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Processo n.º 674/02
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
(Cons. Paulo Mota Pinto)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A., propôs, no Tribunal do Trabalho da Comarca de Cascais, contra B., “acção emergente de contrato de trabalho, sob a forma ordinária”, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe 3 700 000$00, a título de indemnização por lucros cessantes, e 50 000 000$00, a título de indemnização por violação do pacto de não concorrência contratualmente ajustado entre as partes, acrescendo a essas quantias juros de mora, à taxa legal, a partir da citação. Para tanto alegou, em síntese, que: (i) o réu foi admitido ao seu serviço em 15 de Setembro de 1997, tendo sido contratualmente estabelecido o regime de exclusividade na prestação da actividade do último, obrigando-se ainda o réu, nos dois anos subsequentes à cessação, por qualquer motivo, do contrato, a não prestar os seus serviços profissionais por conta própria ou de outrem, directa ou indirectamente, a entidades que fossem concorrentes ou fornecedores da autora, estipulando-se uma cláusula penal no valor de 50 000 000$00, a pagar pelo réu, caso este incumprisse a obrigação assumida de não concorrência; (ii) em 14 de Janeiro de 1999, o réu rescindiu o vínculo laboral; (iii) porém, ainda na vigência do contrato, negligenciou o cumprimento das suas funções, o que acarretou, como consequência directa, a perda de um cliente, deixando a autora de auferir 3 700 000$00, a título de lucros cessantes; (iv) por outro lado, após a cessação do contrato, o réu começou a laborar para uma sociedade concorrente da autora, violando o pacto de não concorrência, tornando-se assim responsável pelo pagamento do valor estipulado na aludida cláusula penal.
O réu contestou, propugnando a improcedência da acção, porquanto: (i) não teve qualquer responsabilidade nos lucros cessantes invocados; (ii) após a cessação do contrato, apenas lhe foi possível encontrar trabalho na área que conhece; (iii) é inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 36.º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969 (doravante designado por LCT), por violação do disposto nos artigos 47.º, n.º 1, e 58.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (doravante designada por CRP), que consagra a liberdade de escolha da profissão e o direito ao trabalho, que são direitos indisponíveis; (iv) de qualquer modo, não foram cumpridos os condicionalismos impostos pelo artigo 36.º, n.º 2, da LCT, já que não foi prevista retribuição a auferir durante o período de limitação de actividade, pelo que não tem de pagar a reclamada indemnização de 50 000 000$00 prevista na cláusula penal para o caso de incumprimento da obrigação de não concorrência.
Por sentença de 5 de Dezembro de 2001, o Tribunal do Trabalho de Cascais julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo o réu dos pedidos. Quanto ao pedido de indemnização por lucros cessantes, considerou-se que a não conclusão do negócio em causa não era imputável ao réu. Quanto ao pedido fundado em alegada violação do pacto de não concorrência, a sentença começou por considerar provados os seguintes factos:
“A) A autora é uma sociedade comercial que se dedica à venda e comercialização de materiais de construção;
B) O réu foi admitido ao serviço da autora, por tempo indeterminado, para trabalhar sob as suas ordens, direcção e fiscalização, como vendedor, nos termos do acordo escrito junto por cópia a fls. 11 a 17 (...);
C) Nos termos desse acordo, ficou estabelecido que o réu prestaria a sua actividade para a autora em regime de exclusividade;
D) Mais ficou acordado na cláusula 6.ª que «o segundo contratante
[ora réu] compromete-se a não prestar os seus serviços profissionais, por conta própria e/ou de outrem, directa e/ou indirectamente, a entidades que sejam concorrentes da primeira contratante ou a entidades fornecedoras desta última, durante um prazo de 2 (dois) anos a contar da cessação, por qualquer motivo, do presente contrato de trabalho»; E) Nos termos da mesma cláusula 6.ª, ficou ainda estipulado que «fica entendido que a retribuição que o segundo contraente irá auferir ao abrigo deste contrato de trabalho inclui já uma compensação pela obrigação aqui assumida pelo mesmo»; F) No n.º 2 da mesma cláusula 6.ª mais ficou estipulado que «em caso de incumprimento da obrigação prevista no número anterior [alíneas D) e E)], o segundo contraente pagará à primeira contraente a quantia de Esc. 50 000 000$00
(cinquenta milhões de escudos)»; G) O réu remeteu à autora, que o recebeu, o escrito junto por cópia a fls. 38
(...), comunicando-lhe a rescisão do vínculo laboral a partir de 5 de Fevereiro de 1999; H) A autora remeteu ao réu, que o recebeu, o escrito junto por cópia a fls. 19
(...), comunicando-lhe, além do mais, a sua autorização para cessar as suas funções a partir de 14 de Janeiro de 1999, data em que cessou o vínculo laboral entre as partes;
(...)
K) O réu encontra-se presentemente a exercer funções de técnico comercial na sociedade C.;
L) A qual é concorrente directa da autora;
(...)
T) Após a rescisão do vínculo laboral, o autor apenas conseguiu encontrar trabalho na área que conhece, que é a da venda e comercialização de materiais de construção.”
após o que desenvolveu a seguinte fundamentação jurídica:
“Reclama também a autora o pagamento de uma indemnização de 50 000 000$00, contratualmente acordada, por violação do pacto de não concorrência, estabelecido entre as partes.
Nos termos do n.º 2 do artigo 36.º da LCT, «é lícita, porém, a cláusula pela qual se limite a actividade do trabalhador no período máximo de três anos subsequentes à cessação do contrato, se ocorrerem cumulativamente as seguintes condições: a) Constar tal cláusula, por forma escrita, do contrato de trabalho; b) Tratar-se de actividade cujo exercício possa efectivamente causar prejuízo à entidade patronal; c) Atribuir-se ao trabalhador uma retribuição durante o período de limitação da sua actividade (...)» [sublinhado acrescentado].
No caso vertente, as partes estabeleceram uma cláusula de não concorrência, após a cessação do contrato de trabalho, pelo período de dois anos. E ficou provado que, após a rescisão, ocorrida em 14 de Janeiro de 1999, o réu encontrava-se a exercer funções de técnico comercial numa empresa que é concorrente directa da autora.
Invoca, no entanto, o autor a inconstitucionalidade do n.º 2 do citado artigo 36.º da LCT.
E – adianta-se – entendemos que lhe assiste razão, na medida em que tal norma viola o disposto nos artigos 47.º, n.º 1, e 58.º, n.º 1, da Constituição, que aí consagra a liberdade de escolha da profissão e o direito ao trabalho.
Essa norma – n.º 2 do artigo 36.º da LCT – está ferida de inconstitucionalidade material, pelo que não a aplico (cf. artigo 204.º da CRP). De qualquer forma, e ainda que se concluísse pela constitucionalidade do referido preceito, sempre haveria que concluir-se pela não verificação do requisito da alínea c) do n.º 2 do artigo 36.º, já que sempre se imporia a atribuição de uma retribuição concretamente definida e individualizada com referência ao período de não concorrência ajustado entre as partes e que não se basta pela alusão, feita na cláusula 6.ª do contrato de trabalho, a que a retribuição paga na vigência do contrato «inclui já uma compensação pela obrigação aqui assumida (...)».
Daqui conclui-se que o réu não está obrigado a pagar à autora a quantia por esta reclamada, a título de cláusula penal.”
Contra esta sentença foram interpostos dois recursos:
– um, pelo Ministério Público, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, e 78.º, n.º 4, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), visando a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 36.º, n.º 2, da LCT;
– outro, pela autora, para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo por objecto a parte da sentença que julgou improcedente o pedido de indemnização por incumprimento do pacto de não concorrência, sustentando a apelante, na motivação desse recurso, quer o cumprimento, na cláusula 6.ª do contrato de trabalho, de todos os requisitos exigidos pelo artigo 36.º, n.º 2, da LCT, quer a não inconstitucionalidade desta norma.
O juiz a quo admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional e relegou para momento ulterior, nos termos do artigo
75.º, n.º 1, da LTC, a apreciação do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Recebidos os autos no Tribunal Constitucional, foi determinada a produção de alegações, tendo o representante do Ministério Público finalizado as por si apresentadas com a formulação das seguintes conclusões:
“1 – Ocorre manifesta inutilidade no conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada quando a ratio decidendi em que assentou primacialmente a sentença recorrida é a não verificação de um dos pressupostos que condicionam a concreta aplicação de certa norma de direito infraconstitucional ao caso litigioso.
2 – Configurando-se o juízo de inconstitucionalidade que cumulativamente formula sobre tal norma – se hipoteticamente fosse aplicável, por estarem preenchidos os elementos da sua fattispecie – como mero obiter dictum.
3 – Termos em que – salvo melhor opinião – não deverá conhecer-se do mérito do presente recurso.”
Pelo recorrido não foram apresentadas alegações.
Não tendo obtido vencimento o projecto de acórdão apresentado pelo originário Relator, que acolhia a tese da inutilidade do conhecimento do recurso sustentada pelo Ministério Público, foi o processo redistribuído.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Utilidade do conhecimento do mérito do recurso
De acordo com o iter argumentativo claramente assumido pela decisão recorrida, o juízo de inconstitucionalidade da norma do artigo
36.º, n.º 2, da LTC, não surge como um mero obiter dictum, mas como uma ratio decidendi, à qual, aliás, foi atribuída primazia. A sentença é explícita ao afirmar: “Essa norma – n.º 2 do artigo 36.º da LCT – está ferida de inconstitucionalidade material, pelo que não a aplico (cf. artigo 204.º da CRP)”
(sublinhado acrescentado). E só depois é que acrescenta: “De qualquer forma, e ainda que se concluísse pela constitucionalidade do referido preceito, sempre haveria que concluir-se pela não verificação do requisito da alínea c) do n.º 2 do artigo 36.º, já que sempre se imporia a atribuição de uma retribuição concretamente definida e individualizada com referência ao período de não concorrência ajustado entre as partes e que não se basta pela alusão, feita na cláusula 6.ª do contrato de trabalho, a que a retribuição paga na vigência do contrato «inclui já uma compensação pela obrigação aqui assumida (...)»
(sublinhado no original). Poderia questionar-se se em vez de dizer “a norma é inconstitucional, mas, mesmo que o não fosse, seria inaplicável ao caso”, não seria logicamente mais correcto dizer que “a norma não é aplicável ao caso, mas, se o fosse, seria inconstitucional”. Não compete, porém, ao Tribunal Constitucional fazer essa crítica, nem, muito menos, rescrever a sentença recorrida.
Assente que a recusa de aplicação da norma do artigo
36.º, n.º 2, da LCT constituiu uma das rationes decidendi da decisão recorrida, a “questão prévia” que, em rigor, se deve colocar é a de saber se o subsequente juízo de inaplicabilidade dessa mesma norma ao caso sujeito (por falta de verificação da condição da atribuição ao trabalhador de uma retribuição, concretamente definida e individualizada, durante o período de limitação da sua actividade) não constituirá um fundamento alternativo autónomo, que retiraria interesse processual ao conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade, atenta a natureza instrumental deste recurso, já que, mesmo que ele obtivesse provimento, sempre se manteria o sentido da decisão recorrida
(improcedência da acção), com base no fundamento alternativo (sobre os conceitos aludidos, cf. Victor Calvete, “Interesse e relevância da questão de constitucionalidade, instrumentalidade e utilidade do recurso de constitucionalidade – quatro faces de uma mesma moeda”, em Tribunal Constitucional, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, págs. 403-431).
São numerosas as decisões do Tribunal Constitucional no sentido de que, em caso de existência de pluralidade de fundamentos autónomos da decisão recorrida, cada um deles suficiente para suportar essa decisão, não há que conhecer, por falta de interesse processual, do recurso de constitucionalidade em que apenas se questione um desses fundamentos. Porém, tais situações surgem, na generalidade dos casos, em recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos quais, por força da regra da prévia exaustão dos recursos ordinários, a decisão recorrida para o Tribunal Constitucional coincide com a decisão definitiva da causa, e, por isso, nessas hipóteses, o eventual provimento do recurso de constitucionalidade surge como insusceptível de afectar simultaneamente o sentido da decisão judicial recorrida e o desfecho da causa.
O presente caso apresenta as particularidades de se tratar de um recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, mas, sobretudo, de ter por objecto uma decisão judicial que não representa a decisão final da causa, por dela caber recurso ordinário (que, aliás, no caso, já foi interposto).
A circunstância de se tratar de recurso de decisão de recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade justifica a evocação do decidido no Acórdão n.º 159/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
24.º vol., pág. 371), em que, também num recurso desse tipo, a decisão recorrida utilizara dois fundamentos para afastar a aplicação da norma da alínea ii) do artigo 1.º da Lei n.º 23/91, de 4 de Julho, que amnistiara infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, a saber: (i) não serem abrangidas na previsão legal as empresas de capitais apenas maioritariamente públicos, como era o caso da então ré; e (ii) mesmo que esta fosse considerada empresa de capitais públicos, padecer a norma em causa de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade. Nesse caso, reconhecendo que este juízo de inconstitucionalidade funcionou como ratio decidendi, o Tribunal Constitucional entendeu que, apesar da existência de um outro fundamento autónomo, havia interesse no conhecimento do recurso, pois o fundamento da inconstitucionalidade “não deixaria também de ser aplicável se fosse diverso o entendimento quanto à natureza da empresa ré”, ao que acrescia que “se trata[va] de uma decisão que julgou inconstitucional uma dada norma, o que, a não se conhecer do recurso, implicaria o trânsito da decisão recorrida sem que o Tribunal Constitucional, ao qual compete, por forma específica e em
última instância, conhecer das questões de natureza jurídico-constitucional, se viesse a pronunciar”, e, por último, que, sobre a norma em causa, o Tribunal Constitucional acabara de emitir, em plenário, dois acórdãos no sentido da não inconstitucionalidade.
Com efeito, ao imporem ao Ministério Público a obrigação de interpor recurso das decisões dos tribunais que hajam recusado a aplicação de norma constante, designadamente, de acto legislativo (como é o presente caso), com fundamento em inconstitucionalidade e ao estabelecerem a regra da subida imediata desses recursos, sem prévia exaustão dos recursos ordinários no caso cabíveis, a Constituição e a lei pretendem que o “conflito entre o poder judicial e o poder legislativo”, vislumbrável naquela recusa judicial de aplicação de norma legal, seja rapidamente dirimido pelo órgão constitucional competente para dizer a última palavra em questões de constitucionalidade – o Tribunal Constitucional –, impedindo a consolidação, na ordem jurídica, de decisões judiciais de inconstitucionalidade de normas legais sem que o Tribunal Constitucional possa controlar esses juízos.
Poderemos interrogar-nos – questão que se deixa em aberto – se esses interesses não deverão ceder a razões de economia e utilidade processuais em casos em que a decisão judicial estribada em pluralidade de fundamentos é simultaneamente a decisão final e definitiva do pleito. Mas em situações – como a dos presentes autos – em que a decisão recorrida para o Tribunal Constitucional não é a decisão definitiva da causa, por ser ainda susceptível de recurso ordinário (aliás, neste caso, já interposto), nem sequer se pode argumentar com a inutilidade da pronúncia do Tribunal Constitucional sobre a questão de constitucionalidade perante ele suscitada. Na verdade, o interesse processual ora em apreço deve aferir-se face à susceptibilidade de a pronúncia do Tribunal Constitucional “se projectar utilmente sobre a decisão quanto ao mérito da causa” (para usar a formulação do citado Acórdão n.º
159/93), isto é, sobre o desfecho da acção, e não restritamente sobre a concreta decisão judicial recorrida, quando esta não é a decisão definitiva. Isto é: a utilidade processual é susceptível de ser aferida relativamente ao processo (à causa), não se reportando apenas à decisão recorrida.
No presente caso, o imediato conhecimento, pelo Tribunal Constitucional, da questão de constitucionalidade perante ele suscitada tem a
óbvia utilidade de resolver definitivamente uma das duas questões que estão em discussão nos autos: a da constitucionalidade da norma do artigo 36.º, n.º 2, da LTC. Se o Tribunal Constitucional, revogando nessa parte a sentença recorrida, não julgar inconstitucional tal norma, à Relação de Lisboa, vinculada por esse juízo de não inconstitucionalidade, apenas restará apreciar a outra questão suscitada nas alegações do recurso perante ela interposto: a de saber se se mostra preenchida a condição prevista na alínea c) desse preceito (atribuição de uma retribuição durante o período de limitação da actividade do trabalhador). Se, ao invés, o Tribunal Constitucional, confirmando nessa parte a sentença recorrida, julgar inconstitucional a dita norma, então é a Relação de Lisboa que até se poderá considerar dispensada de conhecer do outro fundamento da sentença, pois, mesmo que considerasse preenchida a aludida condição, nunca a acção poderia proceder por força do juízo de inconstitucionalidade definitivamente emitido pelo Tribunal Constitucional.
Surge, assim, como patente – salvo o devido respeito por opinião diversa – a utilidade processual do conhecimento do presente recurso.
2.2. Apreciação do mérito do recurso
Dispõe o artigo 36.º da LCT:
“1 - São nulas as cláusulas dos contratos individuais e das convenções colectivas de trabalho que, por qualquer forma, possam prejudicar o exercício do direito ao trabalho, após a cessação do contrato.
2 - É lícita, porém, a cláusula pela qual se limite a actividade do trabalhador no período máximo de três anos subsequentes à cessação do contrato, se ocorrerem cumulativamente as seguintes condições: a) Constar tal cláusula, por forma escrita, do contrato de trabalho; b) Tratar-se de actividade cujo exercício possa efectivamente causar prejuízo à entidade patronal; c) Atribuir-se ao trabalhador uma retribuição durante o período de limitação da sua actividade, que poderá sofrer redução equitativa quando a entidade patronal houver despendido somas avultadas com a sua formação profissional.
3 - É lícita igualmente a cláusula pela qual as partes convencionem, sem diminuição de retribuição, a obrigatoriedade de prestação de serviço durante certo prazo, não superior a três anos, como compensação de despesas extraordinárias feitas pela entidade patronal na preparação profissional do trabalhador, podendo este desobrigar-se restituindo a soma das importâncias despendidas.
4 - São proibidos quaisquer acordos entre entidades patronais no sentido de, reciprocamente, limitarem a admissão de trabalhadores que a elas tenham prestado serviço.”
O novo Código do Trabalho distribuiu a matéria versada no artigo
36.º da LCT por três artigos: o artigo 146.º (“Pacto de não concorrência”) corresponde aos n.ºs 1 e 2 do artigo 36.º da LCT; o artigo 147.º (“Pacto de permanência”) corresponde ao n.º 3 do artigo 36.º da LCT; e o n.º 4 deste artigo originou o artigo 148.º (“Limitação de liberdade de trabalho”). No que concerne ao “pacto de não concorrência”, para além de aperfeiçoamentos de redacção, reduziu-se de 3 para 2 anos o período máximo de limitação da actividade, excepto se se tratar de trabalhador afecto ao exercício de actividades cuja natureza suponha especial relação de confiança ou com acesso a informação particularmente sensível no plano da concorrência, hipótese em que a limitação da actividade pode ser prolongada até aos 3 anos; esclareceu-se, em sentido afirmativo, a questão, que a norma do artigo 36.º da LTC suscitava, de saber se o pacto de não concorrência só podia ser clausulado na celebração do contrato de trabalho ou também no acordo de cessação deste; e determinou-se que, em caso de despedimento declarado ilícito ou de resolução com justa causa pelo trabalhador com fundamento em acto ilícito do empregador, o montante da “compensação”
(expressão agora usada, com maior rigor, em substituição da menção a
“retribuição” constante da alínea c) do n.º 2 do artigo 36.º da LCT), prevista para ser atribuída ao trabalhador durante o período de limitação de actividade,
é elevada até ao equivalente à retribuição base devida no momento da cessação do contrato, sob pena de não poder ser invocada a cláusula de não concorrência.
A proclamação - constante do n.º 1 do artigo 36.º da LCT (e agora do n.º 1 do artigo 146.º do Código do Trabalho) - da nulidade das cláusulas dos contratos individuais e das convenções colectivas de trabalho (expressão substituída, no Código do Trabalho, pela mais abrangente “instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho”) que, por qualquer forma, possam prejudicar o exercício da liberdade de trabalho, após a cessação do contrato, tem sido vista, pela generalidade da doutrina, como uma decorrência da liberdade de escolha de profissão ou de género do trabalho e do direito ao trabalho, consagrados nos artigos 47.º, n.º 1, e 58.º, n.º 1, da CRP, especificamente enquanto deles deriva o direito a não ser impedido de exercer uma profissão para a qual se tenham os necessários requisitos (cf. Mário Pinto, Pedro Furtado Martins e António Nunes de Carvalho, Comentário às Leis do Trabalho, vol. I, Lex, Lisboa, 1994, págs. 169-174; Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 604-608; e António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, págs. 610-613; sobre a conexão entre a referida proibição legal e o princípio da liberdade de trabalho já no domínio da Constituição de 1933, cf. A Silva Leal, “O princípio constitucional da liberdade de trabalho”, Revista do Gabinete de Estudos Corporativos, n.º 46, pág. 148 e seguintes, e Raúl Ventura, “Extinção das relações jurídicas de trabalho”, Revista da Ordem dos Advogados, 1950, n.ºs 1 e 2, pág. 358 e seguintes; tomando por referência a Constituição de 1976, cf. Jorge Miranda,
“Liberdade de trabalho e profissão”, Revista de Direito e de Estudos Sociais,
1988, n.º 2, pág. 153 e seguintes).
Já a norma do n.º 2 do artigo 36.º da LCT permite uma restrição à liberdade de trabalho, cuja conformidade constitucional depende da emissão de um juízo de proporcionalidade, adequação e necessidade, o que passa pela ponderação dos interesses conflituantes em presença.
A este propósito referem Mário Pinto, Pedro Furtado Martins e António Nunes de Carvalho (obra e local citados):
“2. À proibição estabelecida no n.º 1 segue-se a previsão de uma excepção, mediante a afirmação da possibilidade de celebração do chamado «pacto de não concorrência», isto é, de um acordo por virtude do qual o trabalhador se obriga a não desenvolver a sua actividade por forma que possa ser prejudicial para a anterior entidade patronal, comprometendo-se, designadamente, a não trabalhar para uma empresa concorrente ou a não exercer por conta própria actividades concorrentes. Compreende-se que, em certos casos, o empregador se queira precaver contra os prejuízos que lhe podem advir do facto de o trabalhador passar a exercer, por conta própria ou alheia, actividades concorrentes. Na constância da relação de trabalho impende sobre o trabalhador um dever de lealdade, do qual decorre a obrigação de se abster de divulgar informações reservadas ou de as usar em proveito próprio ou alheio, bem como a proibição de trabalhar para uma empresa concorrente, desde que, atenta a natureza das funções desenvolvidas e a sua situação nessa empresa, tal envolva o perigo de contribuir para um desvio, actual ou meramente potencial, de clientela (cfr. supra, artigo 20.º, n.º 1, alínea d), e respectiva anotação). Uma vez terminada a relação de trabalho, poder-se-ia pensar que se extingue essa obrigação. Simplesmente, acontece que não cessam os perigos do exercício de actividades concorrenciais. É certo que permanece ainda, mesmo na ausência de qualquer pacto de não concorrência, um dever geral de lealdade pós-eficaz, que torna ilícita, por exemplo, a divulgação de segredos comerciais e industriais (vide Raúl Ventura, Extinção..., cit., págs. 358-359), bem como as actuações contrárias à boa fé, como a disponibilização pelo trabalhador junto de uma empresa concorrente «de documentação a que tenha tido acesso (assim, listas de clientes, suportes informáticos, etc.) em termos de prejudicar o antigo empresário» - Bernardo Xavier (1992 [Curso de Direito do Trabalho, Verbo, Lisboa, 1992]), pág. 543. Mas o que está em causa não se resume à não divulgação de segredos (a qual, de resto, é expressamente tutelada por normas penais - cfr. supra, anotação ao artigo 20.º, n.º 1, alínea d)) ou de documentação reservada. No desenvolvimento da relação laboral o trabalhador adquire uma série de conhecimentos da mais diversa natureza: desde os que directamente se relacionam com a forma de exercício das suas funções (como os relativos à aplicação das técnicas profissionais), até aos que se prendem com a própria actividade da empresa para a qual trabalha (conhecimentos de técnicas industriais, comerciais e organizacionais, muitas das quais não constituem verdadeiros segredos cuja divulgação seja ilícita, conhecimentos sobre os mercados e forma de neles actuar eficazmente, etc.). Tais conhecimentos e informações passam a integrar aquilo que por vezes se designa como o «património profissional» do trabalhador. É evidente que nada impede o trabalhador de utilizar esses conhecimentos no futuro, porque, como explica Raúl Ventura (Extinção... , cit., pág. 358), não pode impor-se um dever de «não utilizar a técnica adquirida ao serviço de qualquer empresa, pois a preparação profissional do trabalhador constitui a base da sua vida, que não pode ser-lhe retirada seja a que título for». Mas é também verdade que a utilização deste acervo de conhecimentos por empresas concorrentes pode ser extremamente prejudicial para o primitivo empregador - pense-se, por exemplo, nos prejuízos que lhe podem advir da utilização por um concorrente das informações relativas à sua carteira de clientes. Os pactos de não concorrência representam uma forma de conciliar os interesses contrapostos aqui em jogo. Simplesmente, uma vez que representam uma restrição da liberdade de trabalho, a lei rodeou as limitações convencionais ao exercício da actividade profissional de certas cautelas, impondo a celebração por forma escrita, um limite máximo de duração e a restrição do seu objecto a actividades verdadeiramente prejudiciais, além de garantir ao trabalhador uma compensação pelas limitações ao exercício da actividade profissional. Deve ainda lembrar-se que os pactos de não concorrência desempenham uma função preventiva do maior relevo. É que, na prática, nem sempre é fácil distinguir entre as situações ilícitas de utilização de informações reservadas e o normal exercício dos conhecimentos profissionais e técnicos que passaram a integrar o património profissional do trabalhador (lembre-se o exemplo há pouco referido sobre a utilização de informações acerca da carteira de clientes do primitivo empregador). Limitando as possibilidades de exercício de actividades concorrenciais, os pactos de não concorrência evitam essas dificuldades.”
A ponderação de interesses a que o legislador procedeu ao admitir, em termos condicionados, a celebração de pactos de não concorrência, também é assinalada por Monteiro Fernandes (obra e local citados): de um lado, estão os interesses do empregador de “evitar que um concorrente venha a utilizar informações, conhecimentos ou recursos (como a clientela) a que o trabalhador teve acesso pela especial posição que detinha na empresa de onde agora parte” e de “evitar o desperdício de meios investidos na qualificação profissional do trabalhador”; mas, por outro lado, os interesses do trabalhador são tidos em consideração: (i) ao exigir-se que a celebração do “pacto” conste de documento escrito, tendo em conta a gravidade do acto; (ii) ao condicionar-se a licitude do pacto ao risco efectivo de prejuízos para o empregador, derivados do exercício da actividade do trabalhador para além do momento em que cesse o contrato de trabalho - condição que “tem que ser encarada com cautela”, pois “o
«prejuízo» de que aqui se trata refere-se aos objectivos económicos do ex-empregador, à sua clientela e ao seu volume de negócios”, não estando
“legitimada a existência de pacto de não concorrência” naquelas situações em que “a saída do trabalhador e a sua passagem para outra empresa pode ter um genérico efeito prejudicial nos interesses do ex-empregador”; (iii) ao impor-se que o trabalhador seja economicamente compensado pela limitação de actividade a que se obriga; e (iv) ao limitar-se temporalmente esta restrição ao exercício da actividade profissional.
Atenta esta regulamentação legal, a generalidade da doutrina conclui pela não inconstitucionalidade da figura em causa, concluindo Pedro Romano Martinez (obra citada, pág. 604, nota 3) que “o pacto de não concorrência, apesar de limitar a liberdade de trabalho, não se pode considerar inconstitucional, porque restringe justificadamente uma liberdade e, além disso, a limitação não é absoluta, pois, atendendo ao disposto no artigo 81.º, n.º 2, do Código Civil, o trabalhador pode, a todo o tempo, desvincular-se desde que compense os inerentes prejuízos”.
Júlio Manuel Vieira Gomes (“As cláusulas de não concorrência no direito do trabalho (Algumas questões)”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXXX (XIII da 2.ª Série), 1999, págs. 7-40, republicado, com aditamentos, em Juris et De Jure - Nos vinte anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa - Porto, edição da Universidade Católica Portuguesa (Porto), Porto, 1998, págs. 933-968) dá conta de que, noutros ordenamentos jurídicos, têm sido expressas dúvidas quanto à constitucionalidade destas cláusulas: em Itália, por Giuseppe Mancini e por Giuseppe Pera, que chamam a atenção para a limitação que delas deriva para a liberdade de desvinculação do trabalhador, sustentando o primeiro que o valor da liberdade económica se deve subordinar à liberdade de trabalhar; e na Alemanha, por Norbert Achterberg, que salienta a íntima e indissociável ligação do direito ao trabalho à realização da personalidade do trabalhador e para quem tais valores imateriais não são adequadamente compensados através da previsão legal da onerosidade da cláusula. E aquele autor sublinha que a interrogação quanto à licitude de tais cláusulas deriva não só da possibilidade de serem vistas como
“atentatórias de um direito ou liberdade fundamental e indisponível, como é a liberdade de trabalho” e da limitação que provocam na “liberdade de desvinculação de um trabalhador, também ela uma faceta da liberdade de trabalhar”, como de, “numa ordem jurídica e económica que consagra a liberdade de concorrência no mercado, todos os acordos limitadores da concorrência surg[ir]em, também, como um paradoxo, ao menos aparente”, e, por último, de considerarem irrelevante “o interesse público e nomeadamente o interesse em aproveitar a experiência, a perícia, a especialização de muitos quadros técnicos”, conduzindo a um “terrível desperdício de talentos” (citando Angela M. Cerino, “A Talent is a Terrible Thing to Waste: Toward a Workable Solution to the Problem of Restrictive Covenants in Employment Contracts”, Duquesne Law Review, 1986, vol. 24, pág. 777 e seguintes).
Reconhecendo a valia de diversos destes argumentos, o certo é que, como refere Júlio Gomes, nos estudos citados, a generalidade dos ordenamentos jurídicos tolera estas cláusulas de não concorrência, embora introduzindo-lhe uma série considerável de restrições, que permitem afastar as dúvidas de inconstitucionalidade, que, por exemplo, Jorge Leite (Direito do Trabalho, vol. II, Serviço de Textos dos Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1999, pág. 63) funda nas considerações de que, por um lado, embora a liberdade de trabalho não seja uma liberdade absoluta ou sem limites, ela apenas suportaria, nos termos constitucionais, as restrições impostas pelo interesse colectivo ou as inerentes às próprias capacidades de cada um, o que não seria o caso, e de que, por outro lado, configurando-se a liberdade de trabalho como um direito essencial e irrenunciável, a sua compressão por via negocial suscitaria fortes dúvidas, até porque o consentimento do trabalhador, dada a sua conexão com a necessidade de obter ou de conservar o emprego, é dada em circunstâncias potencialmente constrangentes.
Entende-se, com efeito, em balanço global, que a regulação legal dos pactos de não concorrência contida na norma questionada não pode ser considerada como restringindo de forma constitucionalmente intolerável a liberdade de trabalho.
Sendo irrecusável a possibilidade da existência, em alguns casos, do apontado constrangimento à aceitação desta cláusula restritiva, não deixa de ser relevante que ela não resulte de imposição do legislador, mas antes de acordo de vontades das partes, assentando, assim, em último termo, na autonomia do trabalhador.
Depois, a imposição de forma escrita, como formalidade ad substantiam, assegura a assunção consciente da restrição e delimita o seu
âmbito de aplicação.
Por outro lado, trata-se de restrição com limitação temporal e, embora a lei não o diga expressamente, a doutrina é concorde em considerá-la também sujeita a limitação geográfica, derivada do seu próprio fundamento, pois nada justificaria o impedimento da actividade do trabalhador em zona aonde o seu antigo empregador não estende a sua acção empresarial.
Especial relevância assume a exigência legal da existência de risco efectivo de prejuízos para o ex-empregador, entendidos estes limitadamente como sendo apenas os derivados directamente da colocação ao serviço de empresas concorrentes dos segredos e conhecimentos especificamente adquiridos ao serviço da antiga empresa. Não basta o prejuízo comum de o empregador perder um seu trabalhador de qualidade para outra empresa concorrente. Há-de estar em causa o risco daquilo que a doutrina designa por
“concorrência diferencial”, isto é, a especificidade da concorrência que um ex-trabalhador está em condições de realizar relativamente ao seu antigo empregador, por ter trabalhado para ele.
Exige-se ainda a estipulação de uma adequada compensação monetária, que terá de ser justa, isto é, suficiente para compensar o trabalhador da perda de rendimentos derivada da restrição da sua actividade.
Finalmente, o trabalhador não fica, em rigor, absolutamente privado do seu direito ao trabalho. A limitação voluntária ao exercício desse direito é sempre revogável (artigo 81.º, n.º 2, do Código Civil) e o incumprimento do pacto, através da celebração de contrato de trabalho com empresa concorrente do antigo empregador, não gera, em princípio, a invalidade deste contrato, mas eventualmente mera obrigação de indemnização. E se tiver sido estabelecida “cláusula penal”, que a doutrina justifica como meio de obviar à dificuldade de prova e de quantificação dos danos sofridos pelo antigo empregador (isto é, como liquidação antecipada desses prejuízos), existirá sempre a possibilidade da sua redução pelo tribunal de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva (artigo 812.º, n.º 1, do Código Civil).
Ponderadas todas estas cautelas e restrições legais, conclui-se que a possibilidade de estipulação de pacto de concorrência não viola, de forma intolerável, os valores constitucionais invocados pela sentença recorrida.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 36.º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida, na parte impugnada, em conformidade com o precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 14 de Abril de 2004.
Mário José de Araújo Torres Maria Fernanda Palma Benjamim Silva Rodrigues Paulo Mota Pinto (Vencido quanto à questão prévia relativa ao conhecimento do recurso, nos termos da declaração de voto que junto) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto Votei vencido quanto ao conhecimento do recurso, por entender que a decisão recorrida contém outro fundamento autónomo, para além da recusa de aplicação da norma com base na sua inconstitucionalidade, o qual, consistindo na falta da própria verificação da previsão normativa, foi expressamente considerado como, só por si, suficiente para, independentemente da questão de constitucionalidade, se chegar ao resultado de improcedência da acção. Com efeito, pode ler-se na decisão recorrida: “De qualquer forma, e ainda que se concluísse pela constitucionalidade do referido preceito, sempre haveria que concluir-se pela não verificação do requisito da alínea c) do n.º 2 do artigo 36.º, já que sempre se imporia a atribuição de uma retribuição concretamente definida e individualizada com referência ao período de não concorrência ajustado entre as partes e que não se basta pela alusão, feita na cláusula 6.ª do contrato de trabalho, a que a retribuição para na vigência do contrato ‘inclui já uma compensação pela obrigação aqui assumida’ (...)” Se é certo que na Lei do Tribunal Constitucional se dispensa a exaustão dos recursos ordinários para a interposição dos recursos de decisões que recusem a aplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade (alínea a) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 70.º dessa Lei), por se pretender a imediata apreciação dessas decisões pela jurisdição constitucional, não se dispensa – nem tal faria sentido – a exigência da susceptibilidade de a decisão do recurso de constitucionalidade se projectar utilmente sobre a decisão recorrida. Tal pressuposto corresponde a um princípio geral dos recursos e baseia-se numa ideia de economia processual, pois a apreciação do recurso tem de poder produzir efeito útil, o que não acontece se, qualquer que fosse o resultado dessa apreciação, se mantiver intocada a decisão recorrida. Não pode, aliás, deixar de se entender desta forma a exigência de utilidade processual – isto é, considerando os elementos que, sobre a ratio decidendi, resultam da fundamentação da decisão recorrida, e não quaisquer outras vicissitudes, das quais o Tribunal Constitucional pode até nem sequer chegar a ter conhecimento. Com efeito, em muitos casos os outros recursos (para além do recurso de constitucionalidade) que possam ser interpostos de decisão que inclua, entre outros fundamentos autónomos e suficientes, o da recusa de aplicação de uma norma com fundamento da sua inconstitucionalidade, só serão interpostos (ou só poderão mesmo vir a ser interpostos) depois da decisão do recurso de constitucionalidade – nos termos do artigo 75.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, o prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, que é de 10 dias, “interrompe os prazos para a interposição de outros que porventura caibam da decisão, os quais só podem ser interpostos depois de cessada a interrupção.” Uma “óbvia utilidade de resolver definitivamente uma das duas questões que estão em discussão nos autos” – a questão de constitucionalidade – não é, pois, de considerar (nem pode, nem tem sido, aliás, considerada) bastante sempre que na decisão recorrida se encontram vários fundamentos suficientes, e o outro fundamento, para além da questão de constitucionalidade, pode ainda vir a ser apreciado na jurisdição infra-constitucional. A meu ver, não faz sentido que a utilidade do recurso de constitucionalidade da decisão da 1ª instância possa ficar dependente da interposição, da manutenção ou da desistência do recurso para a 2ª instância, quanto ao outro fundamento da decisão recorrida. E mesmo tendo já sido interposto recurso da decisão recorrida para o Tribunal da Relação de Lisboa, podendo acontecer que este não reedite o juízo de inconstitucionalidade (mantendo a decisão com base apenas na falta de verificação da previsão da norma em causa), ou, até, que conceda provimento ao recurso, facilmente se deixa também ver como, em qualquer destas hipóteses, a (a meu ver, prematura) actividade decisória do Tribunal Constitucional, no presente recurso, terá sido desprovida de utilidade – como já resultava da decisão recorrida, ao autonomizar expressamente outro fundamento, para além da questão de constitucionalidade. Paulo Mota Pinto