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Proc. n.º 359/03
2ª Secção
Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, neste Tribunal Constitucional:
A- O relatório
1. J..., com os demais sinais dos autos, reclama do despacho do Relator do Tribunal da Relação de Guimarães, de 08 de Abril de 2003, que não lhe admitiu o recurso interposto para este Tribunal Constitucional do Acórdão daquele Tribunal, de 20 de Janeiro de 2003, que decidiu negar provimento ao recurso interposto e confirmar a sentença de 1ª Instância que absolveu o arguido A ..., também identificado nos autos.
2. Como fundamentos, o reclamante alega ter suscitado a questão da inconstitucionalidade da “norma contida no n.º 2 do art.º 180º do Código Penal, com a interpretação feita nos autos de que ao arguido do crime de difamação, não
é imposto o dever de provar, cumulativamente, a provável veracidade da imputação dos factos difamatórios e a realização de interesses legítimos, para ficar excluído da punição, ex vi a graduação dos direitos constitucionais de direitos de personalidade versus os de direito de colaboração com a justiça”, apenas no requerimento de aclaração e arguição de nulidade do referido Acórdão, em virtude dessa questão interpretativa não se colocar antes e de só ter surgido com a sua prolação, tendo, logo, no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional dado conta dessa circunstância.
3. O despacho reclamado não admitiu o recurso por haver considerado, por um lado, que a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada não havia sido aplicada na decisão recorrida, como fora já dito no Acórdão que indeferiu a reclamação, até porque ela não fazia parte do objecto do recurso, por não constar das conclusões das respectivas alegações, e que nem, de resto, tinha de o ser, por a questão ter ficado prejudicada por o arguido ter sido absolvido, por não ter ficado provado que tivesse agido dolosamente, e, por outro, que o pedido de aclaração de uma decisão judicial não era já meio idóneo e atempado para a suscitação da inconstitucionalidade por o poder jurisdicional do juiz se esgotar com a prolação da decisão.
4. O Ex.mo Magistrado do M.º P.º pronunciou-se, no seu parecer, pelo indeferimento da reclamação por a norma cuja inconstitucionalidade se suscita não ter sido aplicada na decisão recorrida como sua ratio decidendi e por a questão de direito a ela subjacente ter sido considerada precludida, face à decisão jurídica dada ao pleito.
B – A fundamentação
5. A decisão recorrida
O Acórdão recorrido decidiu negar provimento ao recurso e confirmar a sentença de 1ª instância que absolveu o arguido da acusação de um crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180º, n.º 1 do Código Penal. E na parte que releva ao conhecimento da reclamação, escreveu-se nele:
«Sendo as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso (art.
412º nº 1 do C.P.P.), são as seguintes as questões a decidir:
- Ónus de prova em processo penal
- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
- Erro notório na apreciação da prova.
*****
I. Ónus de prova em processo penal: Alega o Recorrente, na sua conclusão c), que “cabe ao arguido provar que agiu com boa fé, informando-se previamente sobre todas as possibilidades de a imputação ser verdadeira, como a circunstância impunha”. Enquanto no processo civil recai sobre o autor o ónus da prova dos factos constitutivos do direito alegado e sobre o réu o ónus da prova dos facto impeditivos e extintivos, em processo penal as coisas não se passam desta forma pois, em última análise, compete ao juiz, oficiosamente o dever de esclarecer o facto sujeito a julgamento. Não há, pois, em processo penal, ónus da prova que recaia sobre a acusação ou sobre o arguido. No processo penal, perante a hipótese de incerteza dos factos que constituem o pressuposto da decisão, funciona o princípio “in dubio pro reo”. Em conformidade com o sentimento e a ideia de justiça de que é mais tolerável a impunidade de um culpado que a condenação dum inocente no caso da incerteza sobre factos, presume-se a inocência e não a culpabilidade. Assim, é incorrecta a afirmação do Recorrente segundo a qual ao arguido incumbe o ónus de prova de que actuou de boa fé.
II. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada: Entende o arguido, na sua conclusão o), que a matéria de facto apurada não é suficiente para que se possa chegar a uma decisão absolutório. Quanto ao vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
(art. 410º n.º 2 al. a) do C.P.P., escreve Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal – Vol. III, págs.339/340.): “Consiste na insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito. É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada” ou seja, quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida (Ac. do STJ de 13/05/98, citado por Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho – Código de Processo Penal – 2.º Vol. – Anotado, 1996, pág.
526.). Ao dar-se como provado, sob o n.º 17, que “ao agir conforme o descrito, designadamente ao indicar como suspeito o ora assistente nos termos supra referidos no ponto 13, o arguido agiu exclusivamente com o propósito de exercer um direito de queixa relativamente a factos que considerava criminosos e de colaborar na descoberta da verdade, indicando às autoridades a pessoa que razoavelmente suspeitava ter sido autora dos mesmos”, está a afastar-se o dolo em qualquer uma das suas modalidades. Diz-se que actua dolosamente quem sabe o que faz e quer fazê-lo. Assim, o dolo compreende dois elementos: o intelectual e o volitivo. Segundo Teresa Beleza (Direito Penal – 2.º Vol., pág. 166/176.), o primeiro corresponde ao conhecimento dos elementos objectivos do tipo legal de crime. O segundo ao querer a prática de certo facto ou a produção de determinado resultado. O art. 13º do C. P. estabelece a distinção entre três graus de dolo – o directo, o necessário e o eventual. No primeiro, o agente tem como fim (intenção) a realização do facto criminoso. No segundo, o agente tendo, porventura, outro fim, reconhece o facto criminoso como consequência necessária da sua conduta e, no entanto, não se abstém de a praticar. No eventual, o agente ao actuar conforma-se com a possível realização do facto criminoso como consequência da sua conduta (Leal Henriques e Simas Santos – Cód. Penal – Vol. I, pág. 181). Ora, no caso dos autos, ao dar-se como provado que a intenção do arguido ao indicar como suspeito o ora Recorrente foi exclusivamente exercer um direito de queixa relativamente a factos que considerava criminosos e de colaborar na descoberta da verdade, está a afastar-se o dolo em qualquer das suas modalidades».
6. Contra esse Acórdão reagiu o ora recorrente, arguindo a sua nulidade por falta de pronúncia sobre a questão da “necessidade de o arguido provar a veracidade da imputação ou a razoabilidade da sua crença” e pedindo a sua aclaração sobre a questão de saber “se a interpretação dada no Acórdão ao normativo contido no n.º 2 do artigo 180º do Código Penal não impõe que o arguido prove cumulativamente o interesse legítimo na imputação e a veracidade desta ou a razoabilidade de ser verdadeira e/ou se estas últimas se consideram feitas”.
7. Ambos estes pedidos foram indeferidos, tendo-se escrito, relativamente à matéria em causa, no respectivo Acórdão, o seguinte:
«Relativamente à 1ª questão, pretende o Recorrente que se esclareça se no acórdão se entende se o n.º 2 do art. 180º do C. P. impõe ou não ao arguido a prova cumulativa do estatuído nas suas duas alíneas. Ora, no recurso, essa questão não foi objecto de apreciação nem tinha que o ser já que não consta das conclusões que, como é sabido, limitam o seu objecto. Mas nem tinha que o ser porque o arguido foi absolvido por se ter provado que
“ao agir conforme o descrito, designadamente ao indicar como suspeito o ora assistente nos termos supra referidos no ponto 13, agiu exclusivamente com o propósito de exercer um direito de queixa relativamente a factos que considerava criminosos e de colaborar na descoberta da verdade, indicando às autoridades a pessoa que razoavelmente suspeitava ter sido autora dos mesmos”, isto é, foi afastado o dolo. Não se verificando preenchido o elemento subjectivo do tipo, não há que lançar mão do n.º 2 do art. 180º do C. P., o qual prevê uma causa de justificação, que afasta a ilicitude da conduta. Assim, o arguido não precisa de eximir-se “da punição através da prova de ambas as alíneas contidas no referido n.º 2 do Art. 180º”. Consequentemente, também não se verifica a alegada omissão de pronúncia, pois o Tribunal não deixou de pronunciar-se sobre questão que devesse apreciar.».
8. Do mérito da reclamação.
O reclamante interpôs recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade ao abrigo do disposto no art.º 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão), pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 2 do art.º 180º do Código Penal, “com a interpretação feita nos autos de que ao arguido do crime de difamação, não é imposto o dever de provar cumulativamente, a provável veracidade da imputação dos factos difamatórios e a realização de interesses legítimos, para ficar excluído da punição, ex vi a graduação dos direitos constitucionais de direitos de personalidade versus os de direito de colaboração com a justiça”.
Ora decorre de tal preceito – normatividade que subjaz também ao disposto no art.º 75º-A, n.os 1 e 2 da mesma LTC – que apenas é admitido recurso de decisão que tenha efectivamente aplicado a norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Dito de outro modo, torna-se necessário que a norma cuja inconstitucionalidade se pretende questionar tenha constituído pressuposto jurídico da decisão ou a ratio decidendi da decisão. Trata-se de uma solução que decorre directamente da natureza intrumental do recurso de inconstitucionalidade e da natureza da própria função jurisdicional constitucional. O Tribunal apenas tem de resolver a questão de inconstitucionalidade da norma quando a concreta decisão tenha decorrido da sua efectiva aplicação. De outro modo, a abordagem da questão equivaleria a um simples exercício académico, a uma simples hipotização construída em abstracto e para valer em abstracto.
Ora, como decorre do Acórdão recorrido, maxime, na sua dilucidação constante do Acórdão que conheceu da arguição da nulidade e do pedido de aclaração, a norma cuja inconstitucionalidade o reclamante questiona não foi aplicada na decisão recorrida.
Na verdade, o Acórdão recorrido concluiu que o arguido tinha actuado sem dolo e que, consequentemente, faltava um dos elementos constitutivos do tipo penal pelo qual ele havia sido acusado. Ao dar por assente que o arguido não havia cometido o crime, não tinha o acórdão recorrido, como bem se explicitou no Acórdão que conheceu da arguição de nulidade e do pedido de aclaração daquele aresto, que conhecer da questão de direito a que se refere o n.º 2 do art.º 180º do C. P., pois esta, referindo-se, na perspectiva do acórdão, a uma causa de justificação, excludente da ilicitude da conduta, havia ficado prejudicada pela solução dada quanto à “inexistência de crime”.
Não se verifica, assim, o referido pressuposto específico deste tipo de recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade, da aplicação efectiva da norma cuja inconformidade constitucional se pretende questionar.
C- A decisão
9. Destarte, atento tudo o exposto, decide este Tribunal Constitucional indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça de 15 UC.
Lisboa, 25 de Junho de 2003 Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos