inquérito, o acórdão conclui que não enferma de inconstitucionalidade a norma recusada em termos de permitir que intervenha no julgamento o juiz que se limitou a, findo o primeiro interrogatório do arguido detido, decretar a prisão preventiva, sem qualquer outra intervenção no decurso do inquérito.
Finalmente, o Acórdão n.º 423/00, in ATC 48º vol., págs. 243 e segs.,, versou sobre a constitucionalidade da norma do artigo 40º do CPP, já na redacção dada pela Lei n.º 59/98, na interpretação que permite a intervenção como julgador do juiz que na fase de inquérito procedeu ao primeiro interrogatório do arguido, determinando a respectiva libertação mediante a adopção de medidas de coacção não privativas de liberdade e posteriormente as manteve.
Uma vez mais, seguindo a fundamentação dos acórdãos anteriores, o Tribunal Constitucional considerou que aquela primeira intervenção do juiz no inquérito,
'numa fase bastante embrionária do processo', em que, citando o alegado pelo Ministério Público, 'carece ostensivamente de sentido sustentar que o juiz formulou logo aí uma convicção segura sobre a culpabilidade da arguida', não permite 'que se formule uma dúvida séria sobre as suas condições de imparcialidade e isenção ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência'.
E o mesmo se concluiu, considerando aquela intervenção em conjugação com a que o juiz posteriormente teve - manutenção das medidas de coacção decretadas.
5 - Este o acervo jurisprudencial do Tribunal sobre a matéria que, substancialmente, está agora em causa.
E se a ele se apelou foi porque aí se pode surpreender uma orientação clara e firme (em especial, a partir do Acórdão n.º 935/96, se não já do Acórdão n.º
114/95) sobre os imperativos constitucionais em matéria de impedimentos do julgador, decorrentes do princípio do acusatório, em processo penal, assente em critérios que mantêm plena validade e, por isso, devem, também aqui, ser aplicados.
Recorde-se que, tal como o objecto do recurso foi delimitado, a dimensão normativa do artigo 40º do CPP que o acórdão impugnado recusou é aquela que permite intervir em julgamento o juiz que, no início do inquérito, interroga os arguidos que lhe são apresentados detidos e decreta a prisão preventiva desses arguidos, autorizando no mesmo dia uma busca domiciliária.
E a questão que se coloca é, fundamentalmente, a de saber se tal viola as garantias de independência, imparcialidade e objectividade do julgador, asseguradas pelo princípio constitucional que impõe a estrutura acusatória no processo criminal (artigo 32º n.º 5 da CRP), sendo certo que, nesta dimensão daquele princípio, se torna irrelevante a tutela dos direitos dos arguidos à luz do disposto no artigo 32º n.º 1 da Constituição.
Ora - adianta-se já - na linha da jurisprudência deste Tribunal que acima se enunciou e aqui se acompanha, a resposta só pode ser negativa.
Note-se que, como se viu, as interpretações normativas que permitem a participação no julgamento do juiz que, em inquérito, procede ao interrogatório inicial do arguido e decreta a prisão preventiva, ou autoriza buscas, não foram julgadas inconstitucionais pelos citados Acórdãos n.ºs 338/99 (1º caso) e 114/95
(2º caso); a circunstância específica do caso - a conjugação de todas aquelas intervenções - não altera, porém, um tal juízo.
Antes do mais, o elemento mais impressivo das intervenções em causa é o facto de estas terem ocorrido mesmo no início do inquérito - na data da abertura do inquérito - quando os arguidos haviam sido detidos em flagrante delito e apresentados em juízo para interrogatório judicial - todas elas, substancialmente distintas, se sucedem no mesmo dia e nenhuma outra mais teve, durante o inquérito, a juíza que participou no julgamento.
Estavam então carreados para os autos apenas os elementos indiciários que tinha justificado a detenção - elementos mínimos, tendo em especial conta a extensa
(24 volumes), complexa e longa (cerca de dois anos) investigação, a que depois se procedeu, até à dedução da acusação. O que não pode deixar de significar que qualquer avaliação de indícios que aquela juíza tivesse realizado, não era justificadamente condicionadora da sua independência e imparcialidade, como membro do colectivo que julgou os arguidos, tão pouco se justificando, ou sendo adequada, qualquer dúvida séria do publico, em geral, sobre a isenção da mesma juíza.
Depois, duas das referidas intervenções - o interrogatório dos arguidos e a autorização de busca domiciliária - têm uma função, exclusiva ou dominantemente, garantística, visando assegurar a tutela dos direitos fundamentais dos arguidos.
No caso da busca, como se transcreveu do acórdão n.º 114/95 - e agora se repete
- 'está, apenas, o controle judicial da existência de indícios de ocultação, em casa habitada, de quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova (Código de Processo Penal, artigos 174º n.º 2, 177º n.º1 e 269º n.º 1 alínea a)). A intervenção do juiz é exigida pela preocupação de controlar a legalidade da diligência e, bem assim, garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, no caso, o direito à inviolabilidade do domicílio, o que, por outras palavras, vale dizer ser a intervenção do juiz, in casu, de dimensão exclusivamente garantística - e não de valoração de provas'.
É certo que, no caso do decretamento da prisão preventiva, o juiz avalia os indícios existentes. Trata-se, no entanto, de uma avaliação perfunctória e que, ao ser realizada numa fase embrionária do inquérito - consideravelmente afastada do momento do julgamento - e sem repetições, é insusceptível de afectar a imparcialidade do julgador, como se decidiu no citado Acórdão n.º 338/99.
E nem se diga que a conjugação dos actos de decretamento da prisão preventiva e de autorização da busca - mesmo a admitir-se que esta ainda pressupõe uma apreciação dos indícios recolhidos - representa um plus relativamente à aplicação daquela medida coactiva e à sua manutenção. É que, como bem acentua o Magistrado recorrente 'a concomitante determinação da busca domiciliária não comportou qualquer autónoma valoração indiciária, sendo a subjacente ao despacho que a autorizou naturalmente consumida ou precludida pela valoração dos indícios que - na mesma data - conduziu à prisão preventiva dos arguidos'.
Em suma, as intervenções processuais do julgador na fase de inquérito nem o converteram em órgão de acusação, nem pela sua frequência, intensidade ou relevância, o conduzem a pré-juízos ou pré-compreensões sobre a culpabilidade dos arguidos que firam a sua objectividade e isenção.
O artigo 40º do Código de Processo Penal, na interpretação que levou o acórdão recorrido à recusa da sua aplicação, e em contrário do aí decidido, não ofende, pois, o artigo 32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição.
Assinale-se, por último, que, se esta é a decisão que decorre da orientação jurisprudencial deste Tribunal, também seguida no presente acórdão, ela impor-se-ia, de igual modo, a acolher-se a tese constante do voto de vencido exarado no Acórdão n.º 29/99 - claramente menos generosa no acautelamento das garantias do artigo 32º n.ºs 1, 2 e 5 da Constituição em matéria de impedimentos do julgador em processo criminal - pois as intervenções processuais em causa não contendem directamente com o objecto do processo.
6 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformulado em conformidade com o presente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Junho de 2003- Artur Maurício Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida