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Proc. n.º 235.03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que figuram como recorrente o Ministério Público e como recorrido A., foi declarada a utilidade pública da expropriação, com vista à construção da Escola Secundária n.º ---- de B., de uma parcela de terreno, integrada na Reserva Agrícola Nacional, pertencente ao ora recorrido. Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 5 de Dezembro de 2002, foi recusada a aplicação do artigo 24º, n.º 5, do Código das Expropriações, por inconstitucional, tendo a parcela expropriada sido classificada e avaliada como “solo apto para a construção” e não como “solo para outros fins”. A decisão assentou, na parte ora relevante, na seguinte fundamentação:
“[...] De todo o modo, tratando-se de terreno integrado na RAN, a consideração de que se trata de solo apto para construção nos termos do art. 24º/1-a) do CE
91, resulta não de confinar com arruamentos – o requisito bastante do acesso rodoviário determinado pelo nº 2-a) do preceito citado (Osvaldo Gomes, Expropriações por Utilidade Pública, 187; ac.s desta Relação de 20.11.97 e
4.5.98, CJ XXII, 5, 98 e XXIII, 3, 179, respectivamente) - mas de nele ter sido construída uma escola, para o que foi desafectado daquele destino agrícola. Em princípio, os terrenos integrados na RAN estão fora do comércio dos solos para construção, da especulação fundiária. Alude-se ao princípio da vinculação situacional da propriedade do solo, ligado à concreta situação e características intrínsecas de determinados terrenos, que está na origem da sua integração na RAN e na REN - Alves Correia, Plano Urbanístico e Princípio de Igualdade, 517. A inclusão de um terreno na RAN ou na REN não exclui, definitivamente a potencialidade edificativa, quer porque a lei prevê excepções ao regime proibitivo da construção, quer porque a própria Administração pode alterar as delimitações daquelas reservas, com a consequente expansão do direito de propriedade - Osvaldo Gomes, obra citada, 243, ac.s desta Relação de 12.12.89 e
7.2.91, CJ XIV, 5,205 e XVI, 1, 246, respectivamente. Aliás, foi, precisamente o que aconteceu, em ordem a poder construir-se a escola. De qualquer forma, como refere o recorrente e se diz na sentença apelada, a mera exclusão de determinado terreno da RAN para nele se construir, não permite que a sua valorização seja feita escamoteando essa realidade, por isso violar os princípios da justiça e da proporcionalidade, sendo, consequentemente, inconstitucional a interpretação restritiva do art. 24.º/5 do CE 91, no sentido de excluir da definição de solos aptos para construção os incluídos na RAN, mas expropriados, precisamente, para construção.
[...].”
2. O Ministério Público, “nos termos dos artigos 280º n.º 1, alíneas a) e n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, 70º n.º 1, alínea a) e 72º n.ºs 1, alíneas a) e 3 da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro”, interpôs recurso obrigatório desta decisão, através de um requerimento com o seguinte teor:
“[...] I. Com efeito, o acórdão recorrido recusou aplicar a norma do artigo 24 n.º 5 do Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei 438/91 de 9.11, com o fundamento que tal norma é inconstitucional, quando interpretada de forma a excluir da classificação de 'solo apto para construção' os solos integrados na RAN expropriados com a finalidade de neles edificar para fins diferentes da utilidade publica agrícola. O acórdão recorrido (implicitamente) considera que aplicar aquele regime se traduziria numa violação dos princípios consagrados nos artigos 13°, 62 n.º 2 e
266 n.º 2 da Constituição (princípios da igualdade, da justa indemnização em caso de expropriação e do dever da Administração de respeitar os princípios da igualdade da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé.
[...]”
3. Notificadas as partes para alegarem, concluiu o Ministério Público da seguinte forma as suas alegações:
“Nestes termos e pelo exposto conclui-se:
1° - É inconstitucional a norma constante do artigo 24°, n° 5, do Código de Expropriações de 1991, quando interpretada em termos de excluir tabelarmente da classificação de 'solo apto para construção' os solos integrados na RAN e dela desanexados e expropriados, com a finalidade de neles se edificar uma infra-estrutura urbana (construção de escola secundária), diferente da utilidade pública agrícola, revelando a natureza de tal edificação e a matéria de facto e conclusões das instâncias a existência de uma “muito próxima ou efectiva potencialidade edificativa”.
2° - Na verdade, neste específico circunstancialismo, ocorre uma estreita analogia com a situação versada no Acórdão n° 267/97 , cuja orientação se deverá, consequentemente, seguir.
3° Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado pela decisão recorrida.”
4. O recorrido, por seu turno, concluiu assim as suas contra-alegações:
“CONCLUSÕES: I - O presente recurso tem por objecto a fiscalização concreta da constitucionalidade da norma do art.º. 24°., nº.5, do Código das Expropriações, consagrada no Decreto- Lei 438/91 , de 9/11.
II - Atentos os princípios fundamentais, constitucionalmente consagrados nos art.ºs. 13°. e 18° da CRP, da igualdade e proporcionalidade, impõe-se, tal como decidiram as instâncias e este Tribunal no acórdão 267/97 , seja declarada a inconstitucionalidade em concreto da norma do n.º 5 do art.º. 24°. do Código das Expropriações de 1991, enquanto interpretada por forma a excluir da classificação como “solo apto para construção' os solos integrados na RAN expropriados justamente com a finalidade de neles se edificar para fim diferente da utilidade pública agrícola, designadamente para neles se edificar construção urbana - escola secundária - da qual resulta desde logo, pelas suas características, reconhecida a aptidão e potencialidade edificativa do solo. III - A restrição do direito real e a transmissão da propriedade ao domínio público conferem o direito ao pagamento de justa indemnização, sendo que a mesma deve respeitar os princípios materiais da igualdade e proporcionalidade. IV - A correcta proporção entre a privação da propriedade e a indemnização é obtida pela correspondência que entre esta e o valor real e corrente no mercado do bem expropriado. V - É preponderante na avaliação do valor real do bem expropriado a classificação do solo atento o seu fim, sendo facto público e notório que o solo apto para construção atinge valores consideravelmente superiores ao solo apto para outros fins, nomeadamente agrícolas. VI - De entre a área expropriada ao Recorrido, parte da mesma (l5.1l3m2) - cujo fim se destinou a implantação da escola Secundária de B., encontrava-se classificada no PDM como área RAN. VII- Considerando a previsão da norma do nº.5 do artº. 24°. do Cód. das Expropriações dir-se-ia que aquela parcela não poderia ser classificada, para efeitos de determinação do valor da indemnização, como solo apto para construção, uma vez que, por imposição legal, não poderia ser afectada a construção. VIII - Porém, previamente à declaração de utilidade pública da expropriação, a referida parcela foi desafectada da reserva agrícola, passando a possuir aptidão para edificações urbanas, nomeadamente para construção da Escola Secundária nela já implantada. IX - Nenhum regulamento ou disposição legal impedia, pois, naquela data que a parcela de terreno em causa fosse utilizada para construção, pelo que não poderia deixar a mesma de classificar-se como solo apto para construção. X – A aplicação ao caso concreto da previsão da norma do n.º 5 do art.º. 24º. Do Código das Expropriações, determinaria manifesta desproporção entre o benefício da comunidade pela expropriação do solo e os sacrifícios impostos ao expropriado com a sua privação. XI – Neste sentido, conclui este Tribunal ser “inconstitucional a norma do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações vigente, enquanto interpretada por forma a excluir da classificação de “solo apto para construção” os solos integrados na RAN expropriados justamente com a finalidade de neles se edificar para fins diferentes de utilidade pública agrícola” – Cfr. Ac. Tribunal Constitucional n.º. 267/97. XII – Porque a expropriação destinou-se à utilização do solo para construção urbana, não deve, atentos os princípios da igualdade e proporcionalidade, classificar-se como solo apto para outros fins o solo anteriormente integrado na RAN. XIII - De outro modo, permitir-se-ia à entidade expropriante adquirir por valor irrisório, não consentâneo com o benefício – construção da escola - que desse terreno resulta para o interesse público. XIV – Em contrapartida, ao Recorrido, restringido no seu direito de uso do solo como “expropriado do plano”, ser-lhe-ia imposto novo sacrifício – a transferência da propriedade – sem a devida e proporcional compensação face ao novo destino da propriedade. XV – Acresce salientar que, conforme conclui o Recorrente, a aplicação da disposição legal não seria inconstitucional se o fim da expropriação fosse a implantação de infra-estruturas diferentes da edificação ou a construção de edificações que, pela sua própria natureza, diminuíssem a potencialidade edificativa do solo, pois que, nestes casos não há que atender a qualquer legítima expectativa do proprietário – o solo anteriormente integrado na RAN, não via, assim, por meio da sua desafectação, reconhecida aptidão edificativa. XVI - No caso sub iudice é manifesto que a construção a cujo fim se destinou a expropriação – construção de escola secundária – potencia a aptidão edificativa da propriedade para a construção urbana. XVII – “Se a expropriação é justamente para edificação de prédio urbano, então mostra-se que a integração na RAN não poderia excluir a classificação como “solo apto para construção” para efeitos de indemnização, pois a potencialidade edificativa do prédio é justamente confirmada pela utilização dada pelo expropriante – para mais de o prédio foi anteriormente desanexado da RAN, como acontecia na situação do Acórdão n.º 267/97” – e se repete na situação dos presentes autos. XVIII - De resto, saliente-se que, conforme resulta da prova produzida nos autos, a parcela de terreno em causa possuía já, na data em que foi declarada a utilidade pública da expropriação, características próprias dos aglomerados urbanos e encontrava-se apta a adquirir as demais, pelo que a sua classificação como solo apto para construção resulta, desde logo, da alínea c) do art.º 24º do Código das Expropriações. XIX - Face do exposto, porque a parcela de terreno com a área de l5.113m2, expropriada ao recorrido foi, previamente à declaração de utilidade pública, desafectada da RAN por forma a permitir uma construção urbana - escola secundária - a qual, por si só, determina a sua aptidão edificativa, impõe-se, por forma a respeitar o princípio constitucional da justa indemnização, que no seu cômputo seja considerado o ius aedificandi, ou seja, essa manifesta potencialidade edificativa do solo. XX - Assim, deve ser declarada a inconstitucionalidade da norma do n.º 5 do art.º. 24°. do Código das Expropriações de 1991, enquanto interpretada por forma a excluir da classificação como 'solo apto para construção' os solos integrados na RAN expropriados justamente com a finalidade de neles se edificar para fim diferente da utilidade pública agrícola, designadamente para neles se edificar construção urbana – escola secundária – da qual resulta desde logo, pelas suas características, reconhecida a aptidão e potencialidade edificativa do solo. XXI - Nesta conformidade, decidiu correctamente o Tribunal da Relação do Porto ao recusar a aplicação ao caso concreto da citada norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, pelo que a decisão proferida, respeitando integralmente os princípios materiais da justiça e legalidade, deve manter-se integralmente. Termos em que, considerando a analogia entre o caso sub iudice e aquele que foi objecto de decisão no âmbito do Acórdão n° 267/97 , deve confirmar-se integralmente o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal da Relação do Porto.'
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
5. A decisão recorrida considerou inconstitucional e, consequentemente, não aplicou a norma constante do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações de
1991, por considerar inconstitucional “a interpretação restritiva do art. 24.º/5 do CE 91, no sentido de excluir da definição de solos aptos para, construção os incluídos na RAN, mas expropriados, precisamente, para construção”. Implicitamente, parece remeter a fundamentação da inconstitucionalidade para os motivos constantes do Acórdão n.º 267/97, de 19 de Março de 1997, deste Tribunal Constitucional (publicado no Diário da República, II. Série, de 21 de Maio de
1997), o qual julgara inconstitucional aquela norma 'enquanto interpretada por forma a excluir da classificação de 'solo apto para a construção' os solos integrados na RAN expropriados justamente com a finalidade de neles se edificar para fins diferentes de utilidade pública agrícola', o que se traduziria numa violação dos princípios consagrados nos artigos 13°, 62 n.º 2 e 266 n.º 2 da Constituição (princípios da igualdade, da justa indemnização em caso de expropriação e do dever da Administração de respeitar os princípios da igualdade da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé).
O artigo 24ºdo Código das Expropriações (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro; e entretanto já revogado pelo artigo 3º da Lei n.º 168/99, de
18 de Setembro, que aprovou um novo Código das Expropriações), depois de, no seu n.º 1, estabelecer que, para efeito do cálculo da indemnização por expropriação, o solo se classifica em 'solo apto para a construção” e 'solo para outros fins”, indica, no seu n.º 2, o que considera 'solo apto para construção', estabelecendo no n.º 3 o que se considera equiparado a 'solo apto para a construção' e no n.º
4 o que é 'solo para outros fins'. De acordo com o disposto no n.º 5 do artigo
24º (versão de 1991), em causa no presente processo, 'para efeitos de aplicação do presente Código é equiparado a solo para outros fins o solo que, por lei ou regulamento, não possa ser utilizado na construção' (norma entretanto desaparecida do novo Código das Expropriações de 1999). Ora, no presente caso, foi questionada a conformidade constitucional daquela norma, se interpretada “no sentido de excluir da definição de solos aptos para, construção os incluídos na RAN, mas expropriados, precisamente, para construção”, no caso concreto, de uma escola.
6. O Tribunal Constitucional teve oportunidade, ainda muito recentemente
(Acórdão n.º 333/2003, disponível na página Internet do Tribunal Constitucional, no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm) de se debruçar sobre esta questão de constitucionalidade, numa situação em que também estava em causa a expropriação, para construção de uma escola, de um terreno integrado na reserva agrícola nacional. Afirmou-se então, após se ter concluído que as normas contidas nos restantes números do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991 não tinham sido julgadas inconstitucionais:
“(...)Já a norma contida no n.º 5 do citado artigo 24º, agora em causa, foi julgada inconstitucional, 'enquanto interpretada por forma a excluir da classificação de solo apto para a construção os solos integrados na RAN expropriados justamente com a finalidade de neles se edificar para fins diferentes de utilidade pública agrícola', pelo Acórdão n.º 267/97 (publicado no Diário da República, II série, de 21 de Maio de 1997). [...] Este juízo, não veio, todavia, a repetir-se em casos posteriormente julgados neste Tribunal. Assim, no Acórdão 20/2000 (publicado no Diário da República, II série, de 28 de Abril de 2000), decidiu-se, com o voto de vencido do relator do Acórdão 267/97,
“não julgar inconstitucional a norma do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações vigente, interpretada por forma a excluir da classificação de
'solo apto para a construção' solos integrados na Reserva Agrícola Nacional expropriados para implantação de vias de comunicação”. Afirmou-se para fundamentar esta decisão:
'(...) Deve, pois, entender-se que a ratio decidendi do Acórdão n.º 267/97 se baseou (não na desvinculação de uma utilização agrícola pela expropriação, ou na ilegitimidade de expropriação de prédios impostos na RAN, mas) na circunstância de, nesse caso, a interpretação normativa em apreço conduzir à não consideração como 'solo apto para construção' de prédios expropriados justamente com a finalidade de neles construir prédios urbanos, em que, portanto, a 'muito próxima ou efectiva' potencialidade edificativa fica demonstrada pelo facto de a expropriação – aliás, acompanhada de desafectação da RAN [sublinhado nosso]– ser efectuada para edificação de construções urbanas. Aliás, cumpre notar que a construção de vias de comunicação é justamente uma das finalidades não agrícolas para que podem ser utilizados solos integrados na RAN
– veja-se o artigo 9º, n.º 2, alínea d), do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho, onde se prevê que tal utilização não agrícola pode fundar o parecer favorável das comissões regionais da reserva agrícola. E, portanto, no presente caso poderá, mesmo, não existir – ao contrário do que acontecia no caso do Acórdão n.º 267/97 – desafectação do terreno da RAN, mas antes um uso não agrícola de solo nesta integrado. (...).
15. Não se vislumbra, aliás, no caso dos autos, qualquer indício de actuação pré-ordenada da Administração, traduzida em manipulação das regras urbanísticas, para desvalorizar artificiosamente um terreno reservado ao uso agrícola e mais tarde o adquirir por um valor degradado, destinando-o então à construção de edificações urbanas de interesse público. Sendo, pois, que também neste aspecto o presente caso se afigura distinto do decidido pelo Acórdão n.º 267/97, onde se notou que a Administração classificou o terreno, 'bem ou mal (...) como terreno de utilidade pública agrícola e, por isso, integrou-o na RAN' e que
'desvalorizado, a Câmara de Chaves adquire-o, pagando por ele um valor correspondente ao de solo não apto para construção (e note-se que a sua apropriação ocorreu apenas a uma semana da publicação da Portaria n.º 380/93, que veio libertar da RAN todo o terreno em que se situava a referida parcela).
(...)'. Esta jurisprudência, no sentido da não inconstitucionalidade, veio a ser confirmada e desenvolvida posteriormente pelo Tribunal, nomeadamente nos Acórdãos n.ºs 247/2000 (disponível na página do Tribunal Constitucional na Internet), e 219/2001, 243/2001, 172/2002, 121/2002, 155/2002, 417/2002 e
419/2002 (publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 6 e 4 de Julho de 2001, 3 de Junho de 2002, e de12, 30, 17 e 31 de Dezembro de 2002). Assim, no Acórdão 243/2001, já citado, escreveu-se, nomeadamente, o seguinte:
'(...) A proibição de edificar em terreno integrado na Reserva Agrícola Nacional, imposta como é pela própria natureza intrínseca da propriedade, mais não é, pois – sublinhou-se no Acórdão n.º 329/99 (publicado no Diário da República, II série, de 20 de Julho de 1999) –, do que 'uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo'. Por isso, quando se expropria uma parcela de terreno integrado na Reserva Agrícola Nacional, não tem que tomar-se em consideração no cálculo do valor da indemnização, a pagar ao expropriado, a potencialidade edificativa dessa parcela: é que – repete-se – essa potencialidade edificativa não existe, nem a expropriação a faz nascer. Só assim não será, devendo, então, levar-se em conta a aptidão edificativa do terreno expropriado no cálculo do valor da indemnização a pagar, quando a expropriação for acompanhada da desafectação da Reserva, e aquele terreno destinado a nele se levantarem construções urbanas, como aconteceu no caso sobre que incidiu o referido Acórdão n.º 267/97.(...)' Desenvolvendo esta via de raciocínio, escreveu-se no Acórdão n.º 155/2002, já citado, em que estava em causa a expropriação de uma parcela de terreno que fora desafectada da Reserva Ecológica Nacional para nela ser construída uma central de incineração:
[...]
'(...) De tudo o exposto resulta que o caso em apreço, embora apresente algumas semelhanças com o caso apreciado no Acórdão n.º 267/97, deste Tribunal, em boa verdade está muito mais próximo dos casos que foram apreciados nos Acórdãos n.ºs
20/2000, 219/200 e 243/2001, em que a norma do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991 não foi julgada inconstitucional. Não pode, com efeito, concluir-se, no caso, que a expropriação (e a desafectação) se destinou à construção de um edifício urbano, mas sim e muito ao contrário, de um edifício que repele a urbanização, face à finalidade a que se destina Trata-se, portanto, de um equipamento público intermunicipal que, constituindo uma alteração da destinação agrícola do terreno, não gera uma potencialidade edificativa que seja relevante para a qualificação do solo como 'solo apto para a construção'. Com efeito, a potencialidade edificativa não existia antes, uma vez que o terreno se inseria na RAN/REN e a expropriação (e a desafectação) não gerou tal potencialidade edificativa, uma vez que nele não se edificou uma construção urbana. (...).' Finalmente, em decisão do Plenário, escreveu-se no Acórdão 419/2002, igualmente já citado,
“(...) Em conclusão, pois, não se vislumbra, no caso dos autos, qualquer actuação pré-ordenada da Administração, traduzida em «manipulação das regras urbanísticas», com vista a desvalorizar artificiosamente o terreno, reservado ao uso agrícola, para mais tarde o adquirir por um valor degradado, destinando-o então à construção de edificações urbanas de interesse público, o que afasta decisivamente a aplicação da jurisprudência firmada no Acórdão n.º 267/97.
[...] ” De tudo quanto se deixa dito, verifica-se, da jurisprudência do Tribunal que acabámos de citar, que a norma do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991 só foi julgada inconstitucional num único caso em que a Administração classificou uma parcela de terreno, dotada de todas as infra-estruturas, como de utilidade pública agrícola integrando-a, por isso, na RAN, vindo, posteriormente e uma vez desvalorizada, a adquiri-la, pagando por ela um valor correspondente ao de solo não apto para construção (notando-se ainda que a sua apropriação ocorreu apenas uma semana antes da publicação da Portaria nº 380/93, que veio desafectar da RAN todo o terreno em que se situava a referida parcela). O que permite que Alves Correia afirme que o 'sentido profundo' do julgamento de inconstitucionalidade constante do Acórdão n.º 267/97
'é o de impedir que a Administração, depois de ter integrado um determinado terreno na RAN (...), venha, posteriormente, a desafectá-lo, com o fim de nele construir um equipamento público, pagando pela expropriação um valor correspondente ao de solo não apto para a construção'(cfr. A Jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre Expropriações por Utilidade Pública e o Código das Expropriações de 1999, Coimbra, 2000, página 52)”.
[...]
9. No caso concreto, está em causa a constitucionalidade da norma constante do n.º 5, do artigo 24º, do Código das Expropriações de 1991, se interpretada no sentido de excluir da classificação de “solo apto para a construção” o solo, integrado na Reserva Agrícola Nacional e na Reserva Ecológica Nacional e não desafectado, expropriado com a finalidade de nele se construir uma escola, a qual foi autorizada nos termos da alínea d), do n.º 2, do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho.
9.1. Em primeiro lugar, como se refere no Acórdão 20/2000, importa afirmar que, se se entender que, mesmo num caso como o decidido no aresto 267/97 (de desafectação do prédio da RAN e expropriação para construção de um quartel de bombeiros), a Constituição da República, pela determinação do pagamento de uma
'justa indemnização', não impõe a qualificação como 'solo apto para construção' de terrenos integrados na RAN, ainda que expropriados para neles se edificar construções urbanas – isto é, se não se concordar com o juízo de inconstitucionalidade a que se chegou nesse aresto –, sempre se chegará, no presente processo (por identidade de razão), igualmente, a uma conclusão de inexistência de inconstitucionalidade. Como se escreve naquele Acórdão 20/2000 já citado, 'esta posição pode, designadamente, basear-se na circunstância de o expropriado, cujo prédio estava integrado na RAN, não ser titular, anteriormente
à expropriação, de expectativas legítimas relativas à potencialidade edificativa do terreno, já que, tendo o prédio integrado naquela Reserva, bem sabia (ou devia saber) que já nele não podia construir. Não tendo o proprietário, pela integração do terreno na RAN, expectativa razoável de ver o terreno desafectado e destinado à construção, não poderia invocar o princípio da 'justa indemnização', de modo a ver calculado o montante indemnizatório com base numa potencialidade edificativa dos terrenos que era para ele legalmente inexistente, e com a qual não podia contar'. E, em rigor, a não ser assim, poderia, eventualmente, vir a configurar-se uma situação de desigualdade entre os proprietários de parcelas contíguas, consoante fossem ou não contemplados com a expropriação, com um ocasional locupletamento injustificado destes últimos. Na verdade, enquanto os expropriados viriam a ser indemnizados com base num valor significativamente superior ao valor de mercado, os outros, proprietários de prédios contíguos igualmente integrados na RAN e na REN e delas não desafectados, se acaso pretendessem alienar os seus prédios, não alcançariam senão o valor que resultava da limitação edificativa legalmente estabelecida. Ora, se é verdade que o “princípio da igualdade de encargos” entre os cidadãos, a que o Tribunal Constitucional já fez apelo por diversas vezes, a propósito da apreciação de regras de definição do cálculo da indemnização, obriga a que o expropriado não seja penalizado no confronto com os não expropriados, também não se afigura curial que, pela via da expropriação, devam os expropriados vir a ser manifestamente favorecidos em relação aos não expropriados. De facto, se é verdade que a indemnização só é justa se conseguir ressarcir o expropriado do prejuízo que ele efectivamente sofreu, e, por isso, não pode ser irrisória ou meramente simbólica, também não poderá ser desproporcionada à perda do bem expropriado para fins de utilidade pública. Assim, se a parcela a expropriar não permite legalmente a construção, não pode ser paga com o preço que teria se pudesse ser-lhe implantada uma construção. Seguindo esta orientação, sempre se concluiria, então, diversamente do que aconteceu no Acórdão 267/97, pela não inconstitucionalidade do n.º 5 do artigo
24º do Código das Expropriações (1991). Admitindo, porém, que se aceite a tese do Acórdão 267/97, haverá que concluir, no caso que nos ocupa, pela inconstitucionalidade da norma constante do n.º 5, do artigo 24º, do Código das Expropriações de 1991, na interpretação supra referida? A resposta deverá ser negativa.
9.2. Com efeito, não se encontram presentes in casu as razões que conduziram ao julgamento de inconstitucionalidade a que, naquele aresto se chegou. Na verdade,
“embora exista certa similitude entre o caso dos autos e o que foi objecto do Acórdão n.º 267/97”, conforme se salientou no despacho do relator inicial, existem outros factores que, decisivamente, os diferenciam. Assim, ao contrário do que acontecera no caso objecto do Acórdão n.º 267/97, não houve, agora, qualquer desafectação do solo das Reservas em que estava integrado, limitando-se apenas a nele ser autorizada, ao abrigo do disposto na alínea d), do n.° 2, do artigo 9° do Decreto-Lei n° 196/89 e no pressuposto de que não há “alternativa técnica economicamente aceitável para o seu traçado ou localização”, uma limitada utilização de interesse público - a construção de uma escola – uma das excepções previstas para utilização dos solos da RAN. Ora, a concessão desta autorização, excepcional, mantendo intacta a originária vocação agrícola dos solos, não confere à parcela expropriada, que não tinha, originária e legalmente, potencialidade edificativa, qualquer aptidão edificativa próxima que legitime o seu cômputo na indemnização devida ao expropriado. Deste modo, não tendo o proprietário de terrenos integrados na RAN e na REN expectativa razoável de os ver desafectados e destinados à construção ou edificação e não tendo tais terrenos sido, efectivamente, desafectados por via da expropriação, mantendo-se a originária vocação dos solos, não são invocáveis os princípios constitucionais da igualdade e da justa indemnização para obrigar à avaliação do montante da indemnização com base numa inexistente potencialidade edificativa e, consequentemente, como “solos aptos para construção”. Por outro lado, não olvidando que os poderes de cognição do Tribunal Constitucional estão circunscritos a questões de constitucionalidade normativa, sempre se poderá afirmar, como resulta de anteriores acórdãos do Tribunal e é sublinhado pelo representante do Ministério Público, que, “mantendo-se integralmente a essencial vocação agrícola dos solos decorrente da inclusão na RAN, não se vislumbra no caso dos autos, qualquer actuação pré-ordenada da Administração, traduzida em “manipulação das regras urbanísticas”, com vista a desvalorizar artificiosamente o terreno, reservado ao uso agrícola, para mais tarde o adquirir por um valor degradado, destinando-o então à construção de edificações urbanas de interesse público, o que afasta decisivamente a aplicação da jurisprudência firmada no acórdão n° 267/97”. Não estão, portanto, mesmo para quem concorde com a solução consagrada no Acórdão n.º 267/97, verificados os pressupostos que levaram à declaração de inconstitucionalidade naquele caso, além de que não são aduzidos na decisão recorrida e não se vislumbram outros fundamentos que possam justificar essa solução. Assim sendo, forçoso é concluir que a norma contida no n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações (1991), interpretada com o sentido de excluir da classificação de 'solo apto para a construção' o solo, integrado na Reserva Agrícola Nacional e na Reserva Ecológica Nacional e delas não desafectado, expropriado para fins diversos da utilidade pública agrícola permitidos por lei, em concreto com a finalidade de nele se construir uma escola, a qual foi autorizada nos termos da alínea d), do n.º 2, do artigo 9º do Decreto-Lei n.º
196/89, de 14 de Junho, não é inconstitucional, não violando qualquer princípio constitucional, nomeadamente os princípios da justiça, da igualdade e da proporcionalidade.(...)”
7. No caso dos presentes autos, é evidente que quem entenda, conforme se referiu supra no ponto 9.1. do transcrito Acórdão 333/2003 e pelas razões aí aduzidas, que, “mesmo num caso como o decidido no aresto 267/97 (de desafectação do prédio da RAN e expropriação para construção de um quartel de bombeiros), a Constituição da República, pela determinação do pagamento de uma 'justa indemnização', não impõe a qualificação como 'solo apto para construção' de terrenos integrados na RAN, ainda que expropriados para neles se edificar construções urbanas”, sempre chegará, no presente processo (por identidade de razão), igualmente, a uma conclusão de inexistência de inconstitucionalidade.
A questão está, então, em saber se, ainda que se aceite a doutrina do Acórdão n.º 267/97, a solução deverá ser, neste caso, idêntica à que aí se obteve, ou seja, se o presente caso apresenta características idênticas às da situação então julgada ou se, pelo contrário, revela aspectos mais próximos do caso decidido no Acórdão 333/2003, também já citado. O recorrente e o Ministério Público, em alegações apresentadas antes da prolação deste último acórdão, entendem que o caso apresenta semelhanças com a situação que deu origem ao Acórdão 267/97.
Vejamos
8. Como já se deixou dito, a norma do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991 só foi julgada inconstitucional num único caso em que a Administração classificou uma parcela de terreno, dotada de todas as infra-estruturas, como de utilidade pública agrícola integrando-a, por isso, na RAN, vindo, posteriormente e uma vez desvalorizada, a adquiri-la, pagando por ela um valor correspondente ao de solo não apto para construção (notando-se ainda que a sua apropriação ocorreu apenas uma semana antes da publicação da Portaria n.º 380/93, que veio desafectar da RAN todo o terreno em que se situava a referida parcela).
Ora, no caso que agora nos ocupa, de acordo com os factos dados como provados na decisão recorrida, a parcela de terreno onde veio a ser construída a escola estava integrada na Reserva Agrícola Nacional, pelo menos, desde a aprovação do Plano Director Municipal. Esta aprovação, de um Plano cujo projecto data de
1991, ocorreu, na Assembleia Municipal de B., em 11 de Fevereiro de 1994, tendo o referido Plano sido ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º
53/94, publicada no DR, I Série - B, de 13 de Julho de 1994.
Ainda de acordo com os factos dados como provados na decisão recorrida, em Dezembro de 1996 (quase três anos passados após a aprovação daquela inclusão pela Assembleia Municipal) foi concedido, pela Comissão Regional da Reserva Agrícola de Entre-Douro e Minho, nos precisos termos da alínea d), do n.º 2, do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho, isto é, no pressuposto de que não havia alternativa técnica economicamente aceitável para a localização,
“parecer favorável à utilização de 22000 m2 (vinte e dois mil metros quadrados) de solo agrícola para: - construção da Escola Secundária n.º -----[...]”.
A tal parecer seguiu-se, por iniciativa da Direcção Regional de Educação do Norte, a declaração de utilidade pública da expropriação que, em definitivo, foi publicada no Diário da República, II Série, de 12 de Março de 1997.
Finalmente, não há conhecimento de qualquer portaria que tenha vindo libertar da RAN o terreno onde se encontra a parcela em causa.
9. Aqui chegados, verificamos então que, contrariamente ao que aconteceu no caso decidido no Acórdão 267/97, além de a parcela agora em causa não estar dotada, ao tempo da declaração de utilidade pública da expropriação, de todas as infra-estruturas, ela foi integrada na RAN muito antes da decisão de a expropriar, por entidade diversa da expropriante, não havendo conhecimento de que, imediatamente após a sua apropriação pelo expropriante (ou mesmo mais tarde), tenha sido emitida portaria destinada a desafectar da RAN todo o terreno em que se situava a referida parcela.
Por outro lado, independentemente da forma mais ou menos correcta como é qualificada a situação pelos diversos operadores que intervieram neste processo, o facto é que a Comissão Regional da Reserva Agrícola de Entre-Douro e Minho apenas se limitou, tal como no caso decidido no Acórdão 333/2003 já citado, a dar parecer favorável à utilização de solo agrícola para construção de uma escola, nos termos da alínea d), do n.º 2, do artigo 9º do Decreto-Lei n.º
196/89, de 14 de Junho. Isto é, apenas se limitou a dar parecer favorável a uma das limitadas utilizações não agrícolas que os terrenos – solos agrícolas - incluídos na Reserva Agrícola Nacional podem, legalmente, vir a ter, por força de interesse público que o justifique. Nada mais.
Acresce ainda que, não olvidando que os poderes de cognição do Tribunal Constitucional estão circunscritos a questões de constitucionalidade normativa, também aqui não se vislumbra, ao contrário do que resulta do Acórdão n.º 267/97, qualquer actuação pré-ordenada da Administração, traduzida em “manipulação das regras urbanísticas”, com vista a desvalorizar artificiosamente o terreno, reservado ao uso agrícola, para mais tarde o adquirir por um valor degradado, destinando-o então à construção de edificações urbanas de interesse público, o que afasta decisivamente a aplicação da jurisprudência firmada no Acórdão n°
267/97, justificando-se, pelo contrário, também pelos motivos então aduzidos, para os quais se remete, a conclusão que consta do Acórdão 333/2003.
Ou seja, justifica-se então a conclusão de que a norma contida no n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações (1991), interpretada com o sentido de excluir da classificação de 'solo apto para a construção' o solo, integrado na Reserva Agrícola Nacional, expropriado para fins diversos da utilidade pública agrícola permitidos por lei, em concreto com a finalidade de nele se construir uma escola – tendo sido concedido parecer favorável à utilização do solo agrícola para esse fim, nos termos da alínea d), do n.º 2, do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho -, não é inconstitucional, não violando qualquer princípio constitucional, nomeadamente os princípios da justiça, da igualdade e da proporcionalidade
III - Decisão
Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Sem custas por não serem devidas.
Lisboa, 12 de Novembro de 2003
Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Luís Nunes de Almeida