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Procº nº 212/01 ACÓRDÃO Nº 217/01 PLENÁRIO Consº Vítor Nunes de Almeida
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional:
I RELATÓRIO
1. - O Procurador - Geral Adjunto em exercício neste Tribunal veio, ao abrigo do disposto nos artigos 281º, nº3, da Constituição da República Portuguesa e 82º da Lei do Tribunal Constitucional, requerer a apreciação e declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 201º, nº1, alínea d), do Código de Justiça Militar (CJM), aprovado pelo Decreto-Lei nº 141/77, de 9 de Abril, na parte em que aí se prevê e pune como crime essencialmente militar o furto de bens pertencentes a militares, praticado por outros militares.
Tal norma, na parte que para aqui releva, tem a seguinte redacção:
'Artigo 201º
1. Aquele que, integrado ou ao serviço das forças armadas, fraudulentamente subtrair dinheiro, documentos ou quaisquer objectos pertencentes ou afectos ao serviço das mesmas, ou pertencentes a militares, será condenado: a. .................; b. ; c. ; d. A presídio militar de seis meses a dois anos, se, não excedendo
40.000$00, for superior a 8.000$00; e. [...]'. O pedido formulado fundamenta-se no facto de tal norma ter sido julgada inconstitucional pelos Acórdãos nºs 48/99 e 49/99 (publicados no 'Diário da República', IIª Série, de 29 de Março de 1999) e pela Decisão Sumária nº
354/2000, de 20 de Dezembro, já transitada em julgado.
2. - Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos
54º e 55º, nº3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos.
3. - Apresentado o Memorando pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63º, nº1, da Lei do Tribunal Constitucional, foi o mesmo discutido e definido o sentido da decisão, foi o processo distribuído para elaboração de acórdão.
II - FUNDAMENTOS
4. - De acordo com o que se dispõe no artigo 281º, nº3 da Constituição e no artigo 82º da Lei do Tribunal Constitucional, o processo aplicável à repetição do julgado deve seguir os termos do processo de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade, desencadeando o pedido de apreciação um novo processo de fiscalização, onde se tem de tomar uma nova decisão.
No caso, o pressuposto invocado para a apresentação do pedido constante dos artigos 281º, nº3, e do artigo 82º, acima referidos, tem de considerar-se como verificado. Tais preceitos impõem que a norma, cuja declaração de inconstitucionalidade se requer, tenha sido julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional, 'em três casos concretos', o que sucedeu nos arestos juntos e, bem assim, na decisão sumária também junta com o pedido.
Assim sendo, é manifesto que a circunstância de uma das decisões em que se fundamenta o pedido ser uma decisão sumária em nada obsta ao conhecimento do pedido, nem, consequentemente, à eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma em causa.
Com efeito, a norma do artigo 201º, nº1, alínea d), do Código de Justiça Militar foi julgada inconstitucional nos dois acórdãos invocados (48 e 49/99) e na decisão sumária transitada nº 354/2000.
Assim, importa passar à apreciação do mérito do pedido.
5. - A questão que o Tribunal tem de apreciar e decidir
é a de saber se a subtracção de objectos particulares, pertencentes a um militar, quando efectuada por outro militar deve considerar-se como um crime essencialmente militar.
Tem, desde logo, de definir-se o parâmetro aplicável à questão. E, a este respeito, deve assinalar-se que os acórdãos e a decisão sumária invocados como fundamento do pedido foram proferidos tendo em conta a redacção dos artigos 213º e 215º da Constituição, na versão anterior à que resultou da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro.
Escreveu-se, a este respeito, no Acórdão nº 49/99:
'Com efeito, o artigo 197º desta Lei Constitucional determina que se mantenham transitoriamente em vigor os «tribunais militares, aplicando as disposições legais vigentes» até que seja elaborada a legislação destinada a regulamentar o nº 3 do artigo 211º da Lei Fundamental (versão actual), o que implica necessariamente que a questão de constitucionalidade haja de ser resolvida face à anterior versão da Constituição.
O artigo 215º, nº 1, da CRP (versão de 1989) atribui aos tribunais militares a competência para o julgamento dos crimes essencialmente militares. A Constituição de 1976, ao consagrar os tribunais militares no seu artigo 218º, rompeu, todavia, com o tradicional foro pessoal dos militares, passando a adoptar apenas uma perspectiva de foro material, visando especificamente certo tipo de crimes. Perspectiva esta que seria assim consagrada também no Código de Justiça Militar, que veio a ser publicado em
1977.
Com efeito, desde o Código de Justiça Militar de 1875 que se aceitara entre nós a jurisdição dos tribunais militares sobre todos os militares em função apenas dessa sua qualidade, independentemente da natureza da infracção cometida. E esse foro pessoal manteve-se com o Código de Justiça Militar aprovado pelo Decreto nº 11292, de 26 de Novembro de 1925. Dispunha este, no seu artigo 1º: O presente Código prevê:
1º Os factos que constituem crimes essencialmente militares, por violarem algum dever militar ou por ofenderem a segurança e a disciplina do exército ou da Armada;
2º Os factos que, em razão da qualidade militar dos delinquentes, do lugar ou de outras circunstâncias, tomam o carácter de crimes militares.
§ único. São considerados crimes essencialmente militares, os previstos no Capítulo I do Título II deste Livro.
Contudo, no seu capítulo III, sob a epígrafe «Competência dos tribunais militares territoriais e do tribunal militar de marinha», reconhecia-se a competência genérica dos mesmos «para conhecer dos crimes de qualquer natureza, (...) cometidos por militares ou outras pessoas ao serviço do exército ou da armada» - artigo 363º do mesmo Código -, especificando nos artigos seguintes tal competência, ainda completada por diversa legislação avulsa.
Assim, na vigência daqueles Códigos de 1875 e de 1925, reconhecia-se a existência de dois tipos de crimes militares, ambos cometidos à competência daquela jurisdição especializada: os crimes essencialmente militares, previstos no nº 1 do transcrito artigo 1º, ou seja, as infracções de algum dever militar ou ofensivos da segurança e da disciplina do Exército ou da Armada; e os crimes acidentalmente militares, integrando as infracções previstas no nº 2 da mesma disposição, ou seja, qualificadas como tal em virtude da qualidade militar do agente, do local ou de outras circunstâncias. E, além destes, estavam ainda sujeitos à jurisdição militar os crimes de qualquer natureza, desde que cometidos por militares, nos termos dos artigos 363º a 367º, assim se consagrando o foro pessoal da jurisdição castrense.
Por sua vez, o CJM aprovado pelo Decreto-Lei nº 141/77, de 9 de Abril, passou a dispor, no seu artigo 1º:
1 – O presente Código aplica-se aos crimes essencialmente militares.
2 – Consideram-se crimes essencialmente militares os factos que violem algum dever militar ou ofendam a segurança e a disciplina das forças armadas, bem como os interesses militares da defesa nacional, e que como tal sejam qualificados pela lei militar.
Assim, este Código de 1977 (ainda transitoriamente em vigor, nos termos do disposto no referido artigo 197º da Lei Constitucional nº 1/97), na esteira das opções constitucionais de 1976, eliminou o referido foro pessoal, bem como a referência aos crimes acidentalmente militares.
O Código de Justiça Militar, ainda vigente, passou a incluir na noção de crime essencialmente militar a generalidade dos crimes que eram classificados como acidentalmente militares e acrescentando outros que só em razão do foro pessoal estavam sujeitos a tal jurisdição.
Torna-se, assim, indispensável fazer uma delimitação do conceito de crime essencialmente militar, para apurar se neste conceito se pode integrar a subtracção de objectos particulares pertencentes a militar, quando efectuada por outro militar.
Escreveu-se, a este respeito, no Acórdão nº 49/99, aqui seguido de perto:
A Constituição não define aquele conceito de crimes essencialmente militares. Estando-se perante um conceito pré-constitucional, imbuído de uma concreta determinação, embora se reconheça que o legislador ordinário não ficou obrigado a só considerar como crimes essencialmente militares aqueles que já como tal eram expressamente qualificados pelo Código de 1925, a verdade é que se há-de entender que lhe não era lícito proceder a uma alteração radical do conceito.
O Tribunal Constitucional tem abordado esta questão de determinação do conceito de crime essencialmente militar, salientando-se os Acórdãos nº
347/86 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º volume, págs. 535 e segs.), nº 449/89 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º volume, Tomo II, págs. 1297 e segs.), nº 679/94 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º volume, págs. 365 e segs.), nº 680/94 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º volume, págs. 379 e segs.), e, mais recentemente, nº 271/97 (publicado em Diário da República, I série A, de 15 de Maio de 1997).
Assim, entendeu-se no Acórdão nº 347/86:
«O que, na definição dos crimes essencialmente militares, o legislador não poderá fazer é definir como tais crimes comuns cujo único elemento de conexão com a instituição militar seja a qualidade de militar do seu agente ou qualquer outro elemento acessório (como, por exemplo, o lugar da sua prática), pois que isso seria consagrar o foro pessoal. E, isso, manifestamente,
é que o texto constitucional quis proscrever».
Por sua vez, escreveu-se no Acórdão nº 271/97:
«Seja como for, é consensual a ideia de que o punctum saliens dos
«crimes essencialmente militares» se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser, naturalmente, bens jurídicos militares. Como sublinha J. Figueiredo Dias, «tal como sucede com o direito penal comum, também o direito penal militar substantivo, para passar a prova de fogo da sua legitimação democrática, tem de ser um direito exclusivamente orientado por e para o bem jurídico», pelo que «o direito penal militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, isto é, daquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão» (cf. «Justiça militar», in Colóquio Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional, edição da Assembleia da República, 1995, pp. 25 e 26)».
9. Assim, in casu, haveria que encontrar um interesse militar específico protegido pela incriminação em causa, que transcenda a mera tutela indirecta e mediata da disciplina das Forças Armadas, a qual, no fundo, sempre se encontrará ainda naqueles casos em que a conexão com esse interesse reside apenas na qualidade do agente ou em outros elementos acessórios. Como se escreveu na declaração de voto do ora relator ao citado Acórdão nº 347/86:
«[...] tal implica que não possam ser considerados crimes essencialmente militares aquelas condutas cuja única especificidade relativamente aos crimes comuns consista no facto de se conexionarem, de qualquer forma, com a segurança ou a disciplina das Forças Armadas.
É que, para que uma conduta possa ser qualificada como crime essencialmente militar, e não apenas acidentalmente militar, é necessário algo mais que a referida conexão; é necessário que haja uma ligação estruturalmente indissolúvel entre a razão de ser da punição do acto ilícito e interesses fundamentais da instituição militar ou da defesa nacional.
Se assim não fosse, quase sempre a simples qualidade militar, ou o mero facto de a conduta ter sido praticada num espaço afecto à instituição militar, conduziriam à possibilidade de a lei vir a qualificar qualquer crime comum como essencialmente militar. Com efeito, raras vezes não estaríamos também, em tais casos, perante a violação de um dever militar ou difícil seria, pelo menos, não descortinar, aí, a existência de uma conexão com a segurança ou a disciplina militares».
10. Ora, a norma em causa considera como crimes essencialmente militares condutas como aquela a que se reportam os presentes autos, em que se subtraiu um auto-rádio, que se encontrava instalado num veículo particular – ou seja, um veículo que, embora pertencente a um militar, não se tratava de um veículo militar, nem afecto às Forças Armadas. Não se descortina, pois, aqui mais do que uma mera ligação indirecta ou remota à instituição militar, derivada apenas da qualidade do agente e do ofendido: não foram afectados quaisquer bens militares ou pertencentes à administração militar, pelo que não se descortina assim qualquer conexão específica à instituição militar. A qualidade militar do autor da infracção ou do proprietário do bem subtraído surgem, pois, como simples elementos acidentais do crime.'
Assim sendo, a norma do artigo 201º, nº1, alínea d), do Código de Justiça Militar que prevê e pune o crime de furto por militar a outros militares como crime essencialmente militar, com fundamento em que tal crime assenta na particular qualidade pessoal do agente e não na natureza objectiva e intrinsecamente militar dos valores lesados pela conduta ilícita, que também não afectam interesses respeitantes à defesa nacional, não pode deixar de ser considerada inconstitucional por contrariar a norma do nº1 do artigo 215º da Constituição (Revisão Constitucional de 1989).
III - DECISÃO
Pelos fundamentos que ficam expostos, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação dos artigos 213º e 215º, nº 1, da Constituição (versão de
1989), da norma da alínea d) do nº1 do artigo 201º, do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei nº 141/77, de 9 de Abril, enquanto qualifica como essencialmente militar o crime de furto de bens pertencentes a militares, praticado por outros militares.
Lisboa, 16 de Maio de 2001 Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Messias Bento Artur Maurício Paulo Mota Pinto José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa