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Proc. 573/03 – 1ª Secção Relator: Cons. Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A. recorre – ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC) – do acórdão proferido em 15 de Julho de 2003 na Relação de Lisboa, invocando que em tal decisão haviam sido aplicadas normas constantes dos artigos 141º n. 1 e 254º alínea a) do Código de Processo Penal que seriam inconstitucionais por violarem o disposto nos artigos 28° n° 1 e 32° da Constituição (CRP), quando interpretadas, como foram, no seguinte sentido:
a) de que o prazo de 48 horas a que neles se alude se conta desde a hora consignada no auto de detenção; b) de que se mostra cumprido o prazo de 48 horas a que alude o artigo 28° n. 1 CRP com a simples apresentação do arguido ao juiz competente, sem que o mesmo aprecie judicialmente a sua detenção;
c) de que é possível a apreciação judicial da detenção do arguido e/ou a aplicação da prisão preventiva ao mesmo, ainda que entre a detenção e aquelas medeie prazo superior ao de 48 horas, a que alude o artigo 28° n° 1 CRP.
Admitido o recurso, o Recorrente apresentou oportunamente a sua alegação que concluiu da seguinte forma:
a) Entre a detenção do recorrente e o início do seu interrogatório judicial decorreram 49 horas;
b) período esse que foi de 54 horas até à prolação do despacho que a validou e lhe impôs a medida de prisão preventiva; c) não obstante a M.ª J.I.C, em primeiro interrogatório judicial, considerou haver sido observado o prazo a que se reportam os arts 141° n. 1 e 254° a) do CPP e, consequentemente, recusou a imediata libertação do arguido, ao invés interrogando-o e apreciando judicialmente a sua detenção, determinando que o mesmo aguardasse os ulteriores termos do processo em prisão preventiva, tudo para além do prazo a que aludem os artigos 141º n. 1 do CPP e o art. 28° n. 1 da CRP; d) por sua vez, em recurso, a Relação veio a decidir que efectivamente mediaram
49 horas entre a detenção do arguido e o início do seu interrogatório;
e) mas que, ainda assim, nada obsta a que se aprecie judicialmente a detenção e se aplique a prisão preventiva para além do prazo de 48 horas a que aludem os artigos 141° n. 1 do CPP e 28° n. 1 da CRP; t) concluindo não se mostrar violado qualquer preceito constitucional ou da lei ordinária; g) A vingar tal interpretação legal será dar aval em branco às autoridades, quer policiais quer judiciais, para se desleixarem respectivamente na apresentação dos detidos e na apreciação judicial dessas mesmas detenções, ainda que para além das 48 horas a que alude o artigo 28° n. 1 da CRP e sem limite, violando flagrantemente o princípio da legalidade, da liberdade, da segurança e das garantias de defesa dos cidadãos.
h) Seria fazer do artigo 28° n. 1 da CRP letra morta e validar o livre arbítrio. i) A verdade é que tais interpretações e aplicações das normas dos artigo 141º n. 1 e 254° a) do CPP violam materialmente o disposto nos artigos 27° n. 1, 28° n° 1 e 32° da CRP. Nestes termos, devem tais normas serem julgadas inconstitucionais quando interpretadas e aplicadas: a) em sentido que não seja o de que o prazo de 48 horas a que nelas se alude se conta desde que se efectiva materialmente a detenção, independentemente da hora consignada no respectivo auto, até que esta seja apreciada judicialmente por um juiz;
b) no sentido de que se mostra cumprido o prazo de 48 horas a que alude o artigo 28° n. 1 da CRP com a simples apresentação do arguido ao juiz competente, sem que o mesmo aprecie judicialmente a sua detenção, dando-lhe a conhecer os motivos da mesma, interrogando-o e dando-lhe a possibilidade de se defender; e, ainda, quando interpretadas e aplicadas; c) no sentido de que é possível a apreciação judicial da detenção do arguido e/ou a aplicação da prisão preventiva ao mesmo, ainda que entre a detenção e aquelas medeie prazo superior ao de 48 horas, a que alude o artigo 28° n. 1 da CRP, designadamente o prazo de 49 horas até ao início do respectivo interrogatório judicial, como foi o caso dos autos.
Por seu lado, o Ministério Público defende, em contra-alegação, a total improcedência do recurso, conforme se extrai das seguintes conclusões do respectivo articulado:
1 – O prazo de 48 horas previsto no artigo 28° n. 1 da Constituição e nos artigos 114° n. 1 e 254° n. 1 alínea a) do Código de Processo Penal, funciona como prazo máximo para apresentação ao juiz de arguido detido.
2 – Não é constitucionalmente exigível que dentro do referido prazo seja o arguido interrogado e que haja tomada de posição judicial sobre a medida coactiva aplicável, maxime a prisão preventiva.
3 – Não viola igualmente qualquer norma ou princípio constitucional, que no
âmbito do mesmo processo e relativamente ao mesmo arguido anteriormente detido e solto sem apresentação ao juiz por ultrapassagem do prazo das 48 horas, venha o mesmo posteriormente a ser detido e sujeito à medida de prisão preventiva.
4– Termos em que deverá improceder o presente recurso.
2.1. Procurando isolar com o necessário rigor as questões de inconstitucionalidade que o Recorrente visa submeter a julgamento, apura-se que incidindo todas elas sobre os artigos 141º n. 1 e 254º n. 1 alínea a), ambos do Código de Processo Penal, a primeira se prende com o sentido normativo de que o prazo de 48 horas a que os preceitos aludem se conta “desde que se efectiva materialmente a detenção, independentemente da hora consignada no respectivo auto”; a segunda, tem a ver com o final deste prazo, isto é, será inconstitucional a interpretação segundo a qual o prazo se cumpre “com a simples apresentação do arguido ao juiz competente, sem que o mesmo aprecie judicialmente a sua detenção, dando-lhe a conhecer os motivos da mesma, interrogando-o e dando-lhe possibilidade de se defender”; finalmente, a terceira questão reporta-se à norma segundo a qual seria ainda possível ao juiz ordenar a prisão preventiva do arguido “ainda que entre a detenção e aquelas [decisões sobre a prisão preventiva] medeie prazo superior ao de 48 horas”.
Ora, com relevo para a delimitação da primeira destas questões, pode ler-se no acórdão recorrido o seguinte:
“Importando, em primeiro lugar, fixar a hora da detenção do recorrente, é fora de toda a dúvida que ela aconteceu cerca das 16 horas e 30 minutos do dia 29/3, ou seja, no momento em o recorrente foi 'interceptado' e lhe foi dito para acompanhar os agentes da P.S.P. à esquadra. Na verdade, como se deduz do circunstancialismo em que aqueles actos ocorreram, ao recorrente não foi formulado um mero convite, que este pudesse eficazmente recusar, para que seguisse para a esquadra, antes lhe foi dada uma ordem que o mesmo teria obrigatoriamente que acatar. Com essa ordem ficou o recorrente privado do direito de se deslocar livremente e de acordo com a sua vontade e, por isso, a mesma não pode deixar de ser vista como acto de detenção, independentemente da existência de uma declaração formal da entidade policial, que, pelos vistos, só mais tarde, pelas 23 horas e 30 minutos, veio a ser proferida.”
Conforme transparece deste trecho, e como bem detectou o Ministério Público na sua alegação, a decisão recorrida não aplicou as questionadas normas com a interpretação que, no entender do Recorrente, seria ofensiva da Constituição. Não foi, em suma, aplicada a interpretação normativa segundo a qual o prazo de
48 horas a que os citados preceitos do Código de Processo Penal aludem se contaria a partir da hora que consta no respectivo auto e não desde que se efectiva materialmente a detenção. Pelo contrário, a Relação interpretou e aplicou essas normas exactamente na forma pretendida pelo Recorrente como constitucionalmente conforme (“desde que se efectiva materialmente a detenção, independentemente da hora consignada no respectivo auto”).
Ora, nos termos da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC – preceito ao abrigo do qual vem interposto o recurso – o Tribunal não pode conhecer de norma, ou de uma certa interpretação dessa norma, que não haja sido aplicada na decisão recorrida. É o que manifestamente aqui sucede, razão pela qual não pode que conhecer-se desta matéria (cfr. acórdão n. 366/96, in DR, II série de 10 de Maio de 1996).
2.2. Resta apurar se as normas questionadas ofendem o princípio da liberdade individual constitucionalmente garantido, pois – é inevitável recordá-lo – as limitações a esta garantia só são admissíveis desde que “expressamente previstas na Constituição, devendo limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”– n. 2 do artigo 18º CRP.
2.3. O presente caso fundamenta-se nos seguintes factos:
O arguido ora recorrente foi interceptado com outros companheiros, agora também arguidos, por agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP), cerca das 16 horas e 30 minutos do dia 29 de Março de 2003 (sábado), no decorrer de investigações de que estavam a ser alvo por suspeita da prática de tráfico de estupefacientes.
De seguida, foram todos conduzidos, pelos mesmos agentes da PSP, a um posto policial onde foram realizadas diligências de investigação.
Ficaram detidos até à segunda-feira seguinte, dia 31, data em que, por ordem do Comandante da Esquadra de Investigação Criminal da Divisão de Oeiras da PSP, foram – em hora que não foi apurada – apresentados no Tribunal Judicial de Oeiras.
No mesmo dia, o senhor Juiz proferiu despacho a designar as 13 horas e 30 minutos para os interrogatórios dos detidos, fazendo menção da hora a que o proferiu – 12 horas e 15 minutos – e referindo que essa foi também a hora em que o processo lhe foi entregue.
Os interrogatórios iniciaram-se pelas 14 horas e 45 minutos; às 17 horas e 45 minutos o Advogado do Recorrente, ainda não interrogado, formulou o seguinte requerimento:
O arguido A. foi detido pelos a gentes da PSP pelas 16.00 horas, não mais, do dia 29 de Março de 2003. Outra informação que a este propósito possa existir nos autos é necessariamente falsa, o que se invoca para os devidos e legais efeitos. De resto, a hora referida da detenção foi, pelo signatário, confirmada junto de dois elementos da PSP que estão no átrio deste Tribunal. Assim sendo, e porque são neste momento 17.45 horas do dia 31, verifica-se não ser possível levar a cabo o 1° interrogatório judicial do arguido no prazo a que alude o artigo 141º do C.P.P e bem assim o artigo 28, n.º 1° da C.R. P. Em virtude do exposto requer-se pois a imediata libertação do mesmo como é de justiça.
O requerimento foi indeferido por despacho sobre o qual recaiu, por força de recurso dele interposto, o acórdão recorrido, e às 18 horas e 35 minutos do mesmo dia deu-se início ao interrogatório do arguido.
Findo o interrogatório, o senhor Juiz validou a prisão e determinou que o arguido ora recorrente aguardasse em prisão preventiva a instrução do processo.
2.4. A decisão recorrida resolveu as questões em causa da seguinte maneira:
Ora, no caso, foram seis os arguidos detidos e apresentados em juízo. O interrogatório do primeiro arguido iniciou-se ainda dentro das quarenta e oito horas posteriores à detenção. Mas o do recorrente só veio a começar pelas 18 horas e 35 minutos do dia 31 de Março, ou seja, quando já haviam decorrido 49 horas sobre a detenção, que teve lugar cerca das 16 horas e 30 minutos do anterior dia 29 (às 0 horas do dia 30 entrou em vigor a chamada 'hora de verão', o que levou à mudança, para menos uma hora, do horário legal). Face ao que acima se expôs, julga-se pois que, com isso, não se violou qualquer preceito constitucional ou da lei ordinária. Mas ainda que assim se não entenda, da ultrapassagem do prazo não decorreria a invalidade do interrogatório a que se procedeu e muito menos a impossibilidade de o juiz aplicar ao recorrente a medida de coacção de prisão preventiva. Na verdade, a não observância do mencionado prazo de 48 horas por parte de quem procedeu à detenção é susceptível de fazer incorrer essa pessoa em responsabilidade disciplinar e até criminal. Mas, porque em si mesma não inquina de qualquer vício o acto da detenção propriamente dito, não vemos que deva obstar a que o juiz, logo que o detido lhe seja apresentado, proceda ao interrogatório e, sendo caso disso, lhe imponha essa medida de coacção. Na verdade, requerido habeas corpus em virtude de a detenção se manter há mais de 48 horas, nos termos do já citado artigo 220°, n° 1, alínea a), o juiz deve ordenar a apresentação do detido e a notificação da entidade que o tiver à sua guarda para se apresentar também, munida das informações e esclarecimentos necessários à decisão sobre o requerimento – cfr. artigo 221º n. 2. E concretizada a apresentação do detido, 'seguir-se-ão naturalmente os trâmites do Código, começando pelo interrogatório do arguido' (Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pag. 1060). Depois, ouvido o Ministério Público e o defensor, o juiz decide (n° 3 do artigo 221º) validando a detenção, com a manutenção da prisão ou imposição de outra medida de coacção ou restituindo o detido pura e simplesmente à liberdade se considerar a detenção ilegítima. Ou seja, a tardia apresentação do detido, ocorra ela por acto espontâneo da autoridade que levou a cabo a detenção ou na sequência de requerimento de habeas corpus, não obsta à realização do interrogatório e à aplicação de qualquer medida de coacção. Como a tanto não obsta, por maioria de razão, a circunstância de, tendo o detido sido apresentado ao juiz em tempo útil, o interrogatório não poder iniciar-se no prazo de 48 horas após a detenção (isto para quem entenda que o juiz deve ouvir o detido dentro desse prazo ). Efectivamente, a admitir-se que o detido tinha que ser libertado obrigatoriamente no termo das 48 horas, nada impediria que, entendendo-se que se continuavam a verificar os pressupostos necessários à aplicação da prisão preventiva, se ordenasse nova detenção com tal finalidade.”
Ao questionar a conformidade constitucional das normas do Código de Processo Penal nela aplicadas, o Recorrente pretende acima de tudo sindicar uma interpretação segundo a qual o prazo de 48 horas referido quer na lei de processo, quer na própria Constituição, se conta até à simples apresentação do detido no tribunal e a sua entrega à custódia judicial. Além disso, será também inconstitucional uma interpretação dos questionados preceitos do Código de Processo Penal que permita ao juiz, após este prazo, manter detido o arguido, interrogá-lo nessa situação e determinar-lhe a medida de coacção de prisão preventiva.
2.5. A primeira destas questões deverá ser resolvida mediante a interpretação do próprio preceito constitucional cujo parâmetro é aqui invocado. O citado n. 1 do artigo 28º da Constituição tem, actualmente, a seguinte redacção:
A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa.
Esta redacção resultou de alteração introduzida no preceito pela quarta revisão constitucional. Antes disso, o preceito proclamava o seguinte:
A prisão sem culpa formada será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a decisão judicial de validação ou manutenção, devendo o juiz conhecer das causas da detenção e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa.
Tal redacção podia razoavelmente suscitar uma dúvida de interpretação sobre se a decisão de validação, após o interrogatório, deveria ser proferida ainda dentro do referido prazo de 48 horas. Reflecte essa hesitação o seguinte comentário de Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA in CRP Anotada ( 3ª ed., Coimbra, 1995).
A prisão preventiva sem culpa formada, seja a efectuada em flagrante delito, seja a ordenada em caso de fortes indícios de grave crime doloso, carece sempre de validação ou de confirmação pelo juiz em curto prazo de tempo (parecendo que esse prazo de 48 horas vale para a apresentação de detido ao juiz e também para a decisão deste), de modo a limitar ao máximo a privação do direito à liberdade por via administrativa (especialmente, policial). É ao juiz que compete decidir da pertinência e necessidade da prisão, confirmando-a, substituindo-a por outra medida ou fazendo libertar o detido.
Certo, porém, é que actualmente o preceito tem uma redacção diferente.
A alteração deve-se, sem dúvida, à adequação a uma nova terminologia constitucional, mas apresenta ainda uma alteração de natureza gramatical: enquanto que anteriormente se dizia que a detenção deveria ser submetida no prazo máximo de 48 horas “a decisão judicial de validação ou manutenção,...”, actualmente diz-se que a detenção deverá ser, no mesmo prazo, sujeita “a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada,...”.
Ora deve aceitar-se que o que o legislador constitucional pretende, no aludido preceito, é limitar a privação do direito à liberdade por via administrativa, especialmente a policial, como reconhecem os citados Anotadores, ou seja, o que o parâmetro constitucional impõe é um prazo máximo de prisão administrativa, que não poderá exceder as 48 horas.
Tal entendimento sufraga-se ainda no disposto no artigo 5º § 1 c) e § 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e na doutrina que sobre ele se construiu. A alínea c) do § 1 admite a privação de liberdade, sem condenação, “a fim” de o detido “comparecer perante a autoridade judicial competente”; o § 3 estabelece:
Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c) do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada num prazo razoável ou posta em liberdade durante o processo. A colocação em liberdade pode estar condicionada a uma garantia que assegure a comparência do interessado em juízo.
Em anotação, escreveu Irineu Cabral BARRETO (A CEDH anotada, 2º ed. Coimbra,
1999): “Pretende assim reduzir-se, tanto quanto possível, o risco de arbítrio e assegurar a preeminência do direito, um dos princípios fundamentais de uma sociedade democrática que implica um controlo judicial das ofensas ao direito individual e à liberdade”. Mais à frente: “Em primeiro lugar, a pessoa presa deve ser apresentada imediatamente (aussitôt na versão francesa, promptly na versão inglesa) a um juiz”. “Os órgãos da Convenção, confrontados com as divergências das legislações internas dos Estados membros sobre o prazo em que uma pessoa presa deve ser apresentada a um magistrado, não conseguiram definir um critério uniforme e preciso, limitando-se a afirmar que esta celeridade deve ser apreciada in concreto segundo as circunstâncias da causa, embora se possa admitir, no limite, alguns dias”. “A obrigação de apresentar uma pessoa a um magistrado é incondicional e automática, sem que isso implique o direito de ser ouvida num determinado prazo”.
Equacionado nestes moldes o problema, certo é que a entrega do cidadão detido aos serviços judiciais significa a cessação de uma situação legal de poder administrativo sobre a pessoa privada de liberdade, mostrando-se, por isso, cumprida a garantia que a norma constitucional pretende consagrar.
Outras razões de natureza prática, mas que se ligam com direitos processualmente conferidos aos suspeitos da prática de crime, também apontam para este sentido interpretativo.
Com efeito, se o prazo de 48 horas se reportasse ao momento em que é proferido despacho de validação da prisão, após o interrogatório, teríamos que admitir que a legalidade da prisão dependeria em boa medida não só da actuação policial e da prontidão com que o detido havia sido entregue em tribunal, como ainda do próprio arguido e das opções que ele entendesse tomar neste primeiro interrogatório, designadamente quanto ao tempo gasto nas respostas e na exposição da sua defesa. Isto é, a legalidade da prisão ficaria dependente de acto do próprio interessado, o que seria incompreensível, atentos os riscos que a solução acarretaria não só para a utilidade do interrogatório, como para os direitos de natureza garantística que a lei confere aos próprios arguidos nesse momento processual.
Além disso, a finalidade da intervenção do juiz de instrução, neste primeiro interrogatório, ultrapassa a apreciação da legalidade da detenção efectuada e a consideração das respectivas “causas” no momento em que ela se efectivou, pois reside, também, na aplicação de uma medida de coacção, caso em que a decisão tem a ver com um juízo de prognose sobre a necessidade da prisão preventiva e, logicamente, com a dinâmica da instrução.
Pode assim aceitar-se que o n. 1 do artigo 28º da Constituição visa impor um prazo máximo de detenção administrativa, designadamente policial, e que, por força desta norma, o detido deverá ser nesse prazo entregue à custódia de um juiz; o que, em concreto, se cumpriu com a sua apresentação no Tribunal de Oeiras e com o facto, comprovado, de o Juiz ter despachado no processo ainda dentro do aludido prazo.
Em suma, deve concluir-se que não viola a Constituição a interpretação perfilhada na decisão recorrida dos artigos 141º n. 1 e 254º alínea a) do Código de Processo Penal.
2.6. Outra questão reside em saber se não ofende a garantia constitucional de liberdade individual prevista no n. 1 do artigo 27 da CRP a interpretação dos aludidos preceitos que permite ao juiz validar a detenção do recorrente, após interrogatório, 54 horas após a sua detenção e cerca de 6 horas após a sua apresentação em tribunal.
Este é, na verdade, um outro problema, pois nem os questionados preceitos do Código de Processo Penal nem a Constituição referem expressamente um prazo certo dentro do qual deverá ocorrer o interrogatório do detido e ser proferida decisão sobre a aplicação de medida de coacção.
Mas há uma clara indicação quanto a este prazo no disposto na alínea a) do n. 2 do artigo 103º do Código de Processo Penal: a diligência deverá ocorrer no mais breve espaço de tempo. É também este o sentido que se deve recolher do já aludido comando constitucional previsto nos artigos 18º n. 2 e 27º n. 1 CRP.
Compreende-se, por isso, que não seja concretizado um prazo determinado para o juiz ouvir e julgar da validade da detenção, porque a duração dessa tarefa dependerá do caso concreto.
Inúmeros factores podem, na verdade, condicionar a celeridade da actividade do juiz, como, por exemplo, o tipo e a gravidade do crime praticado, a complexidade do caso, o número de agentes envolvidos, o estado físico e psíquico do próprio detido e as opções que elege quanto à exposição da sua defesa.
Importa, porém, ter em conta a jurisprudência deste Tribunal sobre o dever de celeridade nos casos em que estão em causa direitos fundamentais. Designadamente no acórdão 407/97 de 21 de Maio, frisou-se que “o critério interpretativo neste campo não pode deixar de ser aquele que assegure a menor compressão possível dos direitos fundamentais” e que “a intervenção do juiz é vista como uma garantia de que essa compressão se situe nos apertados limites aceitáveis”, ponderando-se:
... no quadro de uma previsão legal atinente ao processo criminal (a única constitucionalmente tolerada), carecerá sempre de ser compaginada com uma exigente leitura à luz do princípio da proporcionalidade, subjacente ao artigo
18 n.º 2 da Constituição, garantindo que a restrição do direito fundamental em causa se limite ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do seu agente. [...]
Também o TEDH tem aceitado, como já se viu, que a obrigação de apresentar uma pessoa a um magistrado não implica o direito de ser ouvida num prazo determinado, mas no que, caso a caso, mostre ser o mais breve.
Ora, procurando usar o mesmo critério, cumpre assinalar que não ocorreram in concreto hiatos no controlo, pelo Juiz, da situação do Recorrente.
Com efeito, apresentados os detidos, entre os quais se contava o Recorrente, no Tribunal de Oeiras em 31 de Março de 2003, segunda-feira, logo o Juiz proferiu despacho a designar as 13 horas e 30 minutos para os interrogatórios dos presos, fazendo menção da hora a que despachou – 12 horas e 15 minutos – e referindo que essa foi também a hora em que o processo lhe foi entregue. Os interrogatórios iniciaram-se pelas 14 horas e 45 minutos; às 18 horas e 35 minutos do mesmo dia deu-se início ao interrogatório do arguido. Findo o interrogatório, o Juiz validou a prisão e determinou que o arguido ora recorrente aguardasse em prisão preventiva a instrução do processo.
Ora, quer a circunstância de o Juiz haver imediatamente lavrado despacho a designar hora para o interrogatório, diligência que ocorreu logo de seguida, e o controlo sempre manifestado pelo Juiz sobre a situação do arguido – o que inequivocamente resulta da possibilidade conferida ao Advogado do arguido de requerer a sua libertação quando foi ultrapassado o prazo dentro do qual, no seu entendimento, deveria manter-se detido – determinam a convicção segura, no juízo de proporcionalidade que aqui é determinante, que as normas dos artigos 141º n.
1 e 254° a) do Código de Processo Penal, tal como foram interpretadas e aplicadas, não violam a Constituição, designadamente os artigos 27° n. 1, 28° n. 1 e 32°.
É assim de concluir que, também nesta parte, a decisão recorrida não interpretou os questionados preceitos do Código de Processo Penal de forma inconstitucional.
3. Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 15 UC.
Lisboa, 19 de Novembro de 2003
Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida