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Processo n.º 822/03
3ª Secção Rel. Cons. Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A fls. 10 193 foi proferida a seguinte decisão sumária:
“1. A., identificado nos autos, interpôs recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Outubro de 2003 (fls. 10170 a 10179), que lhe rejeitou, na parte relativa aos crimes de fraude na obtenção de crédito e abuso de confiança, o recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de Junho de 2002. Segundo o respectivo requerimento de interposição, o recurso tem por fundamento a violação do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, por interpretação materialmente inconstitucional dos seguintes normas, aplicadas pelo acórdão recorrido:
- Artigo 400º, nº 1, al. f) do Código de Processo Penal, na redacção da Lei nº
59/98, de 25 de Agosto, “se interpretada restritivamente no sentido de que a reformulação do acórdão que alterou o cúmulo da pena aplicada ao recorrente não modificou o acórdão proferido pela Veneranda Relação de Coimbra, sendo, por isso, tal decisão irrecorrível”;
- Artigo 403º do Código de Processo Penal, “se da sua interpretação resultar a perda de garantias de defesa para o recorrente por não apreciação do recurso na sua totalidade”. Recebido o processo neste Tribunal, o relator convidou o recorrente a indicar a peça processual em que suscitou a questão da inconstitucionalidade que quer ver apreciada. O recorrente respondeu que só no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional suscitou as inconstitucionalidades invocadas, mas que o recurso deve prosseguir, em síntese, pelo seguinte:
- Ao interpor o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente não poderia antecipar que esse Tribunal iria adoptar o sentido de interpretação das normas que tem por inconstitucional; se for condição de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional de decisão de tribunal de que não caiba recurso ordinário que em momento anterior haja sido suscitada a questão de inconstitucionalidade, fica aberto o caminho para que essa desconformidade à Constituição nunca seja apreciada, bastando que esse tribunal aplique, pela primeira vez no processo, um normativo legal.
- Se a norma da Lei do Tribunal Constitucional – artigo 75º-A, nº 2, da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro – que regula as condições de admissibilidade do recurso permite uma tão restritiva interpretação, então é ela própria materialmente inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 32º da Constituição.
2. O recorrente foi condenado, no Tribunal de Círculo de Torres Novas, na pena
única de 6 anos de prisão e 140 dias de multa à razão diária de 2.000$00, perfazendo o total de 280.000$00, a que correspondem, em alternativa, 93 dias de prisão, resultante do cúmulo jurídico das seguintes penas:
“- pela prática de quatro crimes de fraude na obtenção de crédito, previstos e punidos pelos artigos 38º, nº.s 1, alíneas a) e b), 2, e 3, e 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, com referência ao artigo 202º, alínea b), do Código Penal vigente, nas seguintes penas: 2 anos e 6 meses de prisão e
100 dias de multa razão diária de 2.000$00; 2 anos e 6 meses e 100 dias de multa
à razão diária de 2000$00; 1 ano de prisão e 40 dias de multa, à razão diária de
2.000$00; e 7 meses de prisão e 25dias de multa, à razão diária de 2.000$00;
- pela prática de um crime de burla qualificada previsto e punido pelos artigos
313º e 314º, alínea c), do Código Penal de 1982, na pena de 3 anos de prisão;
- pela prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelos artigos 205º nºs. 1 e 4, alínea b) e 202º, alínea b), ambos do Código Penal vigente, na pena de 12 meses de prisão.” Foram declarados perdoados 2 anos de prisão, ao abrigo “do disposto no artigo
8º, nº 1, alínea d), da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, e no artigo 1º, nºs. 1 e 4, da Lei nº 9/99, de 12 de Maio, sob as condições resolutivas dos artºs. 11° e 4° das respectivas Leis, consignando-se que destes perdões não beneficiavam os crimes de fraude na obtenção de crédito, por a tal se oporem os artigos 9º, nº
3, al. a) e 2°, nº 2, al. e), respectivamente, da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, e Lei n° 29/99, de 12 de Maio.” O arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que “julgou improcedentes os fundamentos do recurso, confirmando o acórdão recorrido com rectificação do modo como se efectuou o cúmulo das penas, nos seguintes termos:
- efectuando o cúmulo das penas que beneficiam dos perdões – 3 anos de prisão pelo crime de burla e 12 meses de prisão pelo crime de abuso de confiança – foi o arguido condenado na pena unitária de e 3 anos e 6 meses de prisão;
- a esta pena declaram perdoados 2 anos de prisão, sob a condição resolutiva referida nos artigos 11º e 4º das Leis nºs. 15/94 e 29/99, ficando a pena residual de 1 ano e 6 meses de prisão;
- fazendo o cúmulo destas pena com as penas dos crimes de fraude na obtenção de crédito - de 2 anos e 6 meses de prisão, 2 anos e 6 meses de prisão, 1 ano de prisão e 7 meses de prisão - foi o arguido condenado na pena única de 4 anos de prisão O arguido interpôs recurso deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça. O assistente banco B. respondeu à motivação do recurso levantando a questão da irrecorribilidade do acórdão da Relação quanto à prática dos crimes com excepção do crime de burla qualificada, por se tratar de crimes puníveis com penas de prisão não superior a 8 anos, tendo o acórdão da Relação confirmado o da primeira instância. O magistrado do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça emitiu parecer em que corroborou a posição assumida pelo assistente, sustentando que o acórdão da Relação só era recorrível quanto ao crime de burla qualificada, devendo o recurso ser rejeitado na parte restante. Cumprido o disposto no artigo 417º nº 2, do Código de Processo Penal, o recorrente respondeu que a Relação de Coimbra reformulou a decisão condenatória da 1ª instância, no que respeita à aplicação dos perdões modificando o acórdão do Colectivo de Torres Novas, pelo que o recurso deve ser apreciado na sua totalidade ( fls. 10.161) Julgando procedente esta questão prévia, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o recurso na parte relativa aos crimes de fraude na obtenção de crédito e abuso de confiança, com a seguinte fundamentação:
“Nos termos do artigo 400º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal na redacção da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos em recursos pelas relações que confirmem decisão da primeira instância em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções. Os crimes de fraude na obtenção de crédito são puníveis com prisão até 5 anos e multa até 200 dias; o crime de burla qualificada é punível com prisão de 1 a 10 anos; o crime de abuso de confiança é punível com prisão de 1 a 8 anos. Resulta do exposto que só a parte do acórdão relativa à condenação pela prática do crime de burla qualificada é recorrível. Quanto aos demais crimes o acórdão é irrecorrível, pelo que, nos termos do artigo 420º, nº 1, conjugado com o artigo 414º, nº 2, do Código de Processo Penal, deve ser rejeitado nessa parte. A circunstância de a Relação ter reformulado a decisão condenatória da 1ª instância quanto à matéria do perdão, o que motivou um novo cúmulo de penas, não afasta essa irrecorribilidade, já que as penas parcelares aplicadas foram confirmadas. A questão da rejeição parcial do recurso, ainda que não expressamente prevista na lei, foi objecto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Junho de
1992, fixando jurisprudência, o qual assentou no princípio da cindibilidade do recurso, acolhido, designadamente, no artigo 403º do Código de Processo Penal. Prevê o nº 2, alínea b ), desse artigo que, para efeitos de limitação do recurso
é autónoma, em caso de concurso de crimes, a decisão que se referir a cada um deles. No caso, sendo intocáveis as penas aplicadas pela prática dos crimes de fraude na obtenção de crédito e de abuso de confiança, por força do disposto no artigo
400º, nº 1, alínea f), do referido Código, forçoso é concluir que o recurso não deve prosseguir quanto a esses crimes.”
3. Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso – n.º 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82 –, entende-se ser caso de proferir decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A, do mesmo diploma legal. Com efeito, é requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do artigo 70º da LTC que a questão da inconstitucionalidade da norma “ haja sido suscitada durante o processo”, requisito este que, no caso, não está presente. Como se disse no Acórdão nº 15/95, “a locução ‘durante o processo’ exprime precisamente o desiderato da suscitação na pendência da causa da questão de constitucionalidade, em termos de essa mesma questão ser tida em conta pelo tribunal que decide. Essa ideia é, afinal, corolário da natureza e do sentido da fiscalização concreta de constitucionalidade das normas e, em especial, do recurso de parte que dela participa. Aí a questão de constitucionalidade é uma questão incidental, em estreita relação com o ‘feito submetido a julgamento’ (CRP, art.
207º) [actualmente, artigo 204º], só podendo incidir sobre normas relevantes para o caso. O ‘interesse pessoal na invalidação da norma’ ( ...) só faz sentido e se concretiza na medida em que a parte confronte, em tempo, o tribunal que decide a causa com a controversa validade constitucional das normas que aí são convocadas.”. Como lembram Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, Breviário de Direito Processual Constitucional, p.51, em conformidade com a jurisprudência deste Tribunal que citam, este requisito deve ser tomado num sentido funcional, tal que essa invocação haverá de ser feita em momento em que o tribunal a quo ainda possa conhecer da questão, ou seja, antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma questão de inconstitucionalidade respeita. De acordo com este entendimento funcional a exigência de suscitação da questão de (in)constitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo não se aplica naqueles casos anómalos ou excepcionais em que o interessado é confrontado com uma aplicação da norma de todo imprevista ou inesperada e em que, por isso, não teve oportunidade processual para submeter a questão ao tribunal a quo (Acórdão n.º 352/94, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Setembro de 1994). De todo o modo, para que se considere verificada uma situação deste tipo, é necessário que a aplicação da norma (ou do sentido normativo) em crise tenha surgido num contexto processual em que seria desrazoável exigir ao interessado que contasse com essa possibilidade, em termos de se antecipar à decisão, suscitando a questão de inconstitucionalidade. Ora, no caso não estamos perante uma decisão-surpresa. O recorrente teve ampla possibilidade de suscitar a questão de inconstitucionalidade normativa que quer ver apreciada. Efectivamente, a questão da irrecorribilidade do acórdão da Relação no que tange aos crimes puníveis com pena inferior a 8 anos de prisão, com a consequente rejeição parcial do recurso – porque quanto ao mais aceitava-se o seguimento do recurso, como veio a ser decidido – foi suscitada pelo assistente na resposta à motivação do recurso e foi secundada pelo Ministério Público. O recorrente foi ouvido sobre esta questão, nos termos do nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, tendo-se limitado, no que para agora interessa, a sustentar que o facto de o Tribunal da Relação ter modificado a decisão condenatória de 1ª instância quanto aos perdões e reformulado o cúmulo tornava a decisão recorrível
( fls. 10 161). Defendeu uma determinada interpretação de direito ordinário, oposta àquela que vinha proposta. Mas não suscitou, quanto a esta ou ao sentido normativo que dela resulta, qualquer questão de inconstitucionalidade, seja da norma que limita o recurso de acórdãos da Relação [artigo 400º, nº 1, alínea f) do CPP], seja da norma que permite a cindibilidade do recurso ( artigo 403º do CPP). Só depois de exercido o contraditório foi proferido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a rejeitar parcialmente o recurso, dando razão ao assistente e ao Ministério Público, quanto à questão prévia. Portanto, não é exacto que o recorrente não dispusesse da oportunidade de discutir a inconstitucionalidade antes da aplicação dos referidos preceitos com o sentido normativo cuja constitucionalidade agora quer ver apreciada. Dispôs, em toda a plenitude, dessa possibilidade quando produziu a peça processual de fls. 10 161.
4. Na resposta ao convite do relator (fls. 10188 e segs.) alega o recorrente que “[s]e a norma da lei do Tribunal Constitucional – art. 75º-A , nº 2, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro – que regula as condições de admissibilidade do recurso permite uma tão restrita interpretação, então essa norma é ela própria materialmente inconstitucional, por violação do art. 32º, nº 1 da CRP, o que agora se suscita”. O nº 2 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, impõe a quem recorre das decisões dos restantes tribunais para o Tribunal Constitucional ao abrigo das alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º, que faça constar do requerimento:
- a norma ou princípio constitucional ou legal que se considera violado;
- a peça processual em que o recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade ou ilegalidade. O recorrente não diz, nem se vislumbra, em que é que uma exigência formal de tão fácil satisfação colide com as garantias de defesa do processo criminal, incluindo o recurso. Trata-se de exigência perfeitamente adequada a permitir a apreciação dos pressupostos específicos do recurso de constitucionalidade, que nada tem de desproporcionado ou de desrazoável. Admitindo que o recorrente, ao mencionar o artigo 75º-A, quisesse referir-se, não propriamente aos requisitos formais do requerimento de interposição, mas ao pressuposto material específico deste recurso que consiste na suscitação
(atempada e de modo processualmente adequado) da inconstitucionalidade da norma aplicada – isto é, à alínea b) do nº 1 do artigo 70º e não ao nº 2 do artigo
75º-A, ainda assim a alegação improcede. Com efeito, o que a Constituição garante, em matéria de fiscalização das decisões dos tribunais – em processo criminal como em qualquer outro – é o recurso das decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo [artigo 280º, nº 1, alínea b) da Constituição]. Assim, o ónus de suscitação pregressa da questão da constitucionalidade para aceder ao Tribunal Constitucional, no entendimento acima defendido, está em rigorosa conformidade com as normas e os princípios constitucionais. Mais do que isso, é uma exigência imposta pelo próprio texto constitucional, que o direito infra-constitucional se limita a secundar.
5. Pelo exposto, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 25/82, de 15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
( ...)”
2. O recorrente reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC, nos termos seguintes:
“(...)
2- Não tem razão a decisão reclamada.
3- O reclamante pronunciou-se, a fls. 10 161 dos autos, sobre o parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, que colocou a questão da cindibilidade do recurso com fundamento no facto de o acórdão da relação de Coimbra só ser recorrível “quanto ao crime de burla qualificada” (sic fls. 10 145).
4- Nessa vertente o ora reclamante não considerou que a interpretação do art.
400º, nº 1, al. f), do Código de Processo Penal fosse inconstitucional e, por isso, não suscitou a inconstitucionalidade de tal norma processual.
5- Explicou então o recorrente, ora reclamante, que a circunstância que tornava possível, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça era o facto de o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra ter modificado a decisão da 1ª instância e, portanto, a cindibilidade do recurso com o fundamento invocado quer pelo assistente quer pelo Magistrado do Ministério Público não tinha, sequer, razão de ser. Contudo,
6- Com o devido respeito, esclarecemos que o Supremo Tribunal de Justiça rodeou a questão que devia ter sido apreciada, que foi a de saber se o Tribunal da Relação de Coimbra, ao reformular a aplicação dos perdões, modificou, ou não, o acórdão condenatório proferido pela 1ª instância e, escudando-se numa questão colateral, proferiu a decisão que motivou o recurso de cuja decisão ora se reclama.
7- Nunca o reclamante previu que o Supremo Tribunal de Justiça subvertesse a questão colocada pelo recorrente à sua apreciação. E, por isso,
8- O ora reclamante suscitou a inconstitucionalidade do art. 400º, nº 1, al. f), do Código de Processo Penal, se interpretada restritivamente no sentido de que a reformulação do acórdão que alterou o cúmulo da pena aplicada ao recorrente pelo Tribunal da Relação de Coimbra não modificou o acórdão proferido pela 1ª instância. Explicamos melhor,
9- O reclamante entendeu não haver interpretação materialmente inconstitucional do art. 400º, nº 1, al. f), pelo facto de a decisão da Relação de Coimbra só ser recorrível quanto ao crime de burla, mas sim pelo facto de o Supremo Tribunal de Justiça ter considerado que o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra não tinha modificado a decisão da 1ª instância.
10- É nesta vertente, e não noutra, que o reclamante, surpreendido com a posição do Supremo Tribunal de Justiça, suscitou a inconstitucionalidade material do art. 400º, nº 1, al. f), do Código de Processo Penal.
11- E por esta ser uma questão relativamente à qual o reclamante não teve oportunidade processual para se pronunciar, por não ser previsível tal tomada de posição pelo STJ, é que o reclamante suscitou a inconstitucionalidade da norma que pretende ver apreciada.
12- O que agora requer que seja realizado pela conferência do Tribunal Constitucional.”
O Ministério Público respondeu que a reclamação carece de fundamento sério, porque «face ao teor das precedentes intervenções processuais, a aplicação normativa questionada pelo recorrente não constitui obviamente
“decisão-surpresa” que, pelo seu carácter imprevisível, dispensasse o recorrente do ónus de suscitação da respectiva inconstitucionalidade “durante o processo”».
O recorrido B. pugna igualmente pela improcedência da reclamação, salientando que o recorrente, no exercício do contraditório que foi chamado a exercer nos termos do n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, “se limitou a sustentar que o facto de o Tribunal da Relação ter modificado a decisão condenatória de 1ª instância quanto aos perdões e reformulado o cúmulo tornava a decisão recorrível, pugnando por uma interpretação normativa divergente mas não suscitou a inconstitucionalidade da interpretação contrária”.
Cumpre decidir.
3. Insiste o reclamante em que não teve oportunidade de pronunciar-se, antes de ser proferido o acórdão recorrido, sobre a inconstitucionalidade da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do CPP, na vertente em que suscita a questão: o entendimento de que a reformulação do cúmulo jurídico das penas parcelares pela Relação não implica modificação da decisão da 1ªinstância. Acrescenta que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça subverteu o tratamento dessa questão, em termos imprevisíveis pelo recorrente.
Centremo-nos nesta argumentação, já que a recorrente abandonou a questão da constitucionalidade do artigo 75º-A da LTC e as demais considerações da decisão sumária correspondem a jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional que se afigura desnecessário repetir.
Ao recorrente foi oposta – nas contra-alegações que o assistente apresentou no recurso do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça e no parecer do magistrado do Ministério Público junto deste último tribunal - a excepção de irrecorribilidade daquele acórdão, salvo quanto ao crime de burla agravada, com expressa invocação do preceituado na alínea f) do n.º 1, do artigo
400º do Código de Processo Penal, na red. emergente da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que dispõe não ser admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções. Ouvido nos termos do n.º 2 do artigo 417ºdo CPP, limitou-se a contrapôr que não se verificava um dos pressupostos da hipótese normativa: que a decisão da 1ª instância tenha sido confirmada pela Relação.
Ora, tendo o Supremo Tribunal de Justiça, para decidir a questão obstativa, de pronunciar-se sobre a verificação da chamada “dupla conforme”, era previsível –
num grau que é o da quase certeza, visto que corresponde a um passo logicamente necessário da decisão que tinha de proferir – que, se adoptasse o entendimento adverso, o fizesse com fundamento na interpretação que o recorrente agora sustenta corresponder a um sentido inconstitucional da norma. Com efeito, tendo de apreciar a ocorrência de “conformidade” das decisões das instâncias, o acórdão recorrido teria forçosamente de examinar a questão da relevância, nesse plano, da reformulação do cúmulo jurídico, por efeito da alteração do perdão de pena. Este era um aspecto crucial da questão prévia de irrecorribilidade parcial do acórdão da Relação e o entendimento que veio a ser adoptado pelo acórdão recorrido estava pressuposto na sua suscitação, pelo que o recorrente poderia razoavelmente contar com ele e contrapor-lhe a arguição de inconstitucionalidade.
Assim , como se considerou na decisão sumária sob reclamação, não estamos perante um daqueles casos anómalos ou excepcionais em que o interessado não tenha disposto de oportunidade processual de discutir a inconstitucionalidade antes da aplicação do direito infra-constitucional com o sentido cuja conformidade constitucional questiona.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária, e em condenar o recorrente nas custas com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 15 de Abril de 2004
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida