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Proc. n.º 78/03 TC - 1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - Nos autos de recurso em que é recorrente A ..., com os sinais dos autos, foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 – A ...o, com os sinais dos autos, interpõe recurso para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 253 e segs., pedindo a apreciação da
(in)constitucionalidade das normas contidas nos seguintes grupos de preceitos:
- artigos 33º, 34º, n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ),
10º, n.ºs 2, 3 e 4, 11º, n.º 2 e 12º, n.º 2 do Regulamento das Inspecções Judiciais (RIJ);
- artigos 123º, n.ºs 1, alínea d) e 2, 124º, n.º 1, alíneas a) e c) e
125º do Código do Procedimento Administrativo (CPA);
- artigos 33º, 34º, n.º 1, 37º, n.º 2 e 151º, alínea d) do EMJ, 15º, n.º 7, parte final e 20º do RIJ.
Relativamente ao primeiro grupo de normas, o recorrente põe em causa a interpretação que lhes é dada no acórdão recorrido no sentido de ser dada 'total prevalência' ao factor produtividade na avaliação do trabalho dos juízes, o que violaria o artigo 202º, n.º 1 da Constituição.
Quanto ao segundo grupo de normas, é posta em causa uma interpretação no sentido de se entender como fazendo parte de um acto administrativo a reprodução mecânica que nele é feito de outras peças do procedimento, mesmo na parte em que não está assumida como própria, o que violaria o disposto nos artigos 20º, n.º 1, 203º, 268º, n.ºs 3 e 4 da Constituição.
Finalmente, quanto ao terceiro grupo de normas, o recorrente questiona uma interpretação no sentido de se admitir que o acto administrativo que classificou o recorrente se não pronuncie, expressa e fundamentadamente, sobre a aceitação, ou não, das alegações feitas pelo recorrente, o que violaria o disposto nos artigos 20º n.º 1 e 268º, n.º 4 da CRP, por afastar a tutela jurisdicional efectiva dos direitos do recorrente.
O recurso foi admitido no tribunal 'a quo', o que não vincula o Tribunal Constitucional nos termos do artigo 76º n.º 3 da LTC.
Cumpre decidir.
2 - O recurso previsto no artigo 70º, n.º 1 alínea b) da LTC tem como pressuposto a aplicação na decisão recorrida da norma (ou de uma sua interpretação) que o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional 'sub specie constitutionis'.
Por outro lado, sendo o recurso de constitucionalidade um recurso de normas, não é dele objecto idóneo a decisão que as aplica; por outras palavras, a impugnação deve dirigir-se à interpretação normativa (quando é esta que está em causa, como é o caso) e não à subsunção das normas aos factos, ou seja, ao momento aplicativo do Direito.
Importa, assim, apurar se, relativamente a todos ou alguns dos grupos de normas (interpretações normativas) que o recorrente elege como objecto da sua impugnação, o acórdão recorrido acolheu a apontada interpretação.
3 - Vejamos o primeiro grupo de normas, onde o recorrente questiona, em termos de conformidade constitucional, uma interpretação no sentido de ser dada
'total prevalência ao factor 'produtividade' na avaliação do trabalho dos juízes'.
Na parte que interessa, o acórdão recorrido define os limites dos poderes de cognição do Tribunal no que concerne ao 'juízo sobre o que constitui um volume de serviço acessível ou exigível, os critérios de avaliação definidos e explicitados no artº 10º do RIJ, a utilização ou cumprimento que seja dado desses critérios (...)'; considerando que 'eles [em rigor 'ele', juízo] têm um conteúdo essencialmente técnico' entende que 'não podem ser contrariados em sede de impugnação contenciosa, onde só cabem juízos de pura legalidade (...)', com ressalva 'de erro manifesto de avaliação, ostensiva ilegalidade dos critérios ou uso grosseiramente incorrecto que deles tenha sido feito'.
Com este enquadramento ('Nesta perspectiva das coisas') diz-se, no acórdão recorrido, não haver qualquer motivo 'para censurar a intensa focagem a que a inspecção e a deliberação recorrida submeteram a componente de adaptação ao serviço e o elevado peso que lhe atribuíram na ponderação dos diferentes factores classificativos'.(sublinhados nossos).
E acrescenta-se:
'A adaptação do juiz ao serviço. e concretamente a sua produtividade e o seu método, factores que preocuparam especialmente a inspecção, constituem elementos indispensáveis ao bom êxito do serviço de justiça. Justiça tardia é má justiça, ainda que tecnicamente perfeita.
No caso do recorrente, e com relativa ressalva da jurisdição de menores e dos processos cautelares, o enorme volume de processos parados ou à espera de uma intervenção processualmente relevante atinge as raias da denegação de justiça.
Num tal panorama, não é só a adaptação ao serviço que fica em cheque; é a própria análise da preparação técnica que fica sem base suficiente.
As condições exigíveis para o exercício de uma função tão fundamental ao Estado como é a de julgar só ficam satisfeitas se o juiz atinge os mínimos nos três aspectos considerados: capacidade humana, adaptação, cultura jurídica. Um défice acentuado numa que seja de tais componentes não pode deixar de significar uma avaliação negativa, de acordo com o artº 13º n.º 1 a) RIJ'
(sublinhados nossos)..
Do que se deixou transcrito resulta, desde logo, um condicionamento relevante ao juízo que é feito pelo acórdão recorrido: os limites do conhecimento do vício alegado, que se definem pelo excesso.
Ou seja, o que o acórdão recorrido avalia é se se configura como erro manifesto, ostensiva ilegalidade ou uso grosseiramente incorrecto a relevância que é dada ao factor 'adaptação do juiz ao serviço'.
Isto significa que os termos absolutos com que o recorrente define a interpretação normativa questionada não correspondem ao que se decide no acórdão recorrido: uma coisa é dizer que é legal aquela relevância, outra a de afirmar que a que é dada na deliberação impugnada não constitui erro manifesto ou ostensiva ilegalidade.
Por outro lado, mesmo nesta perspectiva, não pode entender-se que o acórdão recorrido tenha dado 'total prevalência' à 'produtividade' ou á
'celeridade' do juiz.
Na verdade, o factor considerado é o da adaptação ao serviço nos aspectos da produtividade, ligada ao método de trabalho do juiz e em função do número de decisões 'de fundo' que ele proferiu.
Ou seja, não é posto em causa o número de processos que o juiz (não) despachou; decisiva é a circunstância de o juiz, por razão de um método errado ou inadequado, ter um 'enorme volume de processos parados ou à espera de uma intervenção processualmente relevante'.
Finalmente, não pode, igualmente, dizer-se que as normas em causa tenham sido interpretadas em termos de dar 'total prevalência' ao factor produtividade.
Com efeito, o que se recolhe do texto do acórdão é que a inspecção e a deliberação recorrida fizeram uma 'intensa focagem' da componente de 'adaptação ao serviço' e lhe atribuíram uma 'elevado peso (...) na ponderação dos diferentes factores classificativos' e que 'a adaptação do juiz ao serviço, e, concretamente, a sua produtividade e o seu método [foram] factores que preocuparam especialmente a inspecção' (sublinhados nossos).
Em suma, pois, o acórdão recorrido não aplicou as normas em causa com a interpretação que o recorrente lhe atribui, pelo que se não verifica um dos pressuposto do recurso interposto.
4 -Analisemos, de seguida, o segundo grupo de normas.
O acórdão recorrido aprecia a questão da fundamentação da deliberação então impugnada, dizendo:
'(...) a deliberação recorrida cumpre com substancial largueza o não tão ambicioso projecto legal, pensado para uma mais modesta 'sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão'.
A deliberação recorrida versa, com efeito, minuciosa e exaustivamente, todos os aspectos da função jurisdicional do recorrente, no período sob inspecção, desde a presidência do tribunal até à intervenção em tribunais colectivos e à esporádica acumulação com outros juízos, passando, naturalmente, pela praticamente esgotante análise e apreciação dos processos pendentes e arquivados, quer no aspecto quantitativo que no da qualidade das diversas intervenções neles produzidas pelo recorrente.
Tanto no que toca à componente factual como à estritamente jurídica, a deliberação baseia-se, sem margem para qualquer dúvida razoável, nos relatórios inicial e complementar da inspecção, e nas correcções pouco significativas que, neles, o próprio inspector judicial aceitou introduzir, na sequência do exercício do direito de resposta do recorrente (a que reporta o n.º 7 do artº
15º do RIJ99).
Poderia a entidade recorrida ter, simplesmente, remetido para os termos dos relatórios, numa mera declaração de concordância com o respectivo teor, como lhe facultava o citado n.º 1, do artº 125º, do CPA, já que é óbvia a sua total concordância com o trabalho, o estudo e a proposta do inspector judicial.
Foi, porém, mais longe, elaborando sobre os dados de facto fornecidos pela inspecção, que significativamente, subordinou à epígrafe II - Factores de avaliação, confrontando com eles, agora sob epígrafe III - Classificação a atribuir, a análise factual e jurídica efectuada pelo inspector judicial, para concluir em sintonia com a proposta final.
Como se pode ler dos dois relatórios de inspecção (o inicial e o complementar) o inspector judicial foi especialmente cuidadoso e minucioso na fundamentação, de facto e de direito, das referências desfavoráveis, chegando a juntar, até, cópias das peças processuais pertinentes.
Não se ficou por simples adjectivação; concretizou, pormenorizou, documentou e comentou.
A deliberação sob recurso, depois, assumiu tais referências, adoptando-as como base da deliberação de aprovação da proposta classificativa, aditando, naturalmente, os considerandos próprios.' (sublinhados nossos)
Ora, do trecho que se acabou de transcrever - particularmente dos passos sublinhados - não resulta qualquer interpretação normativa no sentido apontado pelo recorrente.
Fica bem claro, no acórdão recorrido, que se interpretou a deliberação então impugnada no sentido de aí se ter acolhido, 'sem margem para qualquer dúvida razoável' o relatório do inspector judicial, não competindo ao Tribunal Constitucional, no âmbito dos seus poderes de cognição, apreciar se um tal juízo
é, ou não, correcto, bem como se, no caso, o acto administrativo adoptou, expressamente, como fundamentação sua, o que consta daquele relatório. ou se fez dele apenas uma reprodução mecânica.
O que se não vislumbra no acórdão recorrido é qualquer juízo interpretativo no sentido da admissibilidade de uma fundamentação remissiva sem que a remissão seja expressa.
Não pode, assim, conhecer-se do recurso na parte em que se pretende a apreciação da constitucionalidade do segundo grupo de normas com base numa interpretação que não se reconhece no acórdão recorrido.
5 - Finalmente, apreciemos o terceiro complexo normativo, onde o recorrente questiona uma interpretação segundo a qual não é exigível que a deliberação impugnada se pronuncie, detalhada e fundamentamente, sobre o que o juiz inspeccionado alegou no exercício do seu direito de resposta.
Depois de considerar 'incompreensível' a ideia do recorrente de fundamentar o recurso numa pretensa violação do artº 11º n.º 1 do RIJ escreveu-se, a propósito, no acórdão recorrido:
'Como também o é a de que lhe não foi possibilitado o direito de resposta (aquilo a que chama de desrespeito substantivo do direito de resposta), sabendo-se, como se sabe que lhe foi dado conhecimento, oportunamente, dos relatórios de inspecção, para usar, precisamente, daquele direito, que, aliás, exerceu, de ambas as vezes.
E tais respostas foram expressamente consideradas na deliberação recorrida, até especificadamente condensadas e, depois, discutidas nas partes factuais e argumentativas consideradas de relevo para a classificação a atribuir, tomando em conta, também , a informação final do inspector judicial.'
(sublinhados nossos).
Uma vez mais, não compete ao Tribunal Constitucional apreciar se, no caso, foi, ou não, dada resposta, na deliberação impugnada, às questões levantadas pelo recorrente nas respostas que formulou aos relatórios elaborados pelo inspector judicial.
O Tribunal tem que assentar no que, a este propósito, o STJ decidiu, competindo-lhe, apenas, verificar - na fase em que se pronuncia sobre o preenchimento dos pressupostos do recurso interposto - se, para essa decisão, acolheu a interpretação questionada pelo recorrente.
Ora, como igualmente resulta do trecho transcrito, não se vislumbra tal interpretação, sendo aqui, e desde logo, decisiva para este entendimento o facto de o acórdão recorrido ter reconhecido que a deliberação impugnada respondeu às objecções do juiz inspeccionado.
6 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs.'
2 - Notificado desta decisão, o recorrente vem dela reclamar para a conferência, dizendo, em síntese, que:
- não definiu 'em termos absolutos' a interpretação normativa questionada (primeiro grupo de normas), estando em causa o predomínio dado ao factor 'produtividade' em detrimento de outros factores referidos do artigo 11º n.º 2 do Regulamento das Inspecções Judiciais de 1999, com referência aos n.ºs 2 a 4 do artigo 10º do mesmo Regulamento;
- o STJ acolheu um juízo interpretativo no sentido da admissibilidade da fundamentação remissiva sem que a remissão seja expressa (segundo grupo de normas);
- o STJ sufragou o entendimento do Conselho Superior da Magistratura quanto ao facto de este órgão não ter referido se aceitou ou não, e por que razão, a resposta dada pelo recorrente (terceiro grupo de normas).
O órgão recorrido não respondeu.
Cumpre decidir.
3 - A reclamação não procede, mantendo o reclamante um discurso argumentativo que não atende à específica competência deste Tribunal e aos seus poderes de cognição.
O Tribunal Constitucional julga a constitucionalidade de normas, aqui se incluindo a interpretação que delas fazem os tribunais recorridos, sem que por esta via se possa controlar o mérito das decisões impugnadas no estrito plano do direito infraconstitucional.
Neste entendimento - que se tem por firme e incontestável - as interpretações que os recorrentes elegem como objecto do recurso de constitucionalidade têm que corresponder, com fidelidade, às que foram feitas nas decisões recorridas.
Nesta medida, relativamente ao primeiro grupo de normas, a decisão reclamada fundou o seu juízo em três ordens de razões:
Em primeiro lugar, na falta de correspondência entre o que o recorrente dissera, no requerimento de interposição de recurso, sobre a interpretação normativa dos preceitos em causa, no sentido de ser dada 'total prevalência ao factor 'produtividade' na avaliação do trabalho dos juízes' - e, por isso, se referiu 'os termos absolutos' com que o recorrente definia a interpretação normativa questionada - e o que consta do acórdão recorrido.
E, desde logo, se salientou, que o acórdão recorrido ponderara o vício arguido no que concerne à relevância dada ao factor 'adaptação do juiz ao serviço', apenas na perspectiva de se tratar ou não de um 'erro manifesto, ostensiva ilegalidade ou uso grosseiramente incorrecto'; e isto por se ter entendido que se tratava de um juízo de conteúdo essencialmente técnico, com o inerente condicionamento dos poderes de cognição do Tribunal em sede de impugnação contenciosa.
Logo por aí, a interpretação feita pelo recorrente não se ajustava ao decidido.
Sobre este ponto concreto, o reclamante nada diz e ele era - e é - bastante para se não conhecer, nesta parte, do objecto do recurso.
Mas, acrescentou-se na mesma decisão que, igualmente, se não poderia entender que o acórdão recorrido tivesse dado 'total prevalência' à
'produtividade' do juiz, pois o factor de avaliação considerado fora a
'adaptação ao serviço', nos aspectos da produtividade 'ligada ao método de trabalho do juiz e em função do número de decisões 'de fundo' que ele proferiu'.
E, finalmente, pelos trechos que se transcreveram do acórdão recorrido, se concluía que se não tratava de uma 'total prevalência', mas apenas uma 'intensa focagem' ou um 'elevado peso' daquele factor.
Ora a justeza de tais juízos da decisão sumária não foi abalada pela reclamação e correspondem ao que se decidiu no acórdão recorrido.
No que respeita ao segundo grupo de normas, também se não reconhece, como se entendeu na decisão reclamada, que o acórdão do STJ tivesse formulado qualquer juízo interpretativo no sentido da admissibilidade de uma fundamentação remissiva sem que a remissão seja expressa, uma vez que nesse aresto se considera que a deliberação então impugnada, podendo limitar-se a uma remissão para os termos do relatório, fora 'mais longe', assumindo ela própria esses mesmos termos (o que significa que, para o acórdão recorrido, se não está perante uma fundamentação por remissão), não competindo ao Tribunal Constitucional sindicar o acerto desse juízo.
Finalmente, quanto ao terceiro grupo de normas, considerando que o acórdão recorrido julgara que a deliberação impugnada tinha tomado em conta as respostas dadas, pelo a decisão sumária não vislumbrou naquele acórdão qualquer interpretação normativa (atribuída pelo recorrente e cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada) no sentido de não ser exigível que tal deliberação se pronunciasse, detalhada e pormenorizadamente, sobre o que o juiz inspeccionado alegara no exercício do seu direito de resposta.
Nada na reclamação infirma - nem poderia infirmar - este entendimento, atendendo a que resulta claramente do acórdão recorrido um juízo - afinal o que, em direitas contas, o reclamante impugna - no sentido de a deliberação contenciosamente recorrida ter ponderado o teor das respostas dadas.
4 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante fixando-se as custas em 10 Ucs.
Lisboa, 2 de Julho de 2003 Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida