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Processo n.º 814/02
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional,
I. Relatório
1.A. e B. intentaram, em 28 de Agosto de 2001, acção de despejo contra C., com fundamento na necessidade do local arrendado para habitação da segunda autora, filha da primeira. O demandado contestou, impugnando alguns dos factos alegados pelas autoras, e, por excepção, invocando terem decorrido mais de vinte anos desde que se mantinha no local como arrendatário (sendo o contrato de 1974), pelo que, considerando que o artigo 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano - R.A.U. (que previa um prazo de trinta anos, e não de vinte) foi declarado inconstitucional pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 97/2000, o senhorio não podia usar da faculdade de denúncia, conforme dispunha o artigo 2º, alínea b), da Lei n.º 55/79, de 15 de Setembro. A autora replicou invocando que a repristinação da Lei n.º 55/79, até à nova redacção do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do R.A.U., dada pelo Decreto-Lei n.º 329-B/2001, de 22 de Dezembro, não teria esse sentido, tendo vigorado o prazo de vinte anos apenas “até 1990 e, depois, brevemente, entre Março de 2000 e Janeiro de 2001”.
Por sentença de 31 de Janeiro de 2002, proferida no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Franca de Xira, foi julgada procedente a excepção de caducidade e o réu absolvido do pedido, por à data da propositura da acção já ter decorrido o prazo de 20 anos de manutenção do arrendatário, a esse título, no local arrendado, previsto no referido diploma de 1979, que foi repristinado, nos termos do artigo
282º, n.º 1, da Constituição, pela declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do citado Acórdão n.º 97/2000 (publicado no Diário da República [DR], I série-A, de 16 de Fevereiro de 2000).
2.Inconformadas, as autoras recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo no sentido de que:
“a) A regra da segunda parte da al. b) do n.º 1 do art. 107º do R.A.U. na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 329-B/2001, de 22 de Dezembro, aplicável no caso dos autos, deve ser interpretada no sentido de que o prazo mais curto nela referido, de vinte anos, será relevante para efeitos de limitação ao direito de denúncia do senhorio se se tiver completado durante a vigência da Lei n.º 55/79, entendendo-se como vigência desta o período em que os seus destinatários podiam contar com a sua aplicabilidade; b) Não deve em consequência, para os efeitos daquele preceito, considerar-se como ‘vigência’ o período que decorreu entre a entrada em vigor do R.A.U., e da versão inicial desse seu art. 107º, e a respectiva declaração de inconstitucionalidade pelo Acórdão n.º 97/2000 do Tribunal Constitucional; c) De facto, face aos princípios constitucionais em jogo na opção legislativa de Dezembro de 2000 – e considerando o seu pressuposto básico de manter o prazo de trinta anos introduzido em 1990 com o R.A.U. – incongruente era que se admitisse a sobrevigência do anterior prazo mais curto para além do que fosse exigido pelo princípio da protecção da confiança dos possíveis destinatários dessa regra; d) Com esta limitação tem pois de ser confrontada a regra da repristinação da norma revogada por norma declarada inconstitucional, regra essa que, reconhecidamente, não é uma regra absoluta; e) E, do confronto dessas duas imposições constitucionais, afigura-se ter de resultar que o legislador, no preceito em análise, quis utilizar o sentido que a ambas salvaguardasse – que apenas pode ser o exposto nas antecedentes als. a) e b); f) Decidindo diversamente, a douta sentença recorrida fez errada aplicação do preceito legal em causa, co-envolvendo a ofensa dos princípios constitucionais atrás invocados.”
Antes, as recorrentes haviam dito que
“(...) um inquilino só tem a expectativa de ver a sua situação consolidada, nos termos aqui em causa, se o seu entendimento atingir os vinte anos de duração durante o período em que a lei consagrou que era esse o prazo para tanto relevante. E esse período, como se assinalou na réplica, foi o que decorreu de
16.9.1979 a 17. 11.1990 e, depois, de 17.3.2000 a 21.1.2001. Fora dele – quer no lapso de tempo intermédio, quer após esta última data – a duração exigida será a de trinta anos.
6. Afigura-se ser este o único entendimento constitucionalmente admissível, em ordem a salvaguardar os princípios da confiança e da segurança jurídica ínsitos no princípio do Estado de Direito.”
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 23 de Maio de 2002, julgou improcedente o recurso de apelação, com a seguinte fundamentação:
“As autores basearam o seu pedido na necessidade do prédio locado para habitação da segunda autora, conforme vem previsto no artigo 69º, n.º 1, al.ª a), do RAU. Todavia, o direito de denúncia sofre das limitações constantes do artigo 107º do RAU, isto é, não pode ser exercido quando o arrendatário se encontra no local arrendado há 30 anos ou mais, nessa qualidade, ou por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e ocorrido na vigência desta – n.º 1 alª b), na redacção do Decreto-Lei n.º 329-B/2000, de 22 de Dezembro, vigente à data da entrada da acção. Antes de ser alterado pelo Dec.-Lei n.º 329-B/2000, de 22 de Dezembro, o art.
107º, n.º 1, alínea b), do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, tinha a seguinte redacção:
‘manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade.’ Esta norma foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do artigo 168º, n.º 1, al. h), da Constituição. O artigo 282º da Constituição, sob a epígrafe (Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade) prescreve no n.º 1 que ‘a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado’. A declaração de inconstitucionalidade (ou de ilegalidade) tem efeito repristinatório, determinando a reentrada em vigor de normas eventualmente revogadas pela norma declarada inconstitucional (ou ilegal). Trata-se de um efeito directo da inconstitucionalidade (ou da ilegalidade), pois, sendo a norma inválida desde a origem, é inválida desde logo a revogação de normas anteriores que ela tenha efectuado. Esta eficácia retroactiva da declaração de inconstitucionalidade significa fundamentalmente duas coisas: (a) invalidade e cessação de vigência da norma ou normas declaradas inconstitucionais a partir do momento da declaração de inconstitucionalidade; (b) proibição da aplicação das normas inconstitucionais a situações ou relações desenvolvidas à sombra da sua eficácia e ainda pendentes. Deste modo, e com efeito a partir de 15.11.1990, foi reposta em vigor a Lei n.º
55/79, de 15 de Setembro, que havia sido revogada pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90. A Lei n.º 55/79 previa, como limitação ao direito de denúncia do contrato de arrendamento, o facto de o inquilino se manter na unidade predial há vinte anos, ou mais, nessa qualidade – art.º 2º, n.º 1, al. b). O contrato de arrendamento sub judice teve o seu início em 1 de Novembro de
1973, pelo que o prazo de 20 anos ocorreu em 31 de Outubro de 1993. Assim, não podem as apelantes exercer o direito de denúncia do contrato de arrendamento facultado pelo alínea a) do art. 69º do RAU. Se se suspender a contagem do prazo da caducidade durante o período que decorre entre 15.11.90 e 17.03.2000, como pretendem as apelantes, isso equivaleria a não se admitir o efeito repristinatório consagrado no artigo 282º, n.º 1, in fine, da Constituição e chegar ao resultado de privar de quaisquer efeitos a declaração de inconstitucionalidade. Pode-se, pois, concluir que à data da propositura da acção já o réu havia beneficiado do prazo de 20 anos, por força do disposto na última parte do art.
107º, n.º 1, al. b), do RAU, na redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 329-B/2000, de
22 de Dezembro.”
3.Desta decisão interpuseram as autoras o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional,
“visando a apreciação da inconstitucionalidade da segunda parte da al. b) do n.º
1 do art. 107º do Regime do Arrendamento Urbano, na redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 329-B/2000, de 22 de Dezembro, na interpretação que dela foi feita pelo douto acórdão recorrido, no sentido de que o prazo de vinte anos, referido nesse segmento normativo, é relevante mesmo se se tiver completado no período que decorreu entre 15.11.1990 e 17.3.2000, dessa forma ofendendo o princípio constitucional da protecção da confiança, conforme suscitaram nos autos, designadamente nas alegações de recurso apresentadas nesse Tribunal da Relação.”
As recorrentes concluiram as suas alegações nos seguintes termos:
“a) Por douto acórdão de 17.10.02, do Tribunal da Relação de Lisboa, foi julgada procedente a excepção de caducidade invocada pelo R.; b) Determinando a aplicação ao caso do art.º 2º, al. b), da Lei n.º 55/79, de
15.9, o referido acórdão limitou-se a aplicar mecanicamente as regras gerais, constantes do art.º 282º, n.º 1, da CRP, aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do art.º 107, n.º 3, do RAU, na redacção do DL n.º 321-B/90, de 15.10 [sic], operada pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 97/2000, de 16.2; c) Idêntica limitação tolheu a interpretação, que aí se fez, do alcance da norma constante do art.º 107º, n.º 1, b), do RAU, na redacção do DL n.º 329-B/2000, de
22.12; d) A principal falta decorre da inobservância dos limites constantes do artº
282º, n.º 4, da CRP, que impunham a consideração da confiança depositada pelas partes na não produção do efeito jurídico pretendido pelo R. na sua contestação,
à luz das normas e valores que integravam o ordenamento jurídico, vigente à data da produção do referido efeito e à data da referida declaração de inconstitucionalidade; e) Normas e valores que, na sua essência, se mantêm hoje inalterados; f) Residindo o carácter intolerável da interpretação expressa no douto acórdão recorrido não só na frustração de uma expectativa que era legítima, mas também na dimensão do sacrifício imposto às recorrentes, que viram decisivamente coarctados os seus direitos à habitação e à propriedade privada, direitos fundamentais análogos aos direitos, liberdades e garantias; g) E aqui era forçoso também um juízo de ponderação, imposto pela equidade, segundo limite à declaração de inconstitucionalidade com eficácia ‘ex tunc’, o qual, face aos direitos fundamentais em confronto, e à luz da ‘ratio’ imanente ao nosso ordenamento jurídico (que confere primazia ao direito à habitação do proprietário do imóvel, em detrimento do direito à habitação do inquilino), levaria a que fossem, no mínimo, compatibilizados os direitos em confronto; h) Não se vislumbrou qualquer tentativa de compatibilização no douto acórdão recorrido, recaindo o sacrifício apenas sobre os direitos das recorrentes; i) Em qualquer caso, em presença de direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias, sempre a sua restrição com efeitos retroactivos estava sujeita às limitações constantes do art.º 18º, n.º 3, da CRP; j) Sendo que uma interpretação conforme à Constituição do art.º 107º, n.º 1, al. b), do RAU, na redacção actual, no caso concreto, levaria a que o período de vigência do art.º 2º, al. b), da Lei n.º 55/79, coincidisse com aquele em que os seus destinatários efectivamente confiaram na sua tutela; k) Ou seja, o período compreendido entre 16.9.79 e 15.11.90, correspondente à sua normal vigência, e entre 17.3.00 a 21.1.01, correspondente ao lapso temporal que decorreu entre a declaração de inconstitucionalidade do art.º 107º, n.º 3, do RAU, na redacção do DL n.º 321-B/90, de 15.10, e a entrada em vigor do actual art.º 107º, n.º 1, b), do RAU; l) Assim não entendendo, o douto acórdão recorrido fez interpretação contrária
às exigências constitucionais de protecção da confiança e equidade, patentes no art.º 282º, n.º 4, da CRP, ademais com claro atropelo ao princípio da proporcionalidade, em sentido amplo, e ao princípio da proibição do excesso, constantes do art.º 18º, n.ºs 2 e 3, da CRP; m) Deverá, pois, ser declarada inconstitucional a segunda parte da al. b) do n.º
1 do art.º 107º do RAU, na redacção dada pelo DL n.º 329-B/2000, de 22.12, na interpretação que dela foi feita pelo douto acórdão recorrido.”
Por sua vez, o recorrido concluiu as suas contra-alegações da seguinte forma:
“1. O Acórdão n.º 97/2000, de 16.02.2000, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma da alínea b) do n.º 1 do art.º 107º do RAU, que estabelecia o prazo de 30 anos como limitação ao exercício do direito de denúncia do arrendamento;
2. Em consequência, por força do n.º 1 do artigo 282º da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade da norma atrás referida produziu efeitos desde a entrada em vigor desta, ou seja, desde 15.11.90 (início da vigência do RAU);
3. A inconstitucionalidade da referida norma determinou ‘ipso jure’ a repristinação da norma por ela revogada, isto é, a alínea b) do artigo 2º da Lei n.º 55/79, de 15 de Setembro, que estabelecia o prazo de 20 anos, como limitação ao exercício do direito de denúncia do arrendamento;
4. Assim, é aplicável ao caso dos autos a norma do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do RAU, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 329-B/2000, de 22 de Dezembro, o qual determina que o direito de denúncia do arrendamento não pode ser exercido quando o arrendatário se mantenha no local arrendado por 30 ou mais anos, ou por período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência desta.
5. O contrato de arrendamento do andar despejando do qual é arrendatário o ora Recorrido teve o seu início em 01 de Novembro de 1973, pelo que o termo do prazo de 20 anos ocorreu em 31 de Outubro de 1993, não podendo assim as Recorrentes exercerem o direito de denúncia do arrendamento facultado pela alínea a) do n.º
1 do art.º 69º do RAU;
6. O acórdão recorrido não violou a norma do art.º 282º, n.º 4, da C.R.P., porquanto as limitações ao efeito repristinatório genérico estabelecido no n.º 1 do mesmo artigo só poderiam ter sido fixadas pelo Acórdão revogatório, o que não se verificou;
7. O acórdão recorrido também não violou a norma do art.º 18º, n.ºs 2 e 3, da C.R.P., pelas mesmas razões e ainda porque o regime aí estabelecido apenas se aplica aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, entre os quais não se inclui o direito à habitação invocados pelas Recorrentes;
8. Em qualquer dos casos, nunca poderiam os tribunais comuns, e neste caso o Tribunal da Relação de Lisboa, sobrepor-se ao Acórdão n.º 97/2000 que declarou a inconstitucionalidade da norma da alínea b) do n.º 1 do art.º 107º do R.A.U. com efeitos retroactivos ‘ex tunc’ e interpretar a norma da alínea b) do art.º 2º da Lei 55/79, com o alcance temporal pretendido pelas Recorrentes;
9. Deste modo, não tem qualquer base legal o pedido de declaração de inconstitucionalidade da segunda parte da alínea b) do n.º 1 do art.º 107º do R.A.U., na redacção dada pelo D.L. n.º 329-B/2000, de 22 de Dezembro, na interpretação feita pelo acórdão recorrido. Nestes termos, deve o presente recurso ser declarado improcedente, confirmando-se o douto acórdão recorrido, o que seria de inteira Justiça.”
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
4.O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, tendo por objecto a apreciação da constitucionalidade da segunda parte da alínea b) do n.º 1 do artigo 107º do Regime do Arrendamento Urbano, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 329-B/2000, de 22 de Dezembro, isto é, o segmento desta alínea que se refere ao decurso de
“um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência desta”.
Dispõe este artigo 107º, n.º 1, alínea b):
“1 - O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pelas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 69.º, não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstâncias:
(…) b) Manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade, ou por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência desta.”
O “período de tempo mais curto previsto em lei anterior”, em questão no presente caso, era o previsto no artigo 2º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 55/79, de 15 de Setembro, que previa um prazo de vinte anos.
As recorrentes impugnam uma “interpretação” deste artigo 107º, n.º1, alínea b), na parte em que se refere a “por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência desta”, no sentido de este prazo de vinte anos ser relevante mesmo se se tiver completado no período que decorreu entre a entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano – que, na sua redacção originária, previa igualmente um prazo de 30 anos – e a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral operada pelo citado Acórdão n.º 97/2000, do Tribunal Constitucional.
Consultando os autos, verifica-se que as recorrentes sustentaram, perante o tribunal a quo, que tal entendimento seria inconstitucional, por violador dos princípios da confiança e da segurança jurídica, ínsitos no princípio do Estado de Direito.
Por outro lado, procurando a ratio decidendi do acórdão recorrido encontramos nele considerações sobre os efeitos repristinatórios da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, na sua redacção originária, constante do Acórdão n.º 97/2000. E poderá até entender-se que, mesmo sem se basear da nova redacção – em causa no presente recurso – desta alínea b), introduzida pelo citada Decreto-Lei n.º 329-B/2000, a decisão recorrida, por mera determinação do alcance e dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, chegaria a decisão idêntica àquela a que chegou.
Seja como for, porém, é certo que a argumentação da recorrente, baseada justamente numa certa limitação dos efeitos da inconstitucionalidade, por invocação dos princípios da confiança e da segurança jurídica, atingiria também tal fundamento. E – decisivamente – tais considerações sobre a repristinação servem no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa recorrido, e cuja fundamentação se transcreveu, para averiguar se a hipótese prevista na parte final do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do RAU, estava preenchida, tendo, pois, tal acórdão assentado directamente nesta norma.
Pode, pois, tomar-se conhecimento do presente recurso, importando, porém, deixar claro que não está nele em causa, nem novamente a questão da inconstitucionalidade orgânica do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do RAU, na redacção originária – que foi decidida e declarada pelo Acórdão n.º 97/2000 –, nem, muito menos, a apreciação da pretensão das recorrentes, em face das circunstâncias do caso concreto e das necessidades habitacionais de ambas as partes.
5.Como se sabe, com o artigo 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, veio alargar de 20 para 30 anos o prazo de permanência do arrendatário no local arrendado, relevante para o efeito de obstar à denúncia do contrato de arrendamento para habitação do senhorio (e, depois do RAU, dos seus descendentes).
Esta alteração originou já problemas de aplicação no tempo, mesmo antes de vir a ser declarada a sua inconstitucionalidade orgânica, destacando-se (como também se registou no citado Acórdão n.º 97/2000), no contexto da conformidade constitucional, o julgamento de inconstitucionalidade, pelos Acórdãos n.ºs
259/98 (publicado nos Acórdão do Tribunal Constitucional, 39º vol., págs. 511 e segs.), 270/99 (DR, II série, de 13 de Julho de 1999) e 682/99 (DR, II série, de
28 de Fevereiro 2000), e por violação do artigo 2º da Constituição, da “norma do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano interpretada no sentido de abranger os casos em que já decorrera integralmente no domínio da lei antiga o tempo de permanência do arrendatário indispensável segundo essa lei para impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio.”
No presente caso, não está em questão essa inconstitucionalidade parcial, pois o período de tempo relevante veio apenas a completar-se em 1993, já depois da entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano.
O artigo 107º, n.º 1, alínea b), deste diploma veio, porém, a ser declarado inconstitucional, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea h), da Constituição, na redacção da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, pelo referido Acórdão n.º 97/2000 – na sequência, aliás, de vários julgamentos em casos concretos no mesmo sentido.
Ora, nesse Acórdão n.º 97/2000 não se efectuou qualquer limitação dos efeitos da inconstitucionalidade, como permite o artigo 282º, n.º 4, da Constituição, quando “a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem”. Tal declaração teve, pois, os efeitos gerais das decisões que declaram a inconstitucionalidade de uma norma, isto é, nos termos do n.º 1 desse artigo 282º, “produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado” – designadamente, repristinou a norma em vigor anteriormente ao artigo 107º, n.º
1, alínea b), do RAU, que previa um prazo 10 anos mais curto de permanência no local arrendado, para o inquilino poder obstar à denúncia do arrendamento.
Foi, aliás, na sequência desta declaração de inconstitucionalidade – e em consonância com estes seus efeitos retroactivos e repristinatórios – que a nova redacção do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do RAU, dada pelo Decreto-Lei n.º
329-B/2000, que reintroduziu o prazo de 30 anos, veio exceptuar do prazo de 30 anos, que reintroduziu, o decurso de “um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência desta”.
Ora, tal como a segurança jurídica – e a confiança das partes, se esta, só por si, for de considerar relevante para o efeito – não determinou (por não a exigir) a limitação dos efeitos da inconstitucionalidade no citado Acórdão n.º
97/2000, também quanto a esta nova redacção do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do RAU, em causa no presente recurso, se pode concluir agora que a protecção da segurança jurídica e da confiança, imposta pelo princípio do Estado de Direito, não exige um julgamento de inconstitucionalidade.
A solução decorrente da norma em questão é, assim, simples decorrência dos normais efeitos, retroactivos e repristinatórios, da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, sem limitação de efeitos, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 282º da Constituição.
6.É certo que, como afirmam as recorrentes, desde a entrada em vigor do RAU, em
1990, se previa na lei um prazo de 30 anos de permanência do inquilino no local arrendado. E é também certo, como referem, que, justamente em 1993, em processo de fiscalização abstracta, o Tribunal Constitucional, pelo Acórdão n.º 311/93
(publicado no DR, II série, de 22 de Julho de 1993), não havia julgado inconstitucional as normas da lei de autorização legislativa em que se baseou a aprovação do RAU (as alíneas a), b), c), e), g), h), i) e n) do artigo 2º da Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto).
Não pode, ainda assim, dizer-se que o regime do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º
329-B/2000, de 22 de Dezembro, no segmento em que se refere ao decurso de “um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência desta”, viole os princípios da confiança ou da segurança jurídica.
É que, como é óbvio, estes princípios não protegem contra a frustração de toda e qualquer expectativa ou confiança que se forme com base na vigência de uma norma, mas contra a afectação intolerável da expectativa ou confiança legítima. E, em princípio, e sem considerações adicionais, não pode qualificar-se como tal a confiança ou expectativa que é depositada na vigência de uma norma inconstitucional, ou que vem a ser declarada inconstitucional, com força obrigatória geral.
Ora, este é justamente o caso do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do RAU, na sua redacção originária (sendo evidentemente irrelevante, ao contrário do que pretendem as recorrentes, que o vício em causa fosse de inconstitucionalidade orgânica, e não de outro tipo).
Por outro lado, o citado Acórdão n.º 311/93 não versou sobre a norma do RAU em questão, mas sobre normas da respectiva lei de autorização legislativa. Aliás, é sabido que as decisões que não se pronunciam pela existência de inconstitucionalidade não excluem a possibilidade de mais tarde, noutro processo, vir a ser declarada a inconstitucionalidade, mesmo da norma já anteriormente apreciada (sendo, aliás, no presente caso, tal possibilidade até reforçada pela existência de várias declarações de voto, nesse sentido, apostas no citado Acórdão n.º 311/93).
Por último, recordar-se-á que se não procedeu no Acórdão n.º 97/2000 a qualquer limitação dos efeitos da inconstitucionalidade declarada. Ora, se se tivesse entendido haver alteração da anterior orientação – o que, como se disse, não pode afirmar-se, pois as decisões dos Acórdãos n.ºs 311/93 e 97/2000 reportam-se a normas distintas –, e que tal alteração prejudicaria de forma intolerável a segurança jurídica, em termos constitucionalmente inadmissíveis, então seria esse, justamente, um daqueles casos em que a protecção daquela segurança exigiria, nos termos do artigo 282º, n.º 4, da Constituição, uma tal limitação de efeitos. Não foi este, porém, o entendimento deste Tribunal, que, como se disse, não limitou os efeitos da inconstitucionalidade declarada no referido Acórdão n.º 97/2000.
O presente recurso não merece, pois, provimento.
III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º
329-B/2000, de 22 de Dezembro, e no segmento em que se refere ao decurso de “um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência desta”; b) Em consequência, negar provimento ao presente recurso e condenar as recorrentes em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 12 de Novembro de 2003
Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos