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Proc. n.º 371/04 TC - 1ª Secção Rel.: Cons.º Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - A. e marido, B., com os sinais dos autos, reclamam para este Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 76º n.º 4 da LTC, do despacho do Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra que não admitiu o recurso por eles interposto contra a decisão do mesmo Magistrado de indeferimento do pedido de suspeição da Juíza de Direito, C..
Na sua reclamação, concluem:
'a) Os reclamantes deduziram um incidente de suspeição;
b) Articularam factos e juntaram provas (certidões judiciais) de que por actos praticados pelo Exmo Magistrado Judicial suspeito, o processo não era equitativo;
c) Requereram, ainda, a aplicação directa do art. 20º n.º 4 da Const. Rep. Portuguesa por considerarem que o art. 127º do Cód. Proc. Civil não garante, em absoluto, os princípios da equidade e da imparcialidade;
d) Segundo os reclamantes, o art. 127º do Cod. Proc. Civil ao tipificar os casos de suspeição afasta todos os outros que não se conformam com essa tipicidade.
e) Os reclamantes não foram condenados como litigantes de má fé;
f) Por decaimento no incidente interpuseram os reclamantes recurso para o Tribunal Constitucional;
g) Os casos de suspeição de um Magistrado Judicial não podem estar dependentes do conhecimento pelos oponentes do facto que a montante influenciou a(s) decisão(ões) suspeita(s);
h) A falta de imparcialidade tem que ser, objectivamente, inferida de factos praticados pelo mesmo Magistrado Judicial e sustentada por provas;
i) O caso de suspeição suscitado pelos reclamantes não se enquadra nos tipos do art. 127º do Cód. Proc. Civil, motivo pelo qual se deveria ter aplicado, directamente, o disposto no art. 20º n.º 4 da Constituição, interpretado à luz do art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem;
j) O Venerando despacho reclamado, como todo o respeito que é muito, enferma de erro;
k) Em resultado desse erro foram os reclamantes vencidos, imediatamente, quanto à questão da suspeição;
l) E, mediatamente, quanto à problemática da inconstitucionalidade do art. 127º do Cód. Proc. Civil;
m) Fazendo, ainda, o dito despacho tábua rasa do art. 20º da Constituição.'
Pedem, a final, o deferimento da reclamação.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, com o fundamento de não ter sido previamente suscitada pelos reclamantes qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
Cumpre decidir.
2 - Resulta dos autos, com interesse para a decisão da presente reclamação:
- Os ora reclamantes deduziram incidente de suspeição da Juíza do
---º Juízo Cível de -----------, C., pela sua intervenção na acção ordinária n.º
------/03 que movem contra a D.;
- Como fundamento do seu pedido, enumeraram uma série de decisões da referida Juíza que, segundo eles, os colocavam 'numa clara inferioridade face à D.', dizendo ainda que a igualdade armas lhes fora ilegitimamente negada;
- No pedido de suspeição, os ora reclamantes concluiram:
'60 - Determina o art. 18º da Constituição da República Portuguesa que os preceitos constitucionais respeitantes a direitos liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam entidades públicas e privadas.
61 - E o n.º 2 do art. 16º da Constituição que 'Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem'. Ora,
62 - O art. 20º da nossa Constituição insere-se no Título I - Princípios Gerais da Parte I relativa aos Direitos e Deveres Fundamentais.
63 - Logo, para além da sua aplicação directa, é interpretável e integrada à luz da citada Declaração Universal. Assim,
64 - Face ao n.º 4 do art. 20º da Constituição da República Portuguesa os requerentes têm o direito a que o presente processo seja, por um lado, equitativo,
65 - E, por outro, segundo a interpretação e integração à luz do art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que a mesma seja decidida com imparcialidade.
66 - Equitatividade e imparcialidade essas que não são, tout court, garantidas pelo art. 127º do Cód. Proc. Civil.
67 - O qual enferma nessa parte de evidente inconstitucionalidade.
68 - Pelo que o caso em apreço, face à falha de garantia do art.
127º do Cod. Proc. Civil, subsume-se na aplicação directa do n.º 4 do artº 20º da Constituição da República Portuguesa.'
- O pedido foi indeferido por decisão do Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra.
- Nesta decisão, aquele Magistrado louvou-se, substancialmente, em despacho anterior em que os requerentes tinham alegado a suspeição da mesma Juíza, com idênticos fundamentos, em processo que lhes era movido pela D..
- Na parte que interessa, escreveu-se na referida decisão:
'O Juiz não tem de se preocupar em decidir de certa maneira para agradar a uma das partes. Se o fizesse é que estaria a violar o seu dever de imparcialidade.
Decidir-se num sentido ou noutro, só por si, não pode ser interpretado, em caso algum, como significando quebra do dever de isenção e imparcialidade.
Mesmo que a sua posição seja alterada por um Tribunal Superior. O Direito não é uma ciência exacta; quantas vezes as três instâncias têm posições divergentes perante a mesma questão !
Se a parte pudesse recusar um Juiz apenas por as suas decisões não lhe serem favoráveis, não mais haveria Juízes para julgar processos. Se, em sua consciência, se decidisse a favor de uma parte, a outra deduzia a suspeição. E assim sucessivamente. Seria um absurdo!
Ou seja, o sentido das decisões proferidas pelos Juízes nos processos não podem constituir fundamento de suspeição. Tal seria, pura e simplesmente, acabar com a independência e imparcialidade dos Juízes.
As circunstâncias ou factos que podem constituir fundamento de suspeição situam-se necessariamente a montante da decisão.
O recusante tem de alegar, e provar, factos ou circunstâncias que levam a suspeitar que o Juiz não vá decidir com isenção e imparcialidade. Porque ocorre este facto ou aquela circunstância pode suspeitar-se que o Juiz seja tentado a decidir, não de harmonia com o que livre e independentemente entende, mas sob influência, ainda que inconsciente, do facto ou circunstância.
Essas circunstâncias ou factos que podem levar à suspeita objectiva sobre a imparcialidade do Juiz, estão enumerados no art. 127º do C.P.Civil. Pelo menos, não consigo imaginar qualquer outra.
É óbvio que, se outra existir de natureza subjectiva que se possa enquadrar nos preceitos citados pelos reclamantes, nada obsta à sua ponderação para se decidir se esses preceitos são aplicáveis ou não.
Só que a apreciação tem de incidir sobre o que, para além da consciência do Juiz e sua livre aplicação da Lei de harmonia com essa consciência, a montante, influenciou essa decisão.
Agora, o sentido da própria decisão não pode constituir fundamento de suspeição. Nem o Presidente da Relação tem jurisdição para sindicar essas decisões, em sede de incidente de suspeição. Elas só podem ser sindicadas através de recurso ou reclamação.
Por isso, o fundamento invocado pelos reclamantes não integra qualquer fundamento de suspeição, não se enquadrando quer no art, 127º do C.P.Civil quer nos preceitos por eles invocados. A imparcialidade da Senhora Juíza não está minimamente beliscada'.
Ou seja, o fundamento invocado pelos reclamantes não integra quer o disposto no art. 127º do C.P: Civil, quer o art. 20º n.º 4 da Constituição, quer o art. 10º da D.U.D.H.
............................................................................................................'
- Os ora reclamantes interpuseram, então, recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC, escrevendo no respectivo requerimento:
'........................................................................................................... Pretendem os ora oponentes que o Tribunal Constitucional aprecie da inconstitucionalidade do art. 127º do Código de Processo Civil.
Por o referido artigo violar os princípios da imparcialidade e equidade insertos na parte final do n.º 4 do art. 20º da Constituição da República Portuguesa, quando se interpreta este preceito constitucional à luz do art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 16º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).
Sendo que os oponentes suscitaram essa questão de inconstitucionalidade no próprio requerimento do incidente de suspeição.
No qual foram, no entanto, vencidos apesar dos factos que articularam e provas que apresentaram.
Ou seja, os factos e as provas que os oponentes apresentaram consubstanciam, objectiva e inequivocamente, uma caso de suspeição.
Pelo que ficando nele vencidos estão, também vencidos na questão da inconstitucionalidade do art. 127º do Cód. Proc. Civil.
A norma que arguiram de inconstitucional no requerimento,
Por a Veneranda Decisão que recaiu sobre o incidente ter feito tábua rasa, quer do art. 20º da Constituição, quer do art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem à luz da qual a norma constitucional deve e tem de ser interpretada.
..............................................................................................................'
- O recurso não foi admitido.
- No despacho de não admissão do recurso, depois de se sintetizar o requerimento de interposição, escreveu-se:
'Ora, aceitei esta tese escrevendo [segue-se a transcrição do despacho que decidiu o incidente desde 'Essas circunstâncias...' até 'quer o art. 10º da D.U.D.H.'].
Quer dizer, os reclamantes não foram vencidos na questão de inconstitucionalidade.
O que se entendeu é que os fundamentos invocados não constituem fundamento de suspeição, mesmo aplicando os preceitos que invocam, para além, do art. 127º.
E, assim sendo, não tendo sido vencidos na questão de inconstitucionalidade invocada, não têm legitimidade para recorrer para o Tribunal Constitucional.
Teriam sim legitimidade para interpor recurso para uma instância ordinária superior se a Lei o admitisse.
Nestes termos, não recebo o recurso.
..............................................................................................................'
3 - A não admissão do recurso pelo despacho reclamado fundou-se - como se viu - na ilegitimidade dos recorrentes, por estes não terem sido vencidos na decisão da questão de constitucionalidade.
Tendo em conta que o objecto do recurso é a norma do artigo 127º do CPC e supondo agora que a questão de constitucionalidade foi correctamente suscitada no pedido de suspeição, entende o Tribunal que o despacho recorrido fez aplicação daquela norma, na interpretação segundo a qual apenas as situações tipificadas no preceito, todas elas assentes em factos ou circunstâncias ocorridas 'a montante' das decisões tomadas pelo Juiz, podem justificar a suspeição do Juiz.
Nesta medida, não pode aceitar-se que os recorrentes não tenham sido vencidos na questão de constitucionalidade: eles defendiam a não aplicação da norma, por inconstitucionalidade, e a norma foi efectivamente aplicada como ratio decidendi.
Mas esta conclusão não ficará infirmada pelo facto de o despacho recorrido ter conhecido do pedido à luz do disposto no artigo 20º n.º 4 da CRP ?
Reconhece-se que o despacho recorrido não deixa de colocar a hipótese de outras situações, não especialmente previstas no artigo 127º do CPC, justificarem a suspeição do juiz.
E que não deixa também de apelar ao disposto no artigo 20º n.º 4 da CRP para, sem expressa consideração do artigo 127º do CPC, decidir que a situação em causa não é abrangida pelo preceito constitucional.
Poderia aqui entender-se que o despacho reclamado, ao fazer aplicação directa do preceito constitucional, recusava implicitamente a aplicação da norma do artigo 127º do CPC, com fundamento em inconstitucionalidade, tal como os recorrentes pretendiam; e, em tal conformidade, os recorrentes não ficariam vencidos.
A verdade, porém, é que, na interpretação que implicitamente faz do preceito constitucional, o despacho recorrido mantém o mesmo entendimento de que só factos ou circunstâncias alheios às próprias decisões do juiz em causa e ocorridos a montante destas decisões podem fundamentar a suspeição, com o que se não pode admitir qualquer julgamento de inconstitucionalidade da norma do CPC, de acordo com a tese dos recorrentes.
4 - Apesar do que se deixa dito, entende-se que, embora com outros fundamentos, o recurso não dever ser admitido.
Vejamos por quê.
No pedido de suspeição deduzido pelos reclamantes foi claramente posta em causa a constitucionalidade da norma do artigo 127º do CPC quando nele se diz (ou quis dizer) que esta norma, tipificando as situações susceptíveis de fundamentar a suspeição do juiz, deixa de fora outros casos em que, por força do disposto no artigo 20º n.º 4 da CRP, à luz do que o artigo 10º da D.U.D.H. estabelece, se justifica a suspeição.
É esta, aliás, a razão por que os reclamantes requereram que o pedido de suspeição fosse apreciado com a aplicação directa do preceito constitucional, na parte em que ele consagra o direito das partes a um processo equitativo.
Com isto o que os reclamantes verdadeiramente e em bom rigor pretendiam era uma decisão aditiva, em que, por força do artigo 20º n.º 4 da CRP, se fizesse acrescer ao artigo 127º do CPC outro ou outros fundamentos de suspeição.
Poderá, desde logo, entender-se que a impugnação deduzida contra o despacho do Presidente da Relação de Coimbra (recurso de constitucionalidade) que indeferiu o pedido se acaba por dirigir à própria decisão judicial por, em contrário do pretendido, não ter ampliado os fundamentos da suspeição à situação concreta invocada pelo recorrente (cfr. em caso semelhante, o Acórdão deste Tribunal n.º 626/98, de 3/11/98).
Em tal conformidade, devendo o recurso de constitucionalidade em fiscalização concreta ter por objecto normas, e não as próprias decisões judiciais, o recurso não deve ser admitido.
5 - Mas outro fundamento alternativo conduz à mesma solução.
Aceitando, agora, que, de acordo com o respectivo requerimento de interposição, o recurso vise uma interpretação normativa do artigo 127º do CPC, impõe o disposto nos artigos 70º n.º 1 alínea b) e 72º n.º 2 da LTC que o recorrente suscite a questão de constitucionalidade, durante o processo, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Ora, tendo em conta os contornos do caso, em que os recorrentes e ora reclamantes sustentavam a inconstitucionalidade do artigo 127º do CPC com fundamento na sua insuficiência para assegurar um processo equitativo, garantido pelo artigo 20º n.º 4 da CRP, a questão de constitucionalidade só deveria ter-se por suscitada se os recorrentes, para além de recortarem negativamente a inconstitucionalidade (a norma não contemplar outros casos em que se imporia a suspeição do juiz), definissem normativamente o quid supostamente em falta.
A verdade é que os reclamantes o não fizeram no pedido de suspeição, limitando-se a elencar várias decisões da Juíza em causa que, segundo eles, relevariam falta de imparcialidade, não se suscitando, assim, uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa.
Soçobra, deste modo, e também por esta via, um dos pressupostos do recurso interposto.
6 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em15 Ucs.
Lisboa, 20 de Abril de 2004
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida