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Proc.º n.º 769/2000.
2.ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Pelo Tribunal de comarca de Vila Praia da Vitória e contra Casa do Povo... intentou I... acção, seguindo a forma de processo sumário, solicitando:-
- que fosse declarada a nulidade do «despedimento» de que fora alvo por parte da ré;
- que fosse a ré condenada a reconhecer a subsistência de um vínculo laboral que teria existido entre esta e a autora e segundo o qual esta última prestaria àquela trabalho a título de «ajudante familiar» do Centro de Dia e Apoio Familiar da dita ré;
- que a ré fosse condenada a reintegrá-la no seu posto de trabalho, com a categoria, antiguidade e retribuição que teria caso não tivesse sido
«despedida», sem prejuízo de a autora optar por uma indemnização computada em Esc. 312.000$00;
- que a ré fosse condenada a pagar à autora as prestações pecuniárias vincendas relativas às retribuições que deixou de auferir desde a data do «despedimento» e até à data da proferenda sentença.
Tendo, por sentença proferida em 24 de Abril de 1998, sido julgada improcedente a acção, da mesma apelou a autora para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão de 22 de Novembro de 2000, concedeu provimento à apelação, em consequência, por entre o mais, condenando a ré a reintegrar a autora no seu posto de trabalho e a pagar-lhe o valor correspondente às retribuições que a mesma deixou de auferir desde trinta dias anteriores à propositura da acção e até à data daquele acórdão.
Para alcançar uma tal decisão, a Relação de Lisboa, inter alia, desaplicou, por entender violar o disposto no artigo 53º da Constituição, a norma constante do nº 2 do artº 10º do Decreto-Lei nº 141/89, de 28 de Abril, quando 'interpretada no sentido de permitir a celebração de contratos, pelas denominadas instituições de suporte, com trabalhadores, recrutados para o exercício de funções de ajudante familiar, gozando a instituição de suporte, do direito de fazer cessar os contratos, em qualquer altura, sem respeito pelos limites e número máximo de renovações, impostos na contratação a termo às entidades patronais privadas'.
Daquele acórdão recorreram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Ministério Público e a Casa do Povo....
2. Determinada a feitura de alegações, concluiu o Ministério Público a por si produzida com as seguintes «conclusões»:-
'1º - É organicamente inconstitucional, por regular matéria situada no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República - por atinente aos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores - a interpretação normativa do nº 2 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 141/89, de 28 de Abril, que se traduza em considerar derrogado por tal preceito o regime laboral vigente quanto aos trabalhadores subordinados (não competindo obviamente ao Tribunal Constitucional sindicar a qualificação, feita pelas instâncias, da relação existente entre autora e ré nos presentes autos).
2º - Termos em que deverá, embora por diferente fundamento, confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida'.
De seu lado, a Casa do Povo... rematou a sua alegação dizendo:-
'Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, julgando-se materialmente constitucional a norma contida no artigo 10º, nº 2 do Decreto-Lei nº 141/89, de 28/04 (mesmo se interpretada no sentido de permitir a celebração de contratos, pelas denominadas instituições de suporte, com trabalhadores, recrutadas para o exercício de funções de ajudante familiar, gozando as instituições de suporte, do direito de fazer cessar os contratos em qualquer altura, sem respeito pelos limites e número máximo de renovações impostas pela contratação a termo às entidades privadas) revogando-se o acórdão recorrido e ordenando-se ao Tribunal da Relação de Lisboa que julgue o pleito aplicando a norma do 10º, nº 2 do Decreto-Lei nº 141/89, de 28/04, cuja aplicação recusara por a entender ferida de inconstitucionalidade material'.
Já a recorrida I... concluiu por se dever 'confirmar o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida'.
Cumpre decidir.
II
3. Convém, preliminarmente, deixar acentuado que no vertente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade o Tribunal Constitucional terá de atender à subsunção jurídica dos factos havidos como provados, levada a efeito pelo Tribunal a quo, subsunção essa de harmonia com a qual a relação negocial que foi efectuada entre a recorrida I... e a recorrente Casa do Povo..., em face dos elementos demonstrados quanto a tal relação,era de perspectivar como uma relação laboral ou, se se quiser, sujeita uma relação que haveria de ser regida pelo ordenamento jurídico laboral.
Assim sendo, e independentemente do acerto de uma tal posição - acerca da qual legitimamente se poderão levantar dúvidas (cfr. artigos 1º a 4º,
9º a 11º e 13º a 16º do Decreto-Lei nº 141/89, de 28 de Abril) - terá o Tribunal, no presente aresto, de partir do um posicionamento interpretativo seguido pelo Tribunal da Relação de Lisboa e de acordo com o qual não só a relação jurídica firmada entre a recorrente e a recorrida se trata de uma relação laboral, como ainda que a actividade prosseguida pelos «ajudantes familiares» no âmbito da acção social realizada pela Segurança Social ou por outras entidades, designadamente as denominadas «instituições de suporte», tais como as instituições particulares de solidariedade social (e a recorrente nestas deverá ser incluída - cfr. Leis números 2115, de 18 de Agosto de 1962, e 2144, de 29 de Maio de 1969, Decreto-Lei nº 549/77, de 31 de Dezembro, alterado pela Lei nº 55/78, de 27 de Julho, que as consideravam como «instituições de previdência» e, posteriormente, os Decretos-Leis números 4/82, de 11 de Janeiro,
246/90, de 27 de Julho, e 171/98, de 25 de Junho; cfr., ainda, o Parecer nº
48/92 da Procuradoria-Geral da República publicado na 2ª Série do Diário da República de 27 de Abril de 1993), na perspectiva do seu relacionamento com esta ou estas últimas, é de considerar como uma prestação de trabalho.
Note-se que diferente posicionamento deveria ser o seguido se porventura a «qualificação» do contrato em causa como contrato de trabalho resultava, não dos factos que foram dados como provados pelo Tribunal a quo, mas sim da própria interpretação do contrato decorrente da sua previsão legal.
É que, numa tal situação, já o Tribunal Constitucional poderia sindicar essa qualificação, para efeitos de análise da conformidade constitucional da norma previsora do contrato.
4. Assente este circunstancionalismo, a questão a resolver não se apresenta revestida de acentuadas dificuldades.
Como se viu, a decisão ora impugnada entendeu, após ter efectuado a subsunção jurídica a que acima se fez referência, que a norma do nº 2 do artº
10º do Decreto-Lei nº 141/89 (a qual prescreve que [p]ela celebração do contrato os ajudantes familiares [contrato esse que deve constar de documento escrito, é assinado por ambas as partes e onde se estabelece o período previsto para a sua vigência e as condições determinantes da sua renovação e através do qual é ajustada a realização da prestação de serviços de ajuda domiciliária entre as
«instituições de suporte» e os «ajudantes familiares»] não adquirem a qualidade de empregado, funcionário ou agente das instituições de suporte), se interpretada no sentido de permitir a cessação, pela «instituição de suporte», daqueles contratos e em qualquer altura, ainda que os mesmos tivessem sido alvo de renovação para além do limite legal das renovações constantes do ordenamento jurídico regulador da contratação a prazo, feria o princípio da segurança no emprego consagrado no artigo 53º da Lei Fundamental. E, por isso, recusou a sua aplicação ao caso então em apreço.
4.1. Para além de, como já se teve ensejo de assinalar, não ser líquido que a relação negocial em causa na acção sub specie revista inequivocamente o carácter de uma relação de trabalho, poder-se-á dizer que igualmente não é isento de dúvida o entendimento segundo o qual - e a aceitar-se esse carácter -, tendo em conta as especificidades do desempenho de funções cometido aos «ajudantes familiares», seria constitucionalmente inadmissível o estabelecimento, pelo legislador ordinário, de um regime laboral especificamente direccionado para determinada actividade (como é o caso da prosseguida pelos
«ajudantes familiares»), regime esse que poderia afastar-se das estipulações consagradas no regime geral do contrato individual de trabalho, designadamente no que concerne à possibilidade de naquele se prescreverem diferentes regras quanto, quer à possibilidade de contratação a prazo, quer à admissão de prorrogações desses contratos laborais sem que daí decorresse a imposição de uma
«transformação» dos contratos em contratos sem prazo, quer, por fim, da admissibilidade de finalização, por parte da entidade empregadora, dos aludidos contratos, independentemente do número de vezes que foram prorrogados, e isso caso ocorressem condicionalismos concretos adequadamente justificadores daquela finalização e desde que ficasse assegurada a justa indemnização dos trabalhadores.
Neste passo, dir-se-ia que não seria inequívoco que se sustentasse a impossibilidade admitida pela Lei Fundamental de, como diz o recorrente Ministério Público, '...excluir liminarmente que a especificidade das tarefas cometidas aos ‘ajudantes familiares’ possa determinar a criação de um específico regime laboral (à semelhança do que ocorre, por exemplo, com o serviço doméstico ou com o trabalho no domicílio) susceptível de, em alguns pontos, poder eventualmente derrogar certos traços gerais da relação laboral...'.
5. Seja como for, e sem tomar posição quanto à questão que se apenas se equacionou no ponto antecedente, que é certo é que, partindo da interpretação efectuada pela decisão sub iudicio - ou seja, que se colocava no caso dos autos uma relação laboral que era regulada, por entre o mais, pela norma ora em apreço
-, então ser-se-á levado a concluir que, tratando-se de normação que, regulando especificamente pelo menos um aspecto da relação laboral (aspecto esse sem dúvida essencial, já que reportado a uma forma de cessação dessa relação jurídica), haverá de ser considerada como uma estatuição que perfeitamente se inclui na matéria atinente aos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores e, consequentemente, a respectiva edição inseria-se, ao tempo em que ocorreu, na competência exclusiva da Assembleia da República, ex vi da alínea b) do nº 1 do artigo 168º da versão da Constituição decorrente da Lei de Revisão Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro. (cfr., sobre o que se deve incluir naquela alínea, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, 2º volume, 199).
Acontece, porém, que o Decreto-Lei nº 141/89 foi editado pelo Governo no exercício da sua competência legislativa concorrente com a Assembleia da República e sem que se mostre que o órgão parlamentar tivesse concedido
àqueloutro órgão executivo autorização para o editar.
Assim sendo, uma interpretação da norma ínsita no nº 2 do artº 10º do Decreto-Lei nº 141/89 da qual se extraia que da mesma resulta a possibilidade conferida às «instituições de suporte» de cessar em qualquer altura os contratos celebrados com os denominados «ajudantes familiares» - contratos esses que são qualificados como contratos de trabalho - e, por isso, não respeitando os limites e número máximo de renovações impostos pela legislação reguladora da contratação a termo pelas entidades patronais privadas, conduz a que um tal normativo enferma de inconstitucionalidade orgânica.
III
Em face do exposto, o Tribunal decide:-
- a) Julgar inconstitucional, por violação da alínea b) do nº 1 do artigo 168º da versão da Lei Fundamental decorrente da Lei de Revisão Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, a norma constante do nº 2 do artº 10º do Decreto-Lei nº 141/89, de 28 de Abril, na interpretação segundo a qual dela decorre a possibilidade conferida às «instituições de suporte» de cessar em qualquer altura os contratos celebrados com os denominados «ajudantes familiares» - qualificados como contratos de trabalho - e, por isso, não respeitando os limites e número máximo de renovações impostos pela legislação reguladora da contratação a termo pelas entidades patronais privadas; o b) negar, embora por outros fundamentos, provimento ao recurso. Lisboa, 23 de Maio de 2001- Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa