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Proc. n.º 711/01 Plenário Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I O pedido e os seus fundamentos
1. Um Grupo de Deputados à Assembleia da República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 281º, n.º 2, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da Lei n.º 5/2001, de 14 de Novembro (Lei de Programação Militar).
Como fundamento do pedido, os requerentes alegaram, em síntese, o seguinte:
a) A Lei de Programação Militar regula matéria prevista no artigo
164º, alínea d), da Constituição. Isto determina-lhe a forma de lei orgânica
(artigo 166º, n.º 2, da Constituição), carecendo de aprovação, na votação final global, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções (artigo
168º, n.º 5, da Constituição).
b) Não obstante o Diário da Assembleia da República (DAR) de 28 de Setembro de 2001 conter a asserção de que a lei “foi aprovada na especialidade e em votação final global”, o que pressupõe que votaram favoravelmente os 116 Deputados necessários para a aprovação de uma lei orgânica, verifica-se por gravação em vídeo que assim não foi, que o Plenário da Assembleia se mostrava ali sem essa maioria. A falsidade, nesta parte, assim objectivamente comprovada, do teor do DAR – que para todos os efeitos, desde já se argui – remove o valor probatório que, por princípio, é assinalado ao seu carácter de documento autêntico, e faz concluir por uma inconstitucionalidade no processo de formação da lei, consistente na não aprovação dela pela maioria constitucionalmente exigida.
c) Está bem de ver que a questão de constitucionalidade da Lei de Programação Militar não tem qualquer precedente naqueloutra que se decidiu no Acórdão n.º 289/92 do Tribunal Constitucional. O que agora se confronta não é o valor probatório de uma acta de Comissão Parlamentar mas o valor probatório do DAR, sem mais. O que se confronta é o valor probatório do DAR com a evidência impostergável de um meio de prova tecnologicamente seguro, de sentido contrário ao que se deriva desse Diário, na busca da verdade material que tem que prevalecer.
d) A verdade que neste caso seguramente se comprova é, pois, a de que a Lei de Programação Militar não foi votada pelo número de Deputados constitucionalmente exigido, assim se configurando uma inconstitucionalidade de procedimento que redunda, afinal, na inexistência jurídica da Lei. É isto que se requer ao Tribunal Constitucional, que seja apreciado e declarado, com força obrigatória geral, em ordem aos artigos 164º, alínea d), 166º, n.º 2 e 168º, n.º
5, da Constituição da República, que foram violados.
e) Não está vedado aos requerentes arguir a falsidade do DAR, pois, apesar de terem estado presentes na sessão em que esse Diário foi aprovado, em momento algum eles reconheceram que tal documento estivesse isento de vícios. Muito pelo contrário: para além de o modo como se processa a aprovação do DAR não consentir qualquer interpretação que vá no sentido de reconhecer esse Diário como isento de vícios, logo no momento em que se suscitou a prova da inexistência do número de Deputados constitucionalmente necessário para a aprovação da lei, foi o problema colocado ao Presidente da República, conforme carta de que se junta cópia, pelo Deputado A., membro do Grupo Parlamentar e Presidente do PSD.
2. Notificado do pedido, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos e juntou: os Diários da Assembleia da República, contendo os trabalhos preparatórios da Lei n.º 5/2001; a súmula da 4.ª reunião da Conferência dos Representantes dos Grupos Parlamentares; o DAR n.º 17, I Série, de 26 de Outubro de 2001, contendo a aprovação do DAR n.º 6; o despacho n.º 111/VIII “relativo à presença do Sr. Deputado B. na sessão plenária de 27 de Setembro” e a rectificação ao DAR n.º 6; e fotocópia dos ofícios n.ºs 266/PAR/2001, de 24 de Outubro, e 1049/GAB/2001, de
26 de Outubro.
3. Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, nos termos do artigo 63º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir de harmonia com o que então se estabeleceu.
II Fundamentação
4. O presente processo tem como objecto a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da Lei n.º 5/2001, de 14 de Novembro (Lei de Programação Militar), por violação das normas constantes dos artigos 164º, alínea d), 166º, n.º 2, e 168º, n.º 5, da Constituição.
A Lei n.º 5/2001 (Lei de Programação Militar) visa, conforme se prevê no seu artigo 1º, incorporar e desenvolver “a aplicação de programas de investimento público das Forças Armadas relativos a forças, equipamento, armamento e infra-estruturas”, bem como incorporar “programas de desactivação de equipamentos, armamento, munições e infra-estruturas e de investigação e desenvolvimento (I&D)”.
O artigo 17º da referida Lei, sob a epígrafe “norma transitória”, prevê que “a primeira revisão da Lei de Programação Militar deve ocorrer no ano de 2002, devendo produzir os seus efeitos a partir do ano de 2003”.
Sucede, porém, que a Assembleia da República veio a aprovar a Lei n.º 1/2003, de 13 de Maio, que altera a Lei de Programação Militar.
Embora a Lei n.º 1/2003, de 13 de Maio, não revogue expressamente a Lei n.º 5/2001, de 14 de Novembro, verifica-se que o objecto e conteúdo de ambas as leis são coincidentes.
Tal conclusão retira-se, desde logo, do artigo 1º da Lei n.º 1/2003, que define nos seguintes termos a finalidade da lei em causa:
“Artigo 1º Finalidade
1. A Lei de Programação Militar incorpora e desenvolve a aplicação de programas de investimento público das Forças Armadas relativos a forças, equipamento, armamento e infra-estruturas e é elaborada e executada de acordo com o regime definido na presente lei.
2. A Lei de Programação Militar incorpora ainda programas de desactivação de equipamentos, armamento, munições e infra-estruturas e de investigação e desenvolvimento (I&D).”.
A coincidência do conteúdo dos dois diplomas reflecte-se na estrutura do respectivo articulado, existindo uma correspondência evidente entre as normas da Lei n.º 5/2001 (distribuídas por dezoito artigos) e as normas da Lei n.º 1/2003 (contidas em vinte artigos).
De acordo com o exposto, deverá considerar-se que da aprovação da Lei n.º 1/2003 resulta a revogação tácita da Lei n.º 5/2001, adveniente da
“circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior” (vide o artigo 7º, n.º 2, do Código Civil).
5. Em face da revogação operada, importa agora averiguar se existe utilidade no conhecimento do mérito do pedido, uma vez que o “princípio do pedido”, previsto no artigo 51º, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional, impede a “convolação” do objecto do processo e, com isso, a possibilidade de o Tribunal apreciar a constitucionalidade da nova lei (Lei n.º 1/2003). Vejam-se, a este propósito, por exemplo, os seguintes Acórdãos deste Tribunal: n.º 57/95, publicado no DR, II Série, 12 de Abril de 1995, n.º 671/99, publicado no DR, II Série, de 10 de Fevereiro de 2000, n.º 140/00, publicado no DR, II Série, de 26 de Outubro de 2000, e n.º 531/00, publicado no DR, II Série, de 9 de Janeiro de
2001.
De todo o modo, a “convolação” não teria sentido no caso sub judice, uma vez que o vício que fundamenta o presente pedido de declaração de inconstitucionalidade diz apenas respeito ao procedimento de aprovação da Lei n.º 5/2001, não sendo susceptível de afectar a Lei n.º 1/2003.
6. De acordo com disposto no artigo 282º, n.º 1, da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma em causa, “o que justificará que se conheça de pedidos relativos a normas revogadas sempre que tal se mostre indispensável para corrigir ou eliminar os efeitos entretanto produzidos por tais normas durante o período da sua vigência” (veja-se o Acórdão n.º 531/00, já citado).
Constitui entendimento reiterado deste Tribunal que não existe interesse jurídico relevante no conhecimento do pedido quando, no caso de uma eventual declaração de inconstitucionalidade, os seus efeitos sempre viriam a ser limitados, por motivos de segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, por via do disposto no artigo 282º, n.º
4, da Constituição.
Recorde-se, a este propósito, o que o Tribunal disse no Acórdão n.º
142/02, publicado no DR, II Série, de 15 de Maio de 2002:
“[...] Como o Tribunal tem repetidamente afirmado, a revogação ou caducidade de uma norma não obsta, por si só, ao conhecimento do pedido de apreciação abstracta da sua constitucionalidade. Mas, como é manifestamente o caso, quando o Tribunal antecipar que, caso decidisse no sentido da inconstitucionalidade, haveria de limitar os efeitos de tal decisão (por razões de segurança jurídica e interesse público), essa conclusão tornar-se-á forçosa, pois a eventual declaração de inconstitucionalidade afigurar-se-ia então inútil: por um lado, porque não poderia valer para o futuro (pro futuro), visto as normas impugnadas já não estarem em vigor; por outro lado, porque não poderia valer para o passado (pro praeterito) já que o Tribunal sempre iria limitar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade cfr., sobre este ponto, os Acórdãos n.ºs 168/88, 238/88,
319/89, 415/89, 73/90, 135/90, 465/91, 467/91, 214/92, 308/93, 398/93, 804/93,
186/94, 57/95, 121/95, 497/97 e 625/97 ou, mais recentemente, os Acórdãos n.ºs
31/99, 54/99, 601/99, 671/99, 255/00, 270/00, 338/00 e 376/01.
[...] No Acórdão n.º 376/01, a questão prendia-se com uma norma constante do diploma de execução orçamental de 1992, cujo conteúdo era repetido em todos os diplomas de execução orçamental posteriores, até 1999. E o Tribunal afirmou que essa norma de 1992 se devia «considerar como tendo caducado ou como tendo sido revogada, verificando-se, quanto a ela, as razões para o não conhecimento do pedido ... por inutilidade superveniente». Ora, no caso, há apenas que reiterar o que pacificamente o Tribunal vem decidindo sobre questões semelhantes ou idênticas”.
À luz desta orientação jurisprudencial, não deve conhecer-se do pedido formulado no presente processo, em razão da sua inutilidade superveniente.
III Decisão
7. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento, por inutilidade superveniente, do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da Lei n.º 5/2001, de 14 de Novembro (Lei de Programação Militar).
Lisboa, 16 de Setembro de 2003
Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Carlos Pamplona de Oliveira Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida