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Proc. n.º 268/01
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A - Relatório
1. A., com os demais sinais dos autos, foi condenado pelo Tribunal Colectivo da Comarca ---------- como autor de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. nos termos dos artigos 16º, n.º 1, alíneas a) e b), da Lei n.º
34/87, de 16 de Julho, e 26º, n.º 7, alíneas a) e b), do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, em concurso com um crime de corrupção passiva para acto lícito, p. e p. nos termos dos artigos 2º e 17º da mesma Lei n.º 34/87, e 4º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 371/83, de 6 de Novembro, em cúmulo jurídico, na pena
única de seis (6) anos de prisão e cento e cinquenta (150) dias de multa à taxa diária de 7.500$00, dos quais lhe foram perdoados, nos termos do artigo 8.º, n.º
1, alíneas b) e d), da Lei n.º 15/94, um ano de prisão e toda a pena de multa.
2. Realizada a audiência de discussão e julgamento - e no decurso da produção da prova -, foi ditado para a acta um despacho do Juiz Presidente, segundo o qual tinham sido indiciados factos que podiam configurar uma alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia.
E face a essa verificação, notificou dessa alteração o arguido “tudo conforme artigos 1.º, al. f), “a contrario”, e 358.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, concedendo-se-lhe, se o desejar, o prazo de 10 dias para a preparação da defesa” (fls. 3256).
3. De tal despacho logo o arguido interpôs recurso, sem prescindir do prazo concedido para a referida preparação, por entender que a factualidade indiciada importava uma alteração substancial da pronúncia, sendo certo que tais factos haviam sido objecto de apreciação e de arquivamento por parte do Ministério Público e, por isso, não eram novos.
Assim, tal factualidade não podia ser tomada em conta no processo em curso, nem sequer valer como denúncia ao Ministério Público.
4. Admitido o recurso, a subir com o que viesse a ser interposto de decisão final, veio a ser designado novo dia para julgamento, após o qual foi o arguido condenado pelos crimes por que se encontrava pronunciado.
5. Não se conformando com a decisão proferida, dela interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), tendo na sua motivação suscitado várias questões de inconstitucionalidade, entre elas a dos artigos 410º, n.º 2, 432º, al. e), e 433º do Código de Processo Penal (CPP), por entender ter direito a um segundo grau de jurisdição que essas normas acabam por cercear-lhe.
Tal recurso foi devolvido pelo Supremo Tribunal de Justiça à Relação d-
----------, por esta ser o competente para se pronunciar sobre o mesmo.
6. O Tribunal da Relação d- ------------ veio, então, a confirmar a decisão da
1ª Instância, incluindo a decisão interlocutória, e não admitiu o recurso para o STJ com base no entendimento de que no caso “vertente não está preenchida a condição (pena de prisão superior a 8 anos) imposta pela referida alínea f) do art.º 400º do CPP”.
Desta decisão reclamou para o Presidente daquele Supremo Tribunal que, por sua vez, desatendeu a reclamação com base em que não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações que confirmem a decisão da 1ª Instância em processo por crime a que não seja aplicável pena de prisão superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções (fls. 3466, in fine).
7. Recorre, agora, o arguido para este Tribunal Constitucional contra o aludido acórdão do Tribunal da Relação, refutando o decidido com base nas razões que expôs ao longo das respectivas alegações e que sintetizou nas seguintes conclusões:
7.1.
«I. A norma (cuja inconstitucionalidade deve ser declarada) retirada da conjugação dos art.os 327º, n.º 2, 355º, n.º 1, 360º, n.º 2, e 371º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, na interpretação acolhida no acórdão recorrido, ou seja, a norma que estatui que, tornando-se necessária a produção de prova suplementar sobre aspectos atinentes à condição económica do arguido, a mesma pode ser feita após o encerramento da audiência, sem que se faculte à parte, ao Ministério Público e aos outros intervenientes processuais, a produção de alegações orais perante o tribunal colectivo, se não houver oposição expressa destes, por não ser absoluta a proibição constante no art.º 355º daquele diploma.
II. A norma complexa, com a interpretação acolhida na decisão impugnada, viola o disposto nos n.os 1 e 5 do art.º 32º da Constituição
(violação do princípio do contraditório e das mais elementares garantias de defesa do arguido).
III. “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.” Ora, estando, no caso sub judicio, ultrapassada a fase instrutória, a garantia do contraditório há-de cobrir toda a audiência de julgamento, sendo irrelevante qualquer atitude processual do arguido de dispensa ou de renúncia a esta imposição constitucional.
IV. O caminho percorrido, desde o texto constitucional, passando pelos entendimentos doutrinais e pela disciplina positiva constante do Código de Processo Penal, permitem detectar que a norma aplicada pelo Tribunal da Relação d- -------------- e que atrás foi identificada está afectada de inconstitucionalidade material. De facto, numa primeira linha de argumentação, o douto acórdão recorrido faz tábua rasa do enquadramento constitucional dos princípios do contraditório e acusatório e limita-se a admitir que o art.º 355º, n.º 1, do CPP, prescreve o procedimento seguido no Tribunal de 1ª Instância. Mas, logo em seguida, considera que a falta de oposição do arguido, sanou de imediato a possível nulidade, para deixar de poder ser invocada. Sem razão, porém. De facto, o arguido foi notificado da junção de documentos aos autos por actuação oficiosa do tribunal e, no exercício dos seus poderes-deveres de cooperação, pronunciou-se sobre o respectivo teor, nada mais dizendo porquanto nada mais era exigível que dissesse, atendendo à sua estratégia processual de se pronunciar em audiência de julgamento, para o efeito a reabrir, em alegações, após as alegações do Ministério Público.
V. Não lhe tendo sido, inconstitucionalmente, facultada a possibilidade de alegação oral e de exame contraditório dessas provas, foi confrontado com a prolação do acórdão condenatório. Nem se diga que o juízo do Tribunal da Relação d-- ---------- não pode ser sindicado pelo Tribunal Constitucional, porquanto a este último cabe, de facto, a última palavra sobre se a suscitação da questão de constitucionalidade foi atempada. E este Órgão Supremo da Jurisdição Constitucional irá certamente considerar que, só no momento da notificação do acórdão condenatório, é que se consumou a impossibilidade de contraditório presencial sobre a última prova carreada para os autos sobre a condição económica do arguido e dos seus familiares e da alegação em último lugar sobre o valor dessa prova.
VI. Conclui-se, assim, que viola frontalmente os n.os 1 e 5 do art.º 32º da Constituição a norma acima identificada, na interpretação acolhida no douto acórdão recorrido».
7.2.
«VII - As normas (cuja inconstitucionalidade deve ser declarada) dos art.os 1º, alínea f), e 359º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal, na interpretação acolhida no acórdão recorrido, ou seja, a de que não constitui alteração substancial dos factos descritos na pronúncia o aditamento a esta, durante a audiência, de novos factos criminosos, que haviam sido objecto de inquérito pelo Ministério Público (o qual fora arquivado), factos susceptíveis de preencher dois tipos diversos de crime ( no caso, a corrupção passiva para acto lícito e o crime de extorsão, previstos nos art.os 422º e 317º, n.º 1, c), ambos do Código Penal de 1982, na versão originária, respectivamente), não obstante os respectivos tipos protegerem bens jurídicos diversos, desde que, no caso concreto, não tenha havido agravamento dos limites das sanções aplicadas.
VIII - A longa transcrição retirada do acórdão recorrido demonstra
à saciedade o entendimento acolhido de que o Tribunal pode incluir na pronúncia factos relativamente aos quais o Mº Pº se absteve de acusar por falta de indícios.
IX - Mas será constitucionalmente admissível este entendimento interpretativo
(já que, legalmente, foi tido por incensurável)? Veja-se:
O art.º 1º, alínea f), do CPP dá a seguinte definição de alteração substancial dos factos: “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”. Esta definição aponta desde logo – no seu sentido literal – para que os factos devam constar da acusação. Ne procedeat iudex ex officio! Por seu turno, o art.º 358º do CPP, ao falar de “alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia” pressupõe, claro, que os factos devam constar da ACUSAÇÃO ou da PRONÚNCIA. Não foi, porém, o que sucedeu manifestamente no caso sub judicio: OS FACTOS ADITADOS À PRONÚNCIA DURANTE O JULGAMENTO HAVIAM SIDO INVESTIGADOS PELO M.º P.º, ENTIDADE QUE SE ABSTIVERA DE ACUSAR O ARGUIDO POR FALTA DE INDÍCIOS, DETERMINANDO O ARQUIVAMENTO DOS AUTOS. E Note-se que o n.º 1 do art.º do 358º CPP fala de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, não do aditamento de factos respeitantes a documentos juntos aos autos sem relevância na acusação ou na pronúncia!!! E Por seu turno, o art.º 359º, n.º 1, estabelece que a alteração substancial – sempre dos factos descritos na acusação ou na pronúncia – não pode ser tomada em conta pelo tribunal, implicando a comunicação dos mesmos ao M.º P.º.
X - No Ac. do TC n.º 674/99 (DR, II Série, n.º 47 de 25/02/2000), o TC julgou
“inconstitucionais as normas contidas nos artigos 358º e 359º do CPP, quando interpretadas no sentido de se não entender como alteração dos factos – substancial ou não substancial – a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam, no entanto aí se não encontravam especificamente descritos ou discriminados por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º, n.os 1 e 5, da Constituição da República”.
XI - A situação subjacente aos autos onde foi proferido este Ac. n.º 674/99 é, apesar de tudo, menos chocante do que a situação no caso sub judicio. De facto, no presente caso, o M.º P.º havia arquivado o inquérito onde se averiguava o circunstancionalismo em que tinham sido passados certos cheques sacados por um certo empreiteiro e levantados por terceiros, e tal arquivamento resultava da falta de indícios incriminatórios do arguido. O juiz do julgamento substituiu-se então ao M.º P.º e aditou ao tema da prova novos factos incriminadores que passaram a integrar o objecto do processo. Tem, por isso, de entender-se que o aditamento em causa, a partir de documentos existentes nos autos, mas não descritos na acusação ou na pronúncia, é ilegal e inconstitucional, sendo contrário à Constituição a interpretação da Relação d- -------------- adoptada para os art.os 1º, alínea f), 358º e 359º, DEVENDO APLICAR-SE, POR MAIORIA DE RAZÃO, a doutrina deste Ac. n.º 674/99.
XII - Impõe-se, assim, a conclusão de que as normas dos art.os 1º e 358º, n.º 1, do CPP, tal como foram interpretadas pelo Tribunal recorrido são inconstitucionais por ofensa do art.º 32º, n.º 1 e 5, da C. R. P. e do princípio da imparcialidade do juiz do julgamento. E esse julgamento é necessário, visto que os factos em causa – que preenchiam tipos de outros crimes que não o de corrupção passiva – constam da matéria provada nos autos e contribuíram para a condenação na pena fixada pelo Tribunal Colectivo da ----------------, confirmada em 2ª instância.
XIII - Estava assim vedado ao tribunal proceder à ampliação do objecto do processo, mediante a adição de novos factos, pois que aqueles aditados durante o julgamento tinham já sido objecto de decisão de arquivamento por parte do Ministério Público. Com efeito,
XIV - Ao actuar da predita forma, o Tribunal a quo não atentou em que invadiu a esfera de competência constitucionalmente reservada ao Ministério Público, pelo que redundou violado o princípio jurídico-constitucional da estrutura acusatória do processo penal, precipitado, como referido, no n.º 5 do art.º 32º da Constituição da República».
7.3.
«XV. As normas (cuja inconstitucionalidade dever ser declarada) conjugadas dos art.os 40º, n.º 2, e 72º do C. Penal, na interpretação acolhida no acórdão recorrido, ou seja, a de que não deve ser considerada a culpa da vítima numa situação de corrupção passiva, susceptível de diminuir a culpa do sujeito passivo.
XVI. As referidas normas, com a interpretação dada na decisão recorrida, violam os princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, previstas ou afloradas nos art.os 1º, 13º, n.º 1, e 18º da CRP.
XVII. Reza o acórdão que a culpa do arguido revela-se num nível elevado, sendo que a sua actuação, a decisão consciente e livre de praticar o ilícito é passível de um juízo, também, elevado de censura.
XVIII. Aqui reside, desde logo, a errónea interpretação da norma, pois que no aludido iter não subjaz o princípio de que a culpa constitui fundamento e limite da pena, mas antes que os factores adjuvantes, em regra funcionando como atenuantes, revertem em desfavor do arguido no “julgamento” da sua culpa. Enfatizou-se a culpa do agente (político) para se graduar a pena em conformidade, sendo esse o sentido interpretativo da norma colhido no acórdão recorrido.
XIX. Há que recordar que consequência necessária da eticização do direito criminal é a afirmação do princípio de que sem culpa não há pena, assumindo-se este princípio como um prius perante o poder punitivo do Estado. O direito a ser punido segundo a culpa não é só limite ao poder de o Estado enquanto detentor do ius puniendi poder interferir na esfera personalíssima do delinquente – mas também fundamento, na medida em que é o próprio poder punitivo do Estado que se encontra matricialmente limitado pelo “contra-poder” que o princípio da culpa representa.
XX. Aquele princípio da culpa impõe o respeito pelas garantias constitucionais do arguido e limita o ius puniendi na colisão com a dignidade da pessoa humana, esta, posta em causa no decidido.
XXI. A pena infligida ao arguido A. é desproporcional à medida da satisfação do sentimento jurídico da comunidade, às exigências de prevenção , tanto mais que a carreira política do arguido findou, representando ¾ da moldura penal abstracta e que constitui (a pena efectivamente imposta) uma punição desmedida, sem qualquer intuito de reabilitação do arguido, vexatória do político e punitiva do homem público, do autarca.
XXII. E recordando a norma do art.º 43º, n.º 1, do CP, a culpa da vítima não pode constituir em princípio desculpa para o agente, mas os princípios gerais que informam a nossa lei penal atribuem especial relevância à culpa da vítima, na medida em que não deixa de se repercutir na culpa do agente, nomeadamente a que alude a al. b) do n.º 2 do art.º 72º do CP, ou seja, a forte solicitação da própria vítima. O dolo neste caso é muito menos intenso, a culpa menor, e portanto o juízo de reprovação menor, mais indulgente.
XXIII. O que não deixa de relevar no circunstancialismo concreto imputado ao arguido, acrescendo em benefício, e não em desfavor, tudo quanto o acórdão recorrido refere a título de pressupostos da agravação que apenas aí podem ser entendidos como tais numa “onda” de castigo.
XXIV. Ouvidas que fossem as “vozes” e as consciências dos homens e dos julgadores, utilizados os critérios legais (cfr. art.os 70º e 71º do CP), não podia o arguido A. sofrer penas equivalentes a “verdadeiros castigos implacáveis e desumanos” e além de mais uma verdadeira admoestação pela indignidade da condenação, a qual, representa, ilegalmente, uma verdadeira pena acessória».
7.4.
«XXV. A norma (cuja inconstitucionalidade deve ser declarada) do n.º 1 do art.º
16º da Lei de Responsabilidade dos Cargos Políticos (Lei n.º 34/87, de 11 de Julho), na interpretação acolhida no acórdão recorrido, ou seja, com a interpretação de que, existindo na legislação autárquica um poder legal estritamente vinculado que integra a competência própria do Presidente da Câmara Municipal para emitir licenças de utilização em certo prazo, esse poder vinculado contém elementos de discricionariedade quanto à utilização ou não de todo o prazo legal para a emissão da licença, em termos de aí ser possível encontrar um elemento de desvio de poder que tornará ilícito o comportamento do presidente da Câmara, deixando o acto de ser lícito por ser relevante o motivo psicológico da prática do acto.
XXV. A interpretação do art.º 16º, na parte que reza “para a prática de acto que implique violação dos deveres do seu cargo”, de modo a fazer aí “cair” um acto vinculado que pode ser licitamente praticado durante certo prazo, viola o princípio da legalidade (nulum crimen sine lege).
XXVI. Explicitem-se as conclusões antecedentes: Numa interpretação inversa ao princípio da legalidade, o acórdão recorrido altera o sentido dado à norma do art.º 16º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 11 de Julho, ao classificar como ilícito um acto (emissão do alvará de licença de utilização) que, no ordenamento jurídico-urbanístico português, é um acto totalmente vinculado, não podendo por tal estar inquinado de um vício de desvio de poder. Assim, numa interpretação em total desconformidade com as exigências decorrentes das normas aplicáveis ao acto de emissão do alvará de licença de utilização, o acórdão recorrido considerou preenchidos os elementos subjectivos e objectivos integrantes do crime de corrupção.
XXVII. A norma impugnada com a interpretação referida viola o disposto no art.º
32º da CRP (garantias de defesa) e o princípio da legalidade do direito penal
(art.º 29º, n.º 2, da CRP).
XXVIII. Assim:
- Considerando-se que a deliberação da Câmara Municipal B. de 10 de Agosto de
1992 é ilegal, não pode tal acto ser imputado pessoalmente ao arguido, não sendo, por isso, responsável por tal ilegalidade;
- A ilegalidade da referida deliberação não está, ao invés do que se afirma no acórdão, na atribuição da licença de utilização, mas no seu “condicionamento”, em violação do n.º 2 do artigo 26º do Decreto-Lei n.º 445/91;
- Entendendo-se que a mencionada deliberação é conforme à lei e que o arguido estava obrigado a executá-la, não lhe estava vedado emitir imediatamente o alvará de licença de utilização, dado que o “condicionamento” constante da deliberação assume a natureza de um modo e não de uma condição suspensiva;
- No caso dos autos, o arguido, enquanto Presidente da Câmara, estava obrigado a emitir o alvará de licença de utilização, e dentro de um prazo curto, pelo que, não detendo ele qualquer poder discricionário, não praticou qualquer acto viciado de desvio de poder.
XXIX. Ora, se o acto de emissão do alvará de licença de utilização é um acto totalmente vinculado, nunca poderia estar inquinado de um vício de desvio de poder. Na verdade, nos actos vinculados, para efeitos da sua legalidade, não releva o seu fim, mas apenas se o acto, tal como está predeterminado na lei, foi ou não adoptado.
XXX. Não podendo o acto de emissão do alvará de licença de utilização enfermar de vício de desvio de poder, há que concluir que não praticou o arguido qualquer acto ilegal, pelo que, também por esta razão, não cometeu ele um crime de corrupção passiva para acto ilícito, previsto e punido pelo artigo 16º, n.º
1, da Lei n.º 34/87.
XXXI. Impondo a lei ao arguido, verificadas as circunstâncias descritas, a emissão do alvará de licença de utilização – emissão essa que, nos termos do n.º
6 do artigo 26º do Decreto-Lei n.º 445/91, deveria ter lugar dentro do prazo máximo de 20 dias após a realização da vistoria – uma tal emissão do alvará de licença de utilização por parte do Presidente da Câmara logo após a deliberação da Câmara Municipal B. de 10 de Agosto de 1992 consubstancia a prática de um acto não contrário aos deveres do seu cargo e de um acto que cabe nas suas atribuições. O crime de corrupção passiva, traduzido no recebimento de uma quantia em dinheiro antes da emissão do referido alvará, enquadra-se, assim, no artigo 17º da Lei n.º 34/87».
7.5.
« XXXII. As normas (cuja inconstitucionalidade deve ser declarada) conjugadas dos art.os 410º, n.º 2, 432º, alínea c), e 433º do Código de Processo Penal, na interpretação acolhida no acórdão recorrido, ou seja, a de que as mesmas asseguram em grau suficiente a exigência de duplo grau de jurisdição em matéria de facto no recurso interposto para o Tribunal da Relação, não carecendo de ser sindicadas de novo as provas produzidas na instância de recurso, não obstante a sua impugnação, com tal leitura, violam o n.º 1, parte final, do art.º 32º da CRP.
XXXII. Tanto mais que A redacção do n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República, após a Lei Constitucional n.º 1/97, consagra o recurso como garantia, como direito fundamental do arguido.
XXXIII. E uma tal garantia, que parece ter um carácter instrumental, tem antes um valor final, permitindo que outros direitos do arguido se realizem, designadamente o direito a um julgamento substancial.
Assim, naquela norma, o recurso ganhou uma dimensão substantiva, perdendo a adjectividade, constituindo-se num direito fundamental do arguido. Naquela nova redacção (em interpretação necessariamente mais favorável ao arguido), numa interpretação da lei, que não da própria lei, ressalta o princípio in dubio pro libertati. E nessa perspectiva o recurso é uma garantia que, sob o ponto de vista constitucional, tem a mesma dimensão de todos os direitos, liberdades e garantias.
XXXIV. Ordenada pela mais Alta Instância a reapreciação da matéria de facto e não se encontrando a prova produzida em julgamento documentada, nem do processo constando todos os elementos probatórios que serviram de base à decisão recorrida, não poderia a matéria de facto ser modificada, devendo, por isso, a fiscalização da matéria de facto nos termos do n.º 2 do art.º 410º do CPP ser assumida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
XXXVIII. O princípio da igualdade impunha que a matéria de direito fosse apreciada pelo órgão competente.
XXXIX. E a remessa dos autos ao Tribunal da Relação d-- ------------ impunha que esta conhecesse de forma ampla da matéria de facto, o que não fez.
XL. São materialmente inconstitucionais, por cercearem de forma inadmissível o direito ao segundo grau de jurisdição em matéria de facto, as normas dos artigos
410º, n.º 2, 432.º, alínea c), e 433.º todas do Código de Processo Penal, por violação do segundo segmento do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República».
9. O Ministério Público junto deste Tribunal contra-alegou, e após ter procedido, segundo a sua óptica, à delimitação do objecto do recurso, suscitou diversas questões prévias, todas elas traduzidas na falta de pressupostos de admissibilidade do recurso relativos às várias questões suscitadas pelo recorrente.
10. Ouvido sobre as questões prévias suscitadas pelo Ministério Público, o recorrente respondeu-lhe, defendendo a sua improcedência e o conhecimento do objecto do recurso.
B – Fundamentação
11. Tendo em vista a compreensão da decisão a proferir por este Tribunal, convém aqui deixar nota dos termos em que a Relação se pronunciou em relação a cada uma dessas questões, por referência às conclusões das alegações do recorrente.
11.1. Assim no que toca à primeira das questões (Conclusões I a VI), disse a Relação o seguinte:
«É certo que parece resultar da lei (art.º 355º, n.º 1, do CPP) que a prova e o respectivo contraditório seja exercido em audiência.
No caso, o Tribunal a quo entendeu ser desnecessário o exercício desse contraditório em audiência e, ao que tudo indica, também o próprio recorrente assim já entendeu, já que notificado da junção dos documentos, apenas se pronunciou em requerimento escrito quanto às viaturas, nada dizendo em relação aos vencimentos e também sobre a necessidade de contraditá-los em audiência.
Deste modo entendemos que a proibição referida no art.º
355.º do CPP não é absoluta, podendo o Tribunal, em relação a prova documental, se os intervenientes processuais não se opuserem, possibilitar o exercício do contraditório sem ser em audiência de julgamento.
Consideramos, também, deste modo e pelas razões expostas que não é inconstitucional a interpretação e aplicação que o acórdão recorrido fez da norma contida no preceito do art.º 371º, n.º 1, e 369º, n.º 2, do CPP.
Acresce que eventual omissão consubstanciando inobservância das disposições de processo penal, constituem meras irregularidades, consabidos que as mesmas não são cominadas ou qualificadas como nulidade (art.º 118º, n.os 1 e 2, do CPP), que se encontram sanadas, na medida em que não foram objecto de atempada arguição».
11.2. No que respeita à segunda questão de inconstitucionalidade invocada (Conclusões VII a IX) - alteração substancial/alteração não substancial de factos -, diz-se o seguinte no acórdão recorrido:
«Alicerça o recorrente a sua posição na circunstância de tais factos, todos eles terem sido objecto de apreciação e até de despacho de arquivamento pelo M.º P.º, ou seja, tais factos nem sequer são novos.
Afigura-se-nos não assistir razão ao recorrente já que, antes de mais, a lei (art.os 1º, al. f), 358º e 359º) não delimita temporariamente a factualidade susceptível de desencadear o mecanismo previsto naqueles normativos, não impõe que os factos sejam novos, ou seja, posteriores à acusação ou pronúncia como parece pretender o recorrente.
O sentido de “novos factos”, constante do n.º
2 do art.º 359º do CPP, é de diversos dos constantes na acusação ou pronúncia.
Por outro lado, a apreciação de tais factos pelo M.º P.º não obsta a que os mesmos sejam agora reapreciados.
Na verdade, o despacho de arquivamento foi proferido ao abrigo do disposto no art.º 277º do CPP, nomeadamente, no seu n.º 2 onde se preceitua que o “inquérito é igualmente arquivado, se não tiver sido possível ao M.º P.º obter indícios suficientes da verificação do crime ou de quem foram os seus agentes”.
É que o M.º P.º terminado o inquérito pode proferir despacho de arquivamento (sem qualquer controlo judicial, conforme sucedia no regime anterior) por ausência de indícios da prática do delito ou da identidade dos seus agentes.
Outra alteração relativamente ao regime anterior consiste na extensão do conceito de arquivamento, que passa agora a englobar também os casos que no direito anterior eram considerados como ficar o processo a “aguardar a produção de melhor prova”.
Em qualquer destas situações, todas contempladas no n.º 1 do artigo, há aquilo a que Costa Pimenta chama arquivamento pleno, ou seja, uma decisão definitiva, e que ocorre se, passados
30 dias (art.º 278º), não tiver havido intervenção hierárquica a pôr em causa tal despacho. Isto é: se essa intervenção não surgir, a decisão tomada no processo não pode ser alterada, por se tratar de “uma decisão materialmente jurisdicional, que põe fim ao conflito entre a pretensão punitiva do Estado e o direito à liberdade do arguido”.
Nos casos apontados o arquivamento fundamenta-se, pois, na inexistência dos pressupostos indispensáveis para a submissão do arguido a julgamento.
Quanto à situação tratada no n.º 2 temos um arquivamento por falta de indícios, que sucede quando a investigação não tiver logrado recolher prova suficiente da verificação do crime ou da identidade dos seus responsáveis.
Os indícios serão suficientes quando deles resulte uma forte possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança (cfr. art.º 283º, n.º 2).
Contrariamente ao que ocorria no direito anterior, o legislador consagrou agora, de forma expressa, aquilo que a Doutrina e a Jurisprudência já advogavam.
Na abstenção por falta de indícios temos um arquivamento meramente provisório, porquanto há sempre a possibilidade de o inquérito ser reaberto à sombra do estatuído no n.º 2 do art.º 279º (surgimento de novos elementos de prova).
Aqui o arquivamento já não é determinado, pois, pela falta de pressupostos para a condução do arguido a julgamento, mas apenas por insuficiência de prova.
Daqui resulta inequivocamente que o tribunal não está vinculado à decisão de arquivamento, mesmo com o trânsito em julgado do respectivo despacho, antes se lhe impõe, como o fez, em obediência ao princípio da investigação, como nota o Ex.mo Procurador, angariar toda a factualidade que sustente e se correlacione com todas as circunstâncias relevantes e necessárias
à construção duma boa decisão da causa.
Acresce que o aditamento dos factos ora em apreço não teve por efeito, como resulta do acórdão recorrido, a imputação ao arguido de um crime diverso, ou agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, pelo que também nós consideramos que não configuram uma alteração substancial dos factos.
Deste modo e pelo exposto consideramos que não se verifica qualquer inconstitucionalidade, nomeadamente na interpretação e aplicação feita da norma do art.º 359.º do CPP».
11.3. Por sua vez, e no que tange à terceira questão
(Conclusões XV a XXIV), afirmou a Relação:
«Diz o recorrente que não foram levados em consideração na determinação da medida da pena, os elementos dosimétricos a que aludem os preceitos 71º e 72º do C. P.
Cabia ao Tribunal a quo, considerando, a ilicitude da conduta, a culpa, a personalidade do arguido, e o montante em causa, que dá como provado e integrado no seu património, e ainda atento o tempo decorrido desde a data da prática dos factos, e acrescidamente da moldura penal abstracta colocada à disposição pelo legislador (entendida esta, é claro, como para a prática de acto ilícito), punir o arguido, quando muito, em pena equivalente ao seu mínimo legal.
A decisão recorrida, depois de ponderar o grau de culpa e do dolo do recorrente, que considerou intenso, dissertou a propósito da “vítima”.
Parece-nos deste modo que não é sustentável a alegada tese da “culpa da vítima”, “a forte solicitação da própria vítima” que o recorrente pretende ver valorada em termos de atenuação especial por força do art.º 72º, n.º 2, b), do C. P. Não restam dúvidas que a forte e legítima solicitação da vítima tinha como objectivo que a licença fosse emitida, duma forma normal e legal, com urgência. Nada de factualidade dada como provada nos permite concluir que a tal “forte solicitação” da vítima de que fala o recorrente tenha sido, por parte desta, efectuada com recurso a meios menos claros”.
E depois de afirmar que a falta de antecedentes criminais tem reduzido valor e de se ter pronunciado sobre a gravidade do crime que é a corrupção, conclui “que o desvalor do seu comportamento merece censura elevada concretizada na resposta punitiva que já foi decidia na 1ª instância e que não vemos razões para alterar».
11.4. No que se refere à quarta questão (Conclusões XXV a XXXII), afirma a Relação:
«Neste ponto diz o recorrente que considerando-se que a deliberação da Câmara Municipal B. de 10 de Agosto de 1992
é ilegal, não pode tal acto ser imputado pessoalmente ao arguido, não sendo este, por isso, responsável por tal ilegalidade.
A ilegalidade da referida deliberação não está, ao invés do que se afirma no acórdão, na atribuição da licença de utilização, mas no seu “condicionamento”, em violação do n.º 2 do artigo 26º do Decreto-Lei n.º 445/91;
Entendendo-se que a mencionada deliberação é conforme à lei e que o arguido estava obrigado a executá-la, estava-lhe vedado não emitir imediatamente o alvará de licença de utilização, dado que o
“condicionamento” constante da deliberação assume a natureza de um modo e não de uma condição suspensiva.
O modo é pois a cláusula através da qual se fixam encargos ou obrigações impostos pela Administração ao destinatário do acto administrativo. A cláusula modal não é requisito de eficácia do acto, na medida em que esta não é afectada pelo incumprimento da cláusula.
No caso dos autos, o arguido, enquanto Presidente da Câmara, estava obrigado a emitir o alvará de utilização, e dentro de um prazo curto, pelo que não detendo ele qualquer poder discricionário, não praticou qualquer acto viciado de desvio de poder.
Na verdade, a emissão tem como pressuposto o acto de concessão, este constante da deliberação do executivo camarário, sendo aquele mero acto formalizante da deliberação tomada e que não pressupõe qualquer outra decisão de um qualquer órgão, inserindo-se no mero expediente da secção de licenças, sem a mais ligeira interferência, sequer possível, do presidente da câmara.
E entendendo bem a deliberação asseguraram os arguidos C. e D. a ligação ao colector geral e disso informaram a Câmara. Tanto assim é que o acórdão recorrido a fls. 2507 refere que ainda no dia 11 de Agosto de 1992, na parte da tarde, o arguido C. dirigiu-se à Câmara para tentar obter a licença, logo após ter assegurado aquela ligação.
Decidindo:
Partindo do princípio de que não havia nenhum impedimento ou condicionalismo técnico da concessão da licença de utilização qual é que deveria ter sido a actuação do arguido enquanto Presidente da Câmara?
Estabelece a lei (art.º 1º, b), do D. L. n.º
445/91, de 20/11) que estão sujeitos a licenciamento municipal a utilização de edifícios ou de suas fracções autónomas, bem como as respectivas alterações.
Este licenciamento é de competência do presidente da Câmara Municipal (art.º 2º, 2 do referido diploma).
Estando verificados todos os pressupostos o alvará de licença de utilização é emitido nos 20 dias posteriores à realização da vistoria (n.º 6 do art.º 26º do DL. n.º 445/91, de 20/11).
Se esta, digamos, “obrigação”, não for cumprida normal e sequencialmente, poderá verificar-se um desvio de poder?
A resposta terá de ser afirmativa.
É que nesta fase consideramos existir poder discricionário do Presidente da Câmara.
Na verdade, o “desvio de poder” nada mais é que o “vício que afecta o acto administrativo praticado no exercício de poderes discricionários quando estes hajam sido usados pelo órgão competente com fim diverso daquele para que a lei os conferiu ou por motivos determinantes que não condigam com o fim visado pela lei que conferiu tais poderes”.
“Desvio de poder é o vício que consiste no exercício de um poder discricionário por um motivo principalmente determinante que não condiga com o fim que a lei visou ao conferir aquele poder”.
E na verdade estava nas mãos do arguido, enquanto Presidente da Câmara dar ordens à funcionária para passar a licença no próprio dia, no dia seguinte, volvidos aqueles 20 dias ou mesmo passados um mês ou dois.
O arguido manipulou a autoridade que o Estado lhe conferiu deslocando-a para a satisfação dos seus interesses privados, não restando dúvidas pois que utilizou os poderes que lhe são concedidos para fins diferentes daqueles que estiveram na base da sua concessão, pelo que incorreu em
“desvio de poder”.
Desta forma violando os deveres que lhe estão constitucionalmente (art.º 266.º da CRP) impostos de prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé.
Na verdade e nunca é demais sublinhar, os
órgãos administrativos actuam devendo obediência à lei e respeito aos direitos subjectivos e interesses legítimos dos particulares.
Assim se bem que até podemos concordar que a emissão de “licença de utilização” é um acto totalmente vinculado, não dispondo o órgão administrativo de qualquer poder discricionário ou de qualquer liberdade de apreciação na sua emissão, não tendo qualquer margem de liberdade para recusar a emissão do alvará de licença de utilização quando a mesma é favorável
à pretensão do interessado ou para concedê-la contra o juízo que nela é expresso pelos peritos, ou seja, se não existe margem de discricionariedade quanto aos aspectos técnicos, o certo é que ela existe quanto ao momento da concessão.
Não esquecemos é certo que se houver falta ou recusa injustificada de emissão do alvará de licença de utilização, o interessado pode promover em tribunal, nos termos do art.º 62º do DL. n.º
445/91, o reconhecimento dos direitos do titular (art.º 26º, 8 daquele normativo). Tal recurso ao tribunal impunha atraso.
Mas o tempo corria. E os co-arguidos lutavam contra o tempo.
“Os arguidos C. e D. tinham muita urgência na obtenção da licença de utilização, como manifestaram nos respectivos requerimentos apresentados na Câmara Municipal, pois haviam já então negociado a venda de várias fracções, algumas delas cujas escrituras deveriam impreterivelmente ser feitas até ao fim do mês de Agosto de 1992, sob pena de o negócio não se concretizar por perda do interesse do comprador, perspectivava-se a venda de outras, face à época alta que então se vivia, com a presença de emigrantes, e tinham assumido, com a respectiva construção, encargos bancários de cerca de 45 000 000$00, num empreendimento global de 90 000 000$00” (ponto 10 da factualidade dada como provada).
E foi com isto que o arguido “jogou”, usando
(mal) o seu poder enquanto Presidente da Câmara. O seu poder de decidir em horas ou em meses.
“Estes factos eram do conhecimento do arguido A., e foram ponderados pela Câmara Municipal B. na reunião de 27-7-92, que, apesar disso, deliberou não conceder a peticionada licença” (ponto 11 da factualidade dada como provada).
Deste modo e na perspectiva que deixamos referida não podemos concordar com a conclusão do referido parecer quando defende:
“Fácil é, portanto, concluir que o acto do presidente da Câmara Municipal que ordene a passagem de um alvará é sempre um acto estritamente vinculado, que pode ser ordenado ou substituído por uma sentença, pelo que é totalmente irrelevante para efeitos de validade desse acto, o motivo psicológico determinante da sua prática”.
De igual forma teremos de manifestar a nossa discordância com a afirmação que é feita no parecer de José Faria e Costa e José Carlos Vieira de Andrade a fls. 2796 quando defendem que a licença de utilização
é um acto administrativo totalmente vinculado, quanto ao an, ao quid e ao quando. A nossa discordância prende-se, obviamente e pelo que já deixámos exposto, quanto a este último aspecto (ao quando).
Ora esta conduta do arguido, tal como a deixámos caracterizada, não poder deixar de ser considerada como a prática de um acto administrativo que implica violação dos deveres a seu cargo e como tal não pode deixar de ser classificado como um acto ilícito, deste modo encontrando-se preenchidos não só os elementos subjectivos mas também os elementos objectivos que integram o crime previsto no referido art.º 16º».
11.5. Finalmente, no que concerne à quinta questão (Conclusões XXXV a XL), decidiu assim a Relação:
“Defende o recorrente que os artigos 410º, n.º 2, 432º, c) e 433º, todos do CPP, ao cercearem de forma desrazoável e desproporcionada o direito a um efectivo duplo grau de jurisdição são materialmente inconstitucionais já que a redacção do art.º 32º, n.º 1, da Constituição da República é manifestamente no sentido de assegurar um efectivo duplo grau de jurisdição”.
Após referir diversa jurisprudência no sentido daqueles preceitos não violarem o duplo grau de jurisdição, termina o acórdão recorrido:
“Perante os fundamentos expressos nos referidos acórdãos sem necessidade de mais considerandos consideramos, pelo menos de acordo com a argumentação expendida pelo recorrente, não ter havido desrespeito pelos princípios constitucionais, nomeadamente o que consta do art.º 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”.
12. Antes de decidir, convém referir que, como este Tribunal já acentuou, se ao relator compete o exame liminar do recurso e a sua não admissão, através de decisão sumária, quando verificada a falta dos respectivos pressupostos, nada impede que, na falta dessa decisão, por não se ter tornado notoriamente evidente a existência de obstáculos à admissão do recurso, venha a concluir-se, num estudo mais prolongado, que aquilo que, numa primeira apreciação, não surgia como óbvio impedimento à admissão do recurso, constitua, afinal, fundamento consistente ao seu não conhecimento (cfr. Acórdãos n.os
253/97 e 404/99, não publicados).
Por outro lado, como se sabe, a delimitação do objecto do recurso é feita, em regra, pelas conclusões que o recorrente apresenta, não sendo, pois, de considerar as normas que nelas não forem indicadas.
13. Feita esta observação, importa resolver agora as questões prévias suscitadas pelo Ministério Público.
Segundo esta entidade, é manifesta a falta de interesse processual no que toca à primeira questão suscitada pelo recorrente, na medida em que, qualquer que fosse o juízo de constitucionalidade proferido por este Tribunal, ele não se repercutiria sobre a questão de mérito, já que o decidido pelo Tribunal da Relação assenta num fundamento alternativo e autónomo em relação a tal questão: a preclusão de um vício formal invocado.
Com efeito, a decisão recorrida, não deixando de admitir que a prova e o respectivo contraditório devem ser exercidos em audiência (apesar de considerar que o recorrente teve a possibilidade de contradizer), aduz que a eventual omissão desse formalismo constitui irregularidade que se encontra sanada, na medida em que não foi objecto de atempada arguição.
Segundo o acórdão recorrido – entenda-se - o recorrente não ficava impedido de impugnar a decisão que ulteriormente viesse a pronunciar-se sobre tal irregularidade.
Depois de arguida esta, deveria o recorrente suscitar a inconstitucionalidade invocada, caso não se conformasse com elas.
Ora, tal arguição só teve lugar no recurso da decisão final da 1ª instância para o Tribunal da Relação, numa altura em que já não era lícito ao recorrente impugná-la.
Não pode, pois, agora, este Tribunal conhecer do recurso nesta parte, porque sempre a decisão da Relação, no que à mesma respeita, se manteria inalterada. Na verdade, como se diz no Acórdão n.º 44/85, inédito, (mas doutrina idêntica se pode colher dos Acórdãos n.os 33/85, publicado no Diário de República, II Série, de 25/03/1985, 35/85, 39/85, 44/85, 48/85, 81/85, 83/85, 101/85, todos inéditos,
208/86 e 234/91, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 3/11/1986 e 20/9/1991 ; cfr. ainda, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, vol. VI, págs. 207/208), “a fiscalização concreta desenvolve-se apenas no âmbito de um processo. [...]. Por isso, o recurso só deve ter seguimento quando a eventual decisão da questão de inconstitucionalidade puder implicar com a decisão recorrida. O recurso tem sempre por objecto uma decisão judicial e visa sempre alterar a decisão recorrida; logo, ele só tem sentido quando a decisão que o TC deva tomar sobre a questão da inconstitucionalidade puder implicar alteração da decisão recorrida. Isto é, o recurso só deve prosseguir, se se admitir que, quanto à questão de fundo, a decisão recorrida não permaneceria incólume caso o TC viesse a alterar o juízo do Tribunal recorrido quanto à questão de constitucionalidade. Ao invés, se é seguro que a decisão quanto ao fundo ficaria intocada mesmo que o Tribunal viesse a alterar o juízo do tribunal recorrido sobre a questão de constitucionalidade, então esta
é, em princípio, irrelevante e o recurso não deve ter lugar”.
14. Passemos agora à segunda questão (recurso interlocutório) suscitada pelo recorrente, ou seja, a da invocada inconstitucionalidade dos artigos 1º, alínea f) e 359º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Penal, na interpretação que o acórdão recorrido lhes teria dado, na opinião do recorrente.
E na sua opinião, entende que aquele acórdão considerou que o aditamento durante a audiência de julgamento de um tipo diverso de crime
(correspondente a factos objecto de inquérito pelo Ministério Público e por este arquivado), relativamente ao constante da pronúncia, não constitui alteração substancial dos factos, ainda que os respectivos tipos protejam bens jurídicos diferentes e ainda que, no caso concreto, tenha havido agravamento das sanções aplicáveis.
Porém, como se lê da transcrição do acórdão da Relação, não é essa a interpretação dada.
Com efeito, o que esta Relação diz é que o aditamento de novos factos, no caso dos autos, não teve por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou agravação dos limites máximos das sanções, ou seja, nem sequer se debruçou sobre a questão de saber se o crime por que o recorrente vinha pronunciado e aquele que o recorrente diz ter-lhe sido imputado em audiência de julgamento, são ou não crimes diversos e se protegem ou não bens jurídicos diferentes, pela simples razão de que a Relação entendeu não ter sido condenado por crime diferente daquele por que vinha pronunciado.
Como se vê da decisão de 1ª instância, confirmada pelo acórdão da Relação, o recorrente foi condenado por um crime de corrupção passiva que constava da acusação e da pronúncia e não por um outro crime.
Por outro lado, o acórdão recorrido confere relevância aos novos factos apenas no domínio probatório e enquanto decorrência do princípio da verdade material, mas, como diz o Ministério Público junto deste Tribunal,
“situou-os exclusivamente no âmbito do tipo legal de crime indicado na acusação e na pronúncia”.
Assim está afastada a interpretação que o recorrente diz ter sido dada às normas constantes do artigo 1º, alínea f), e 359º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, pelo que, também, não é de conhecer do recurso nesta parte.
15. A terceira questão colocada pelo recorrente prende-se com a interpretação que, segundo ele, o Tribunal da Relação teria dado às normas conjugadas dos artigos 40º, n.º 2, e 72º do Código Penal e que se traduziria em não se dever considerar a culpa da “vítima” rectius corruptores activos, numa situação de corrupção passiva, de modo a atenuar a culpa do sujeito passivo.
Mas, também aqui, o recorrente deturpa o sentido que o Tribunal da Relação deu aos referidos preceitos.
Na verdade, o acórdão recorrido não afirma que não deve ser considerada a culpa da “vítima” numa situação de corrupção passiva.
O que o acórdão refere é que, no caso dos autos, em função dos factos dados como provados, não se verifica que tivesse havido, por parte da
“vítima”, culpa, ou, utilizando as suas próprias palavras, “forte solicitação por parte da vítima” para atribuição da licença por meios não legais.
Segundo a matéria apurada, o interesse da vítima era o da sua obtenção, mas através de meios lícitos.
Por um lado, o acórdão recorrido considerou não ser sustentável a alegada tese da culpa da “vítima” e, por outro, acentuou a forte culpa por parte do recorrente, em função da matéria de facto apurada.
Porém, não poderia “deduzir” à pena do recorrente aquilo que considerou não existir por parte da “vítima”.
Ao não aplicar o disposto nos referidos preceitos legais, fá-lo não por os interpretar com o sentido que o recorrente refere ou outro, mas por considerar que a “vítima” não actuou com culpa.
Assim, também não se conhece do recurso nesta parte, por falta do pressuposto da aplicação das normas cuja constitucionalidade se impugna.
16. No que concerne à quarta questão suscitada, diz o recorrente que o acórdão recorrido procedeu a uma interpretação inconstitucional do n.º 1 do art.º 16º da Lei n.º 34/87, de 11 de Julho, por ter considerado como relevante o momento da concessão da licença da utilização quando o poder legal que integra a competência própria do Presidente da Câmara para emitir essa licença é estritamente vinculado.
O Ministério Público, invocando a jurisprudência do Tribunal Constitucional expressa no Acórdão n.º 674/99, publicado no DR, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000, BMJ 492.º, págs. 62 e Acórdãos do Tribunal Constitucional,
45.º volume, págs. 559 (no mesmo sentido poder-se-ão, ainda, recensear, entre outros, os Acórdãos n.os 353/86, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º volume, págs. 571 e ss.; 634/94, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29.º volume, págs. 243 e ss.; 221/95, publicado in DR, II Série, de 27 de Junho de 1995; 756/95, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32.º volume, págs. 775 e ss.; 682/95, inédito; n.º 154/98, inédito; 196/2003, publicado in DR II Série, de 16 de Outubro de 2003, e
197/2003, inédito, e em sentido contrário, também, entre outros, os Acórdãos n.os 141/92, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º volume, págs. 599 e ss., 205/99, publicado in DR II Série, de 5 de Novembro de 1999, e
285/99, publicado no mesmo jornal oficial, de 21 de Outubro de 1999), que “vem considerando que não integra uma questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de ser sindicada por este Tribunal, a verificação de alegada violação pelas instâncias do princípio da tipicidade ou da legalidade, resultante de ampliação (ou errada – e “ilegal” - interpretação) dos elementos que integram a fattispecie do tipo legal de crime, determinando a feitura de uma incorrecta subsunção pela decisão concretamente proferida”, considera que será de seguir a mesma jurisprudência, no caso dos autos.
Mas, mesmo deixando de parte a questão de saber se este Tribunal Constitucional poderá conhecer da interpretação feita pelos tribunais de instância dos tipos legais de crime por violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade criminais (a mesma questão pode emergir, no domínio da lei tributária, relativamente aos princípios da legalidade e da tipicidade tributárias), sempre se terá de concluir que, no caso dos autos, não se está perante uma questão normativa cuja constitucionalidade haja de conhecer-se, mas antes está em causa apenas a própria decisão judicial, na dimensão subsuntiva que a mesma operou da factualidade concreta aos elementos do tipo legal e, maxime, do preenchimento factual do conceito de “acto que implique violação dos deveres do seu cargo” [de presidente da Câmara]. Dito de outro modo, a questão tal como emerge dos fundamentos do acórdão da Relação, não se traduz numa interpretação do tipo legal de crime delineado no art.º 16º, n.º 1 da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, mas numa actividade de controlo da valoração que, em concreto, este Tribunal fez das específicas particularidades do caso e das quais retirou a conclusão de que se mostrava preenchida a normatividade condensada no conceito de “acto que implique violação dos deveres do cargo”. Situando-nos nesta perspectiva, não há que colocar sequer a questão da possibilidade de este tribunal poder controlar a interpretação de normas de outros ramos de direito (no caso, de direito administrativo), quando estas sejam convocadas na conformação do tipo legal.
Ora, estando em causa o juízo de valoração feito pela Relação da factualidade concreta do caso e na sequência do qual concluiu pelo preenchimento daquele conceito de “acto que implique violação dos deveres do cargo”, não pode essa actividade judicativo-decisória ser repetida por este Tribunal por estar excluído da sua competência o recurso de “amparo”.
E que a questão enfrentada pela Relação foi efectivamente a de saber se a concreta factualidade apurada era susceptível de se subsumir a tal conceito legal resulta evidente quando conclui que «o arguido “jogou”, usando (mal) o seu poder de presidente da Câmara», na compreensão que o mesmo dele tinha, segundo a qual «estava nas mãos do arguido, enquanto Presidente da Câmara, dar ordens à funcionária para passar a licença no próprio dia, no dia seguinte, volvidos aqueles referidos 20 dias ou mesmo passados um mês ou dois». E concluiu isto designadamente a da sua percepção quanto aos meios legais existentes susceptíveis de serem utilizados pelos pretendentes do alvará de licença de utilização para ultrapassar a falta ou recusa de emissão do alvará, como, ainda, do seu conhecimento relativo à situação de urgência que os arguidos C. e D. tinham na obtenção da mesma licença, caracterizada pelas diversas circunstâncias apontadas no acórdão recorrido, e do facto de, não obstante elas, a Câmara Municipal B., na reunião de 27/7/1992, haver deliberado não conceder a peticionada licença, e de, na reunião de 10/8/1992, haver deliberado concedê-la, subordinando-a, porém, a modo ou condição, acabando o arguido por emitir logo o alvará por virtude do recebimento da contrapartida em dinheiro aludida no probatório.
De resto, poder-se-á, ainda, aduzir: o que a interpretação da decisão recorrida parece sugerir é que aquilo que foi verdadeiramente decisivo não foi tanto a existência de momentos jurídicos de discricionariedade, mas antes a existência e o uso incorrecto de poderes de facto de emitir logo, ou em alturas posteriores, o alvará. Sendo assim, não se verifica outro dos requisitos do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade da al. b) do n.º 1 do art.º 70º da LTC.
17. Finalmente no que toca à última questão (5ª), convém referir o modo como se desenvolveu o andamento processual.
Tendo o recorrente interposto recurso do acórdão do Tribunal Judicial da Comarca --------------- para o Supremo Tribunal de Justiça (fls.
3326), foi por este devolvido ao Tribunal da Relação d- -----------, tida por competente para sobre ele se pronunciar (cfr. alegações a fls. 3574 v.º).
E o Tribunal da Relação pronunciou-se no sentido de que, no caso dos autos, não estava preenchida a condição (pena de prisão superior a 8 anos) imposta pela alínea f) do art.º 400º do Código de Processo Penal para que se tornasse possível a interposição do recurso para aquele Supremo Tribunal e, por isso, não admitiu o recurso.
Desta decisão reclamou o recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça que, por despacho do seu Presidente, de 01/02/2001, desatendeu a reclamação com o fundamento de “que o acórdão em referência não é susceptível de recurso, por força da citada al. f) do n.º 1 do art. 400º e, consequentemente, da al. c) do art.º 432º”.
Como se percebe das decisões transcritas, quer a Relação, quer o Supremo, decidiram da não admissibilidade do recurso, não com base nos art.os
410º, n.º 2, e 433º do Código de Processo Penal, mas sim com base no art.º 400º, n.º 1, alínea f), do mesmo compêndio legislativo.
Este preceito é que constitui a ratio decidendi da questão.
Porém, nunca o recorrente o incluiu nas suas alegações para fundamentar a tese da possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Assim, se, por um lado, o Tribunal Constitucional não pode conhecer da invocada inconstitucionalidade dos art.ºs 410º, n.º 2, e 433º do Código de Processo Penal, por não terem sido os preceitos utilizados por qualquer dos tribunais, a Relação e o Supremo, o certo é que, para conhecer do recurso com fundamento na alínea f) do n.º 1 do artigo 400º, necessário se tornava que o recorrente tivesse suscitado a sua inconstitucionalidade, pelo menos, na reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Não o tendo feito, também o Tribunal Constitucional dela não pode conhecer.
Dir-se-á, apenas, no que respeita ao art.º 432º, alínea c), que, tendo a inconstitucionalidade deste preceito sido suscitada pelo recorrente e aplicada pelo despacho do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ele é apenas invocado pelo dito despacho como consequência da impossibilidade de recorrer ao abrigo da citada alínea f) do n.º 1 do art.º 400º.
Porém, mais um vez, o que constitui o fundamento da decisão, a sua ratio decidendi, é o artigo 400º, n.º 1, alínea f), e não a alínea c) do art.º
432º.
Nesta perspectiva, não é, também, de conhecer do recurso nesta parte.
C – A decisão
18. Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça de 10 UC.
Lisboa, 12 de Novembro de 2003
Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencida, no presente Acórdão, no que respeita à decisão de tomar conhecimento do objecto do recurso quanto à questão de uma eventual violação do princípio da legalidade pela interpretação do artigo 16º, nº 1, alíneas a) e b), da Lei nº 34/87, de 16 de Julho. Considero, diferentemente da posição que fez vencimento no Acórdão, que foi suscitada uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa e que tal questão corresponde à submissão ao controlo de constitucionalidade de um critério normativo que foi ratio decidendi da decisão recorrida. Tal conclusão justifica-se, no meu entender, desde logo porque o recorrente indicou verdadeiramente uma norma – uma interpretação normativa – e não meramente o conteúdo de uma decisão nas suas alegações de recurso para o Tribunal agora recorrido. Tal interpretação normativa consistiu precisamente na interpretação da corrupção passiva para acto ilícito prevista no artigo 16º, nº
1, da Lei nº 34/87, no sentido de incluir um conceito de acto ilícito que abrange a prática de actos vinculados, embora considerados discricionários quanto ao momento da sua realização. A isso mesmo se refere o recorrente quando delimita a sua questão de constitucionalidade nestes termos: “A norma (cuja inconstitucionalidade deve ser declarada) do nº 1 do artº 16° da Lei de Responsabilidade dos Cargos Políticos
(Lei nº 34/87 de 11 de Julho), na interpretação acolhida no acórdão recorrido, ou seja, com a interpretação de que, existindo, na legislação autárquica, um poder legal estritamente vinculado que integra a competência própria do Presidente da Câmara Municipal para emitir licenças de utilização em certo prazo, esse poder vinculado contém elementos de discricionaridade quanto à utilização ou não de todo o prazo legal para a emissão da licença, em termos de aí ser possível encontrar um elemento de desvio de poder que tornará ilícito o comportamento do presidente da Câmara, deixando o acto de ser lícito por ser relevante o motivo psicológico da prática do acto”. Também entendo que o Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão, inevitavelmente, num critério interpretativo do âmbito do crime de corrupção passiva e do conceito de acto ilícito, e que tal critério correspondeu ao entendimento de que ainda é acto ilícito um acto vinculado quanto ao se ao como da sua realização, mas praticado por certos motivos num momento temporal acolhido pelo seu autor em função de interesses particulares. Assim se afirma expressamente no acórdão recorrido. O problema do âmbito normativo do artigo quanto ao conceito de acto ilícito no crime de corrupção passiva dos titulares de cargos políticos está inevitavelmente em causa na questão suscitada pelo recorrente e decidida pelo acórdão recorrido. Com efeito, é óbvio que se discute ainda se é corrupção para acto ilícito, de acordo com o sentido da norma determinado pela interpretação, uma pura prática do acto dentro de prazos legais de acordo com motivações contrárias ao interesse público ou se não estaremos, aí, a conceber a ilicitude do acto a partir de elementos motivacionais ou a partir de um certo contexto exterior à sua própria legalidade. Trata-se, assim, de uma divergência de entendimento quanto a saber se determinadas situações ainda realizam as finalidades daquele específico tipo de ilícito, o que é relevante, sobretudo tendo em conta que o legislador prevê uma corrupção passiva para a prática de acto lícito, a que atribui uma moldura penal inferior. Independentemente da solução que a questão justificaria quanto ao fundo, parece-me que está em causa, no presente recurso, um problema de âmbito normativo e não apenas de qualificação concreta de uma situação. A relevância dada pelo acórdão recorrido aos poderes de facto exercidos pelo agente pressupõe a caracterização do acto ilícito em função da motivação do agente e da discricionariedade temporal da prática do acto. Entre a questão colocada pelo recorrente e a ratio decidendi há, assim, a coincidência essencial que permite considerar que se suscitou uma questão de constitucionalidade sobre uma verdadeira dimensão normativa decorrente de um critério de decisão quanto ao âmbito de um elemento de factualidade típica – o conceito de acto ilícito. Maria Fernanda Palma