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Processo n.º 404/04
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. e B. interpuseram, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro – doravante designada por LTC), recurso dos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20 de Novembro de 2003, que negou provimento a recurso de sentença que julgara improcedente acção de resolução de contrato de arrendamento por eles proposta contra C., com fundamento em falta de residência permanente desta locatária, e de 15 de Janeiro de 2004, que indeferiu arguição de nulidade do anterior acórdão, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 204.º, 205.º, 2.º, 13.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), da interpretação que teria sido dada aos artigos 264.º, 660.º, n.º 2, e 664.º, 2.ª parte, do Código de Processo Civil (CPC), inconstitucionalidade que teria sido suscitada “ainda que inominadamente, nas Conclusões 27 a 30 do recurso de apelação, e na arguição de nulidade do acórdão de homologação da sentença recorrida”.
O recurso não foi admitido por despacho do Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6 de Fevereiro de 2004, do seguinte teor:
“Os autores vêm, através do requerimento junto a fls. 434, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei Orgânica n.º 85/89, de 7 de Setembro, Lei n.º 88/95, de 1 de Setembro, e Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro).
Da análise dos articulados oferecidos ao longo da tramitação processual, verifica-se que em nenhum deles foi suscitada a inconstitucionalidade de qualquer norma, desconhecendo-se o que é «arguição suscitada inominadamente, nas Conclusões 27 a 30 do recurso de apelação».
A questão da inconstitucionalidade, não se sabe bem de quê, apenas surge no requerimento de reclamação do acórdão que confirma a decisão da 1.ª instância, com o fim, a nosso ver, de se criar mais uma instância de recurso, como, de resto, se alerta no requerimento da recorrida, de resposta à invocada nulidade.
Com efeito, da leitura das conclusões 27.ª a 30.ª das alegações do recurso da decisão da primeira instância não se infere a invocação de inconstitucionalidades, mas antes que os autores apenas pretendem obter pela via do recurso o resultado que não conseguiram através da prova dos factos, como resulta da audição das cassetes da gravação da prova testemunhal.
Inconstitucionalidade haveria se o tribunal decretasse o despejo duma cidadã, que sempre cumpriu os seus deveres e obrigações de locatária
(artigo 1038.º do Código Civil), e a decretar-se o despejo violar-se-ia o preceituado no artigo 65.º da Constituição da República.
Ora, não tendo sido suscitada durante o processo a inconstitucionalidade de qualquer norma, não se verificam os pressupostos exigíveis pela invocada alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, pelo que não se admite o recurso, indeferindo-se o requerimento supra referido, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 76.º da Lei do Tribunal Constitucional.”
Contra este despacho vem deduzida, pelos autores, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, da LTC, a presente reclamação, nos seguintes termos:
“l. Os reclamantes intentaram uma acção de despejo com fundamento em ausência permanente da arrendatária durante um período temporal bem definido, de 1995 a 1998.
2. A ré, citada de seguida, e no local que foi apontado pelos autores como nova residência da mesma, não pôs em causa esse quadro temporal, impugnou a acção e alegou razões que entendeu justificativas de tal ausência do locado.
3. Arrolou testemunhas, inclusive a sobrinha, na casa da qual passara a residir.
4. Realizada a audiência só em 2002, e produzida a prova, a acção foi julgada improcedente.
5. Na fundamentação das respostas aos artigos que constituíam fundamento da resolução do contrato, a M.ma Juíza entendeu que o quadro temporal em causa não se situava entre 1995 e 1998, mas de 1998 a 2000.
6. Visto de outro modo, entendeu a M.ma Juíza que, contra o que fora articulado e contestado, os autores não produziram prova da ausência da ré da casa dos autos porque isso só veio a ocorrer entre os anos de 1998 ao ano de
2000.
7. A M.ma Juíza, com tal transposição factual, produziu uma subversão do elementar e fundamental princípio dispositivo.
8. As partes não dissentiram, pois, na época a que se reportavam.
9. A M.ma Juíza deslocou assim os factos alegados pelos autores para a data de entrada da petição inicial e anos seguintes...
10. Os apelantes, nas alegações de recurso, não mencionaram expressamente como violados os artigos 264.°, 660.º, n.° 2, 664.° (2.ª parte), todos do CPC.
11. Nas respectivas conclusões, de 27 a 30, foi arguida a nulidade da douta sentença por tal subversão do «quadro temporal da petição» e aparente
«premonição», ou antecipação dos autores, sobre tal virtual ocorrência dos factos alegados na petição inicial.
12. Em subsequente arguição de nulidade do douto acórdão, os apelantes voltaram a destacar essa subversão do princípio dispositivo por o próprio acórdão, ora em crise, ter mantido a «desconfiguração» dos termos da acção.
13. Aí se evidenciou que se tratava da violação de uma trave mestra do edifício do processo civil, como é o principio dispositivo.
14. Referiu-se que se fez interpretação inconstitucional das referidas normas do CPC e, daí, dos ditames dos artigos 204.°, 205.°, 2.º, 13.° e 20.° da Constituição da República.
15. A questão, isto é, a violação do princípio dispositivo por interpretação inconstitucional do mesmo, e sempre, por violação dos reportados direitos fundamentais encontra-se assim referida nas conclusões do recurso.
16. Quanto ao douto acórdão, é evidente que não se pode prever que, também na instância de recurso, se venham a infringir os mesmos princípios ou normas constitucionais.
17. Outro entendimento faria precludir o recurso por inconstitucionalidade praticada na instância de recurso ou em revista – o que, de certo, o legislador não quis, e que, aliás, esse Tribunal Constitucional também já tem reconhecido.
18. O recurso para o Tribunal Constitucional pode, de certo, ter por fundamento qualquer interpretação ou violação da CRP ocorrida na última decisão e que não seja passível de recurso.
19. Se, relativamente ao recurso da douta sentença, a alegação não foi acompanhada da alusão expressa aos normativos ofendidos, o certo é que o correspondente enquadramento factual foi apresentado e submetido à apreciação da instância de recurso.
20. A questão, porém, não foi sequer abordada na decisão da apelação.
Antes,
21. Autonomamente, manteve-se a transposição do quadro factual, o que foi alegado e contestado, e que a M.ma Juíza, na douta fundamentação das respostas, e sequente sentença, veio a subverter, tornando a petição inicial e a contestação meras «utopias»!...
Por sua vez,
22. O Senhor Doutor Juiz Desembargador Relator invocou o «alerta» da resposta da recorrida à arguição de nulidade do douto acórdão e, peremptoriamente, afirmou que a recorrida «sempre cumpriu» os seus deveres e obrigações de locatária, terminando por indeferir o requerimento de recurso, não admitindo, assim, o interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
Por tudo,
Senhor Doutor Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional,
Compulsando os autos e as partes sob alusão, e ordenando, pelas razões expostas, a admissão do recurso e a consequente subida dos autos a esse Tribunal Constitucional, fará, como sempre, Justiça!”
Notificada, a recorrida respondeu, sustentando a extemporaneidade da reclamação e, em qualquer caso, o seu indeferimento, por durante o processo não ter sido suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
No Tribunal Constitucional, o representante do Ministério emitiu parecer no sentido de que “a presente reclamação carece ostensivamente de qualquer fundamento sério, já que os recorrentes não suscitaram, durante o processo – tendo plena oportunidade de o fazer – qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de servir de base ao recurso interposto”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A questão da extemporaneidade da reclamação, suscitada na resposta da recorrida, assenta num equívoco: o despacho reclamado foi notificado por carta registada expedida em 10 de Fevereiro de 2004 (cf. cota de fls. 437 verso do processo principal), e não em 19 de Janeiro de 2004, como refere a recorrida (nesta data foi expedida a notificação do acórdão de 15 de Janeiro de 2004, que indeferira a arguição de nulidades – cf. cota de fls. 433 verso do processo principal). Assim, o despacho reclamado considera-se notificado em 13 de Fevereiro de 2004 (artigo 254.º, n.º 2, do CPC) e o prazo de apresentação da reclamação terminava no subsequente dia 23, data em que efectivamente a reclamação deu entrada no tribunal a quo (cf. fls. 1 dos presentes autos).
2.2. É, porém, manifesta a inadmissibilidade do presente recurso.
Tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LCT, a sua admissibilidade depende da suscitação
“durante o processo” da inconstitucionalidade da(s) norma(s) aplicada(s) pela decisão recorrida e cuja conformidade constitucional o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, esclarecendo o n.º 2 do artigo 72.º da mesma Lei que tal recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve “lapso manifesto” do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações.
Só assim não será nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade – situações que, no presente caso, manifestamente não ocorrem, não podendo considerar-se surpreendente uma interpretação normativa feita pelo Tribunal da Relação que é confirmativa da já seguida na sentença apelada.
Ora, antes de proferidos os acórdãos recorridos, os recorrentes não suscitaram – tendo tido oportunidade processual para tal – a questão da inconstitucionalidade das interpretações normativas (que, aliás, não identificam com o mínimo de precisão e clareza) que agora pretendem ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional.
Não o fizeram, mesmo “inominadamente”, nas conclusões
27.ª a 30.ª das alegações do recurso de apelação, do seguinte teor:
“27) Pela fundamentação das respostas se verifica que o Tribunal acabou por considerar a efectiva ausência da ré do locado pelo período de cerca de três anos, mas de fins de 1997 a 2000, isto apenas com apoio no testemunho da sobrinha da ré.
28) Chegou-se assim à peregrina conclusão de que os senhorios alegaram, bem, a ausência da ré, por cerca de três anos, por uma espécie de «premonição» do que isso iria acontecer mas a partir da instauração da acção.
29) Só assim se compreende, por esta nítida contradição, que o depoimento de D. tenha sido fundamental para o Tribunal, ou seja, enquanto extrapolou a ausência da tia do locado num período que «escapava» ao quadro temporal da petição.
Assim,
30) Para o Tribunal foi depois de citada para esta acção que a ré se ausentou do locado por cerca de três anos!...”
E também não o fizeram no requerimento de arguição de nulidades do primeiro acórdão (cf. fls. 423 a 426 do processo principal), onde se limitam a referir que as decisões judiciais questionadas havia violado o princípio dispositivo e que, assim, essas decisões, em si mesmas consideradas, haviam violado os artigos 204.º, 205.º, 2.º, 13.º e 20.º da CRP. Ora, para além de a arguição de nulidades do acórdão que julgou a apelação ser momento inidóneo para a suscitação da questão de inconstitucionalidade, esta aparece reportada
às próprias decisões judiciais, quando, como é sabido, objecto de controlo pelo Tribunal Constitucional só podem ser normas (ou interpretações normativas) e não decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Carece, assim, a presente reclamação de fundamento sério, o que determina o seu indeferimento.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 14 de Abril de 2004
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos