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Proc. n.º 1124/98
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1. A. e mulher B., identificados com os sinais dos autos, dizendo-se inconformados com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
20/10/98 que negou provimento ao recurso de agravo do Acórdão da Relação de
Évora, dele recorrem para este Tribunal Constitucional com fundamento no art.º
70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua redacção actual (doravante designada apenas por LTC), pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos art.os 158.º, 304.º, n.º 3 e 668º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil (de futuro designado apenas por CPC), por violação do disposto no art.º 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, na versão de 1997, e ainda da norma do n.º 1 do art.º 404.º do mesmo CPC, esta por violação dos art.os 20.º e 32.º n.º 5 da mesma Lei Fundamental (de agora em diante designada por CRP).
2. O Acórdão da Relação de Évora negou, também, por seu turno, provimento ao recurso de agravo que os mesmos recorrentes haviam interposto da sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca do Cartaxo que decidiu, no respectivo processo de procedimento cautelar de arresto movido pela C., decretar o arresto de seus bens, sem audição prévia dos requeridos.
3. Refutando o decidido sobre a matéria de inconstitucionalidade relativa aos referidos preceitos da lei processual civil, e que suscitaram nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça, assim sintetizaram os recorrentes o seu discurso antes expendido perante este Tribunal Constitucional:
“B1: É entendimento pacífico da mais representativa doutrina do direito constitucional e do direito processual civil – e, ao que se julga, corroborado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional – que a chamada “Constituição Processual Civil” resulta das disposições conjugadas dos artigos 20.º e 32.º da Constituição da República. Por outro lado,
B2: preceitua o artigo 205.º, n.º 1 do diploma fundamental que as decisões dos Tribunais devem ser fundamentadas, excepto as que forem de mero expediente. Ora,
B3: que as decisões jurisdicionais, em sede de processo civil, devem ser assumidas mediante prévio contraditório é o que resulta do artigo 3.º do Código de Processo Civil, por um lado e da parte final do n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República
B4: princípio este a que não fazem afronta as normas atinentes ao processamento dos procedimentos cautelares, como o confirma a norma do artigo 385.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, se (e quando) devidamente ponderada e aplicada. Acresce que,
B5: os recorrentes julgam aplicável ao processo civil e à questão da fundamentação das decisões jurisdicionais proferidas neste âmbito problemático, o (notável) acórdão nº 456/95 do Tribunal Constitucional, datado de 2 de Dezembro de 1998, porque tirado a propósito de uma das regras constitucionais convocáveis na espécie dos autos, qual seja a do artigo 205.º, n.º 1 do diploma fundamental. Finalmente,
B6: sendo embora certo que, numa primeira análise e de acordo com visão perfunctória das coisas, o citado comando do direito supra-legislado deixa ao legislador ordinário a concreta conformação constitutiva do dever de fundamentação das decisões jurisdicionais
B7: menos exacto não é – de acordo até com o princípio que domina todo o travejamento jurídico-constitucional pátrio, o de que a República Portuguesa constitui um Estado de Direito Democrático – que ao dever de fundamentação (das decisões jurisdicionais) não pode ser adscrito um conteúdo de sentido que o torne exangue
B8: como, manifestamente, é o caso daquele que quer a 1ª instância, quer o Tribunal da Relação de Évora e ainda, por fim (que não por último), o Supremo Tribunal de Justiça lhe atribuiu. Como assim,
B9: a interpretação concretamente sufragada por este Tribunal a propósito do artigo 158.º, n.º 1 do Código de Processo Civil – aquela , por conseguinte, que consta dos autos – tornou materialmente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República, o artigo 158.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. Com efeito,
B10: este normativo resulta mal-ferido da perspectiva da respectiva amizade constitucional, quando interpretado e aplicado do jeito que fez vencimento no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, do qual os recorrentes trazem o presente recurso.”.
4. A recorrida contra-alegou defendendo o julgado, tendo resumido a sua defesa nas seguintes conclusões:
“1º O Acórdão do STJ não põe em causa a necessidade de motivação da decisão sobre a matéria de facto quanto aos factos sobre os quais recaiu a prova testemunhal, pelo que não há divergência entre o que aí se decidiu e a tese dos recorrentes, razão pela qual se pode pôr em causa a submissão desse Acórdão à jurisdição do Tribunal Constitucional.
2º A decisão recorrida não fez interpretação inconstitucional da norma do n.º 2 do art. 653.º do C.P.C., reconhecendo inclusivamente que a lei não se contenta com a mera indicação dos meios de prova para dar como satisfeito o dever de motivação das decisões relativas à matéria de facto.
3º o que o Acórdão do STJ decide, relativamente à questão da motivação da decisão sobre a matéria de facto é que a mesma reporta-se a factos que não são essenciais à decisão de decretar o arresto, encontrando-se os factos que interessam a essa decisão devidamente dados por provados documentalmente.
4º o contraditório não é recusado aos recorrentes: encontra-se assegurado aos recorrentes a partir do momento da concretização da providência de arresto, sem o que ficaria desprotegido o direito da requerida, igualmente tutelado pela Constituição, pelo que também aqui não procedeu o Acórdão recorrido a qualquer interpretação inconstitucional dos preceitos da lei processual civil, designadamente ao disposto no n.º 1 do art. 404.º do C.P.C.”.
Com os vistos dos senhores Juízes cumpre decidir:
B – A fundamentação
5. As questões decidendas
São as de saber se os preceitos dos art.os 158.º, 304.º, n.º 3 e
668.º, n.º 1, alínea b) do CPC são inconstitucionais por violação do art.º
205.º, n.º 1 da CRP e ainda se é inconstitucional o art.º404.º, n.º 1 da mesma lei processual civil, aqui por violação do art.º 32.º, n.º 2 da mesma CRP.
6. Da decisão recorrida
A decisão recorrida discreteou pelo seguinte modo quanto à falta de fundamentação:
«Na decisão da primeira instância a Mma. Juíza declarou os factos que julgou provados, “com fundamento nos documentos juntos aos autos e nos depoimentos das testemunhas inquiridas, ambas funcionárias da requerente”. Observou assim o disposto no n.º 3 do art.º 304º, determinando que “o tribunal declarará quais os factos que julga provados”. A decisão tem pois os fundamentos de facto, não havendo violação aos art.º 158.º e 668.º, n.º 2 b), do C. P. Civil. O que acontece e como resulta das razões desenvolvidas no curso da alegação, é que os recorrentes questionaram a não observância da parte final do n.º 3 daquele art.º 304.º, mandando aplicar, com as devidas adaptações, o disposto nos n.os 2 e 3 do art.º 653.º, ou seja a fundamentação da fundamentação. Só que o vício desta fundamentação de segundo grau, diga-se assim sem qualquer compromisso, não determinava a nulidade da decisão, como pretendem os recorrentes, mas a aplicação do disposto no n.º 3 do art.º 712.º do mesmo código
(hoje n.º 5 do mesmo artigo) que não foi requerida no primeiro agravo. Sucede que o núcleo decisivo da matéria de facto foi julgado provado com fundamento em documentos, incluindo processos apensos como o da execução de que o arresto é dependência, designadamente o crédito da requerente (originado pelo empréstimo concedido aos requeridos documentado a fls. 180 e segs.) e o contrato-promessa de venda de 16 prédios pelos requeridos a terceiros, do qual as instâncias inferiram a intenção daqueles de desfazer-se do seu património conhecido, no valor segundo a Relação de 53 187 200$00, aplicando facilmente o dinheiro a fins diferentes do pagamento da responsabilidade assumida para com o requerente. Assim, entenderam ser justificado o arresto “das prestações vincendas do pagamento do preço da venda previstas no contrato-promessa.” Pronunciando-se sobre a constitucionalidade dos artºs 653.º, n.º 2, e 712.º, n.º
3, do C. P. Civil, face ao então art.º 208.º, n.º 1 da C. R. P. (hoje art.º
205º, n.º 1), o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/94, de 24/3/94, B. M. J. 435, p. 475 e seg., considerou que o conteúdo da fundamentação consagrada naquelas normas satisfaz a exigência constante da referida norma constitucional, mesmo na interpretação mais restrita que se satisfaz com a menção dos meios concretos de prova (p. 486). Observou no entanto (p. 485) que, tratando-se de prova testemunhal, os meios concretos de prova pouco dizem se o tribunal não esclarece por que é que determinaram a sua convicção. A fundamentação de julgamento de facto é uma justificação racional “ex post” destinada a permitir o controlo da racionalidade da respectiva decisão, necessário face à liberdade do juiz na avaliação da prova, que deve assim explicitar, com argumentação justificativa, a razão que o levou a atribuir eficácia aos meios de prova. (M. Taruffo, La prova dei fatti giuridici, p.
108-109). Nestes termos, a simples menção de meios concretos de prova testemunhal não satisfaz cabalmente aquela exigência de controlo. Diferentemente, quanto à prova documental, onde normalmente a racionalidade da fundamentação se satisfaz com a menção de os factos resultarem da prova que os documentos fazem, o que permite, na perspectiva endoprocessual da função da fundamentação: a) às partes o exercício mais fácil do direito de impugnação; b) ao Tribunal de recurso o controlo da respectiva decisão. (M. Taruffo, La sentenza In Europa, p. 187)».
No que tange ao princípio do contraditório, o acórdão refutou a tese de que o mesmo encontrasse fundamento constitucional no art.º 32.º, n.º 5 da CRP. Afirmando, todavia, a sua exigência constitucional com fundamento no art.º 20.º, n.º 1 da CRP, o acórdão recorrido negou que o art.º 404.º, n.º 1 do CPC o violasse, na medida em que o mesmo sempre estava garantido, embora em termos diferidos, depois de decretada a providência e que esse diferimento se justificava, no confronto entre dois valores constitucionalmente garantidos, como modo de conferir efectividade ao direito do requerente do arresto.
7. Do mérito do recurso de inconstitucionalidade
7.1. Da inconstitucionalidade dos art.os 158.º, 304.º, n.º 3 e
668.º, n.º 1 al. b) do CPC por violação do disposto no art.º 205.º, n.º 1 da CRP
Como se constata, pelos seus próprios termos, muito embora os recorrentes tenham apontado, também, no requerimento de interposição de recurso, a norma do art.º 668.º, n.º 1, al. b) do CPC como objecto do recurso, o certo é que nada disseram sobre essa questão, quer nas suas alegações, quer nas respectivas conclusões. Sendo assim, tem-se a questão relativa à inconstitucionalidade dessa norma por abandonada (art.os 684.º, n.º 3 e 690.º, n.os 1 e 2 do CPC ex vi do art.º 69.º da LTC).
Resta conhecer da questão de inconstitucionalidade relativa aos demais preceitos.
A redacção dos preceitos em vigor ao tempo em que o acto judicial da motivação foi praticado era a seguinte (a redacção resultante da reforma de 1995 apenas entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1997 - art.º 16.º do DL. n.º 356-A/95, de 12/12):
Artigo 304º
1...
2...
3. Quando sejam prestados no tribunal da causa e não recaiam sobre matéria do questionário, os depoimentos serão orais; e, logo que termine a produção da prova, o tribunal declarará quais os factos que julga provados, observando com as devidas adaptações, o disposto nos n.os 2 e3 do art.º 653.º.
Art.º 653.º
1...
2. A matéria de facto é decidida por acórdão: de entre os factos quesitados, o acórdão declarará quais o tribunal julga ou não julga provados e, quanto àqueles, especificará os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador; mas não se pronunciará sobre os que só possam provar-se documentalmente, nem sobre os que estejam plenamente provados por confissão reduzida a escrito, acordo das partes ou documentos.
Por força da remissão operada no primeiro preceito, as regras atinentes à motivação do julgamento da matéria de facto constantes do segundo são aplicáveis, com as devidas adaptações, aos incidentes e procedimentos cautelares e foi assim que ambos foram aplicados. Nesta linha, também a questão de inconstitucionalidade colocada pelos recorrentes envolve esse conjunto normativo.
Relativamente à questão da falta de fundamentação a ratio decidendi do acórdão recorrido é de tipo complexo: de um lado, aduz que a falta da fundamentação da decisão de fixação da matéria de facto não determinava a sua nulidade, mas antes a aplicação do disposto no art.º 712.º, n.º 3 (hoje n.º 5) do CPC, sendo certo que os recorrentes não apresentaram a reclamação a que este preceito se refere, nada dizendo, porém, quanto aos seus efeitos em abstracto e em concreto; de outro lado, entendeu estar, nos termos do art.º 208.º, n.º 1 da CRP (hoje o art.º 205.º, n.º 1 ), essa decisão de fixação da matéria de facto sujeita a fundamentação (“a fundamentação da fundamentação”) e traduzir-se ela numa justificação racional “ex post” que permita o controlo da racionalidade dessa decisão, não se bastando, quanto à prova testemunhal, com a simples menção dos meios de prova, diferentemente do que se passa quanto à prova documental, pois aqui saem satisfeitas as razões endoprocessuais que justificam a sua exigência.
Não a equacionou, nem a resolveu em qualquer sentido, o acórdão recorrido a questão da hipotética preclusão do conhecimento da falta da motivação da decisão de fixação da matéria de facto como consequência da falta de apresentação da reclamação que se poderia colocar nos termos do citado art.º
712.º, n.º 3 (hoje n.º 5) do CPC (Sobre esse condicionamento e sua constitucionalidade, cfr. acórdão deste Tribunal, n.º 78/2003, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Março de 2003). Sendo assim, também este Tribunal a não pode levar em conta, pois se encontra vinculado aos termos como o direito infraconstitucional foi definido e aplicado pelo tribunal a quo como ratio decidendi da decisão. Deste modo, não há que colocar, nem os recorrentes a suscitaram, qualquer questão de inconstitucionalidade traduzida em saber se ainda viola o dever constitucional de fundamentação das sentenças o exigir-se, após o exame das respostas a que alude o art.º 653.º n.º 4 do CPC, a apresentação de reclamação da sentença, de acordo com aquele art.º 712.º, n.º 3 (hoje n.º 5) do CPC, e de só se admitir o recurso do despacho que decidir tal reclamação.
Apresenta-se, pois, como única questão de constitucionalidade a ser decidida, a de saber se o entendimento normativo expressado no acórdão do STJ como respeitante aos preceitos acima citados afronta o comando constitucional do art.º 208.º n.º 1 da CRP, a que corresponde, com alguma mudança nos seus termos, o actual art.º 205.º, n.º 1 da mesma Lei Fundamental. Ora, entende este Tribunal que o acórdão recorrido já lhe deu inteira resposta e que os recorrentes nada esgrimem, de relevo, nas suas alegações, que possa fazer perigar a conclusão tirada.
Na verdade, o Acórdão recorrido, após assumir expressamente, sobre a matéria, a doutrina do Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 310/94, publicado no BMJ 435.º, págs. 475, explicitou o conteúdo da exigência constitucional constante, ao tempo do acto judicial, do art.º 208.º, n.º 1 da CRP, e segundo o qual havia que entender e aplicar os referidos preceitos da lei ordinária, nos seguintes termos já acima transcritos que se entende conterem o suficiente de densificação do dever constitucional de fundamentação em processo civil:
«A fundamentação de julgamento de facto é uma justificação racional “ex post” destinada a permitir o controlo da racionalidade da respectiva decisão, necessário face à liberdade do juiz na avaliação da prova, que deve assim explicitar, com argumentação justificativa, a razão que o levou a atribuir eficácia aos meios de prova.(M. Taruffo, La prova dei fatti giuridici, p.
108-109). Nestes termos, a simples menção de meios concretos de prova testemunhal não satisfaz cabalmente aquela exigência de controlo. Diferentemente quanto à prova documental, onde normalmente a racionalidade da fundamentação se satisfaz com a menção de os factos resultarem da prova que os documentos fazem, o que permite, na perspectiva endoprocessual da função da fundamentação: a) às partes o exercício mais fácil do direito de impugnação; b) ao Tribunal de recurso o controlo da respectiva decisão.” (M. Taruffo, La sentenza In Europa, p. 187)».
Como os próprios recorrentes começam por reconhecer (A2)- mas que depois, algo contraditoriamente, vieram a esquecer - não existe absoluto paralelismo quanto
às exigências constitucionais da motivação da decisão de fixação da matéria de facto entre o processo civil e o processo penal. Basta atentar no facto de o processo penal estar todo enformado, relativamente ao objecto do processo, da presunção, a valer até à decisão condenatória, da inocência do arguido. Sendo assim, não tem sentido a sua tese de aplicação ao processo civil, nos seus exactos termos, da doutrina expendida no Acórdão deste Tribunal n.º 456/95, publicado no Diário da República II Série, de 9 de Novembro de 1995 (Sobre a diversa intensidade do dever de fundamentação em processo penal e civil, num caso sujeito a este processo, se pronunciou o Acórdão deste Tribunal n.º 422/99, publicado no Diário da República II Série, de 29 de Novembro de 1999). A especial densidade do discurso judicial motivador da decisão sobre matéria de facto, no processo penal, tem uma dupla fonte constitucional, o que não acontece no processo civil - o art.º 208.º, n.º 1 (agora o art.º 205.º, n.º 1) e o art.º
32.º n.º 1, ambos da CRP.
Acresce, por outro lado, que os recorrentes não precisam minimamente em que termos é que a densificação feita no acórdão recorrido do dever de fundamentação fere as exigências de motivação da decisão de fixação da matéria de facto decorrentes do art.º 208.º, n.º 1 da CRP, tendo-se limitado a fazer uma afirmação sem qualquer demonstração racional.
É de concluir, pois, que o disposto nos art.os 158.º e 304.º, n.º 3
(hoje n.º 5) do CPC satisfaz, como o entendeu o acórdão recorrido, esta densificação do dever constitucional de fundamentação das decisões em processo civil e pela improcedência das alegações quanto à sua inconstitucionalidade.
7.2. Da inconstitucionalidade do art.º 404.º, n.º 1 do CPC (na redacção em vigor ao tempo do acto judicial)
Dispunha então esse preceito:
Artigo 404.º
1. Examinadas as provas produzidas, o arresto será decretado, sem audiência da parte contrária, desde que se mostrem preenchidos os requisitos legais; porém, se o arresto houver sido requerido em mais bens do que os suficientes para a segurança da obrigação, reduzir-se-á a garantia aos justos limites.
2...
3...
Já por diversas vezes o Tribunal Constitucional teve ocasião de se pronunciar sobre a existência do princípio do contraditório, no domínio do processo civil. Trata-se, como tem sido dito, de um princípio fundamental do processo civil, hoje claramente afirmado, em termos gerais, no art.º 3.º do CPC. Mas além de princípio fundamental do processo civil, sempre se lhe reconheceu, igualmente, uma matriz constitucional, como um princípio constitucionalmente tutelado enquanto integrante do princípio do Estado de Direito democrático e do acesso à justiça e aos tribunais, incluído assim na previsão dos art.os 2.º e 20.º da CRP. O sentido do princípio é o de reconhecer àquele contra quem é feita uma pretensão o direito de se defender antes de o tribunal a apreciar - audiatur et altera pars. A decisão há-de resultar da ponderação pelo tribunal dos elementos trazidos ao debate por cada uma das partes: nisto se afirma a estrutura dialéctica e polémica do processo (Relativamente à matriz do princípio e sua funcionalidade, cfr. o Acórdão deste Tribunal n.º 259/2000, publicado no Diário da República, II Série, de 07 de Novembro de 2000). Sendo assim, o contraditório deve funcionalmente, por regra, anteceder a decisão. Mas há casos em que o contraditório pode não anteceder a decisão e se deve admiti-lo apenas diferidamente. Referimo-nos aos casos em que a tutela efectiva e eficaz que o processo deve propiciar tem sério risco de ficar inviabilizada no caso de ser ouvida a parte contra quem essa pretensão é formulada. Desenha-se aqui um conflito de interesses materiais e constitucionais: de um lado, o direito à audição antecipada do requerido; do outro, o direito a uma efectiva e eficaz tutela da pretensão do demandante só assegurável, em termos de razoabilidade, se o requerido não for antes ouvido. A solução tem de ser conseguida mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade, nos termos do art.º 18.º, n.º 2 da CRP. Nestes casos, dentro dos quais figura sem reserva de dúvida o preceito de cuja constitucionalidade se cogita, há que dar preferência à possibilidade de realização material do direito que o requerente visiona com o seu recurso ao tribunal. Ora a opção por esse objectivo implica que, no caso do arresto, se actue com celeridade e eficácia, de modo a que, a ser concedida a providência, o requerido não disponha de tempo para alienar ou dissipar os bens. O contraditório não é, porém, abolido, sendo apenas diferido para depois da decisão, dando-se então ao requerido a oportunidade de contraditar não só a alegação dos fundamentos feita pelo requerente, mas igualmente a prova feita sobre eles. A circunstância de esse diferimento para depois da decisão estar dependente da demonstração probatória da existência dos requisitos legais a que está subordinado o procedimento cautelar em causa (art.os 403.º e 404º do CPC, na redacção vigente ao tempo do acto) não deixa de constituir uma garantia de que a restrição à regra geral do princípio do contraditório, traduzida no contraditório diferido, se contém dentro dos limites da adequação e da necessidade que são postulados pelo n.º 2 do citado art.º 18.º da CRP. E o mesmo se diga quanto à natureza simplesmente cautelar, acessória e sujeita a caducidade da providência que é concedida no processo (art.os 382.º, 383.º,
384.º do CPC, na versão vigente ao tempo). E o mesmo se afirme, ainda, com a possibilidade prevista na lei então vigente de o requerido, uma vez notificado, poder não só agravar do despacho, mas também, e até simultaneamente, opor embargos, contraditando os fundamentos alegados e a prova produzida (art.º 405.º do CPC) (cfr. os Acórdãos deste Tribunal n.os
337/99, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Julho de 1999, em que se decidiu não haver violação do direito de acesso aos tribunais, em virtude da «defesa contra o despacho judicial que decreta o arresto estar sempre assegurada, seja por recurso, seja por oposição de embargos», 739/99 e 598/99, publicados no mesmo Diário, de 08 de Março de 1999 e de 20 de Março de 2000, respectivamente, e ainda 163/2001 - inédito - e 76/2003, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Março de 2003).
Não tem aqui o mínimo sentido a invocação, como parâmetro de constitucionalidade de disposições do processo civil, do disposto no art.º 32.º, n.º 5 da CRP relativo ao processo criminal, como fazem os recorrentes. Como resulta do preceito, estamos perante garantias que a Constituição instituiu para o processo criminal que é dirigido contra o arguido e cujo fim tende à aplicação ou não aplicação de uma pena. Também nesta matéria o acórdão recorrido decidiu bem ao não considerar inconstitucional o referido art.º 404.º, n.º 1 do CPC.
C – A decisão
8. Destarte, atento tudo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pelos recorrentes com taxa de justiça de 15 UC.
Lisboa, 18 de Junho de 2003 Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos