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Processo nº 489/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional
1. - A, e B, identificados nos autos, foram condenados em acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, que lhes moveu C, a pagarem-lhe determinada quantia, acrescida de juros de mora à taxa de 10% até integral pagamento e a indemnização a liquidar em execução de sentença.
Inconformados com a decisão da 1ª instância, dela apelaram para o Tribunal da Relação de Coimbra que julgou o respectivo recurso improcedente.
Reagiram, novamente, agora mediante revista para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 10 de Janeiro último, a negou.
Requereram, então, a aclaração deste aresto, aí alegando, nomeadamente, que a interpretação feita quanto à regra do ónus da prova constante do nº 1 do artigo 342º do Código Civil e, bem assim, o entendimento pelo mesmo dado à norma sobre presunções do artigo 349º do mesmo diploma, e o alcance atribuído à norma do nº 2 do artigo 722º do Código de Processo Civil, violaram, tal como aplicadas foram essas normas, o disposto nos artigos 9º, alínea b), 13º, 20º, 202º, nº 2, e 205º, nº 1, da Constituição da República.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 19 de Março seguinte, indeferiu o pedido de aclaração.
Notificados, não se conformando com o primeiro desses arestos, interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para apreciação da constitucionalidade das indicadas normas, 'na interpretação e aplicação constantes do douto acórdão recorrido', que têm por desrespeitadoras daqueles preceitos constitucionais.
2. - O recurso não foi recebido, por despacho do Conselheiro relator, de 18 de Abril último.
Escreveu-se, aí, não ter sido invocada nas alegações do recurso de revista mas apenas no pedido de aclaração a inconstitucionalidade das disposições mencionadas, não se verificando, assim, o requisito de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional previsto no artigo
70º, nº 1, alínea b), que pressupõe a suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo.
3. - É deste despacho que agora se reclama, nos termos do nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82.
No entendimento que professam, a suscitação deu-se a tempo de o tribunal recorrido conhecer da questão, no âmbito dos seus poderes de jurisdição, uma vez que – defendem – nada impede que a mesma ocorra no requerimento de aclaração, desde que a questão seja nova, decorrente da decisão a aclarar, 'e/ou também desde que esteja dentro do âmbito de apreciação do Tribunal no douto Despacho de aclaramento'.
Ora, em sua tese, a questão suscitada é nova, decorrendo do acórdão que negou a revista, 'ao entender que não cabia ao Tribunal da Relação apreciar as questões colocadas na respectiva minuta de recurso, por via do disposto no artigo 722º do C.P.C.'.
Invocando os reclamantes no seu requerimento de aclaração – mais observam – tratar-se de questões de direito substantivo cuja apreciação compete ao Supremo, tal equivale à invocação da nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 668º do C.P.C., que ao tribunal de revista cabe apreciar e decidir, nos termos do nº 3 deste preceito, uma vez que do acórdão não há recurso ordinário.
Notificado, o recorrido veio aos autos defender que a reclamação seja desatendida.
4. - Foram os autos com vista ao Ministério Público, de acordo com o disposto no nº 2 do artigo 77º da Lei nº 28/82, afigurando-se a este magistrado ser a reclamação manifestamente infundada.
Na verdade, observa, para além de uma equacionação da interpretação normativa dos preceitos legais, a que o recurso respeita, passível de comprometer, só por si, o recurso, por não se achar feita inequivocamente, o certo é, no que às normas substantivas do Código Civil toca, a questão não se configura como nova, já que o litígio, tal como foi dirimido nas instâncias, incidia precisamente sobre a repartição do ónus da prova. E, pelo que respeita à norma do artigo 722º do Código de Processo Civil, é manifesto que tal preceito legal não foi aplicado com o sentido referenciado na reclamação e que consistiria em o Supremo não ter conhecido de uma 'questão de direito substantivo' perante ele suscitada pelos recorrentes: como decorre explicitamente do decidido por esse Alto Tribunal (fls. 34), tais questões incidem sobre 'matéria de facto que escapa ao controlo deste Supremo'.
5. - A reclamação não merece, efectivamente, ser deferida.
Não tanto pela ausência de uma interpretação precisa da interpretação adoptada na decisão e considerada constitucionalmente lesiva, pois, aí, poder-se-ia adoptar o expediente previsto nos nºs. 5 a 7 do artigo
75º-A da Lei nº 28/82, convidando-se o recorrente a prestar os esclarecimentos necessários, sob a cominação legalmente prevista.
O certo é que o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, do tipo do subjacente, implica a necessária congregação de vários pressupostos para se tornar admissível, figurando entre eles, o da aplicação da norma questionada na sua totalidade ou em certo segmento, na dimensão interpretativa identificada claramente, a funcionar como ratio decidendi, e, bem assim, o da suscitação da questão da constitucionalidade durante o processo.
Ora, relativamente ao primeiro desses requisitos, que se coloca em relação à norma processual convocada, o acórdão aclaratório mostra-se eloquente quanto à falta de razão dos reclamantes.
Como então se ponderou, não só os requerentes do pedido de aclaração não explicam a razão de uma interpretação do nº 2 do artigo 722º como contrária às mencionadas disposições constitucionais, como a interpretação da norma é a que dela literalmente se retira: na falta de documentos respeitantes à aquisição do material perdido e adquirido em sua substituição, cabia ao exequente a prova dos danos sofridos; não tendo as instâncias
'cotejado' a prova produzida com essa presunção, impunha-se a censura da matéria de facto (nº 2 do artigo 722º); ora, a matéria de facto escapa ao controlo do Supremo Tribunal de Justiça.
Por sua vez, e no que respeita ao requisito da suscitação atempada, constitui jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional que a suscitação de inconstitucionalidade normativa aludida na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 seja interpretada não em sentido formal, de acordo a ser considerada tempestiva até à extinção das instância, mas sim em sentido funcional, tal que essa invocação possa ser conhecida e abordada pelo tribunal recorrido ao proferir a decisão sobre a matéria a que respeita a questão de constitucionalidade (cf., por todo, o Acórdão nº 155/95, publicado no Diário da República, 2ª série, de 20 de Junho de 1995).
A esta luz, o incidente de arguição de nulidades da decisão recorrida – tal como o pedido de aclaração desta, o requerimento de interposição de recurso ou as respectivas alegações – já não constitui – em princípio – momento oportuno de suscitação da questão (cf. o citado acórdão e lugares nele referido).
Admite-se, no entanto, que o recorrente ainda o possa fazer nesse momento se, porventura, não teve oportunidade de, na altura própria, equacionar a questão – o que sucederá em circunstâncias excepcionais ou anómalas, nomeadamente quando o tribunal aplique norma, ou uma sua interpretação, em sentido inesperado, de modo a poder dizer-se que o interessado não podia prever nem era exigível que o previsse (cf., por todos, os acórdãos nºs. 479/89 e 595/96, publicados no Diário da República, 2ª série, de 24 de Abril de 1992, e 22 de Julho de 1996, respectivamente).
Ora, no concreto caso, não há novidade no acórdão aclaratório que possa ter surpreendido os reclamantes, de modo a considerar-se ainda oportuno o momento processual da suscitação do problema de constitucionalidade.
É o que, de imediato, se retira da leitura do ático acórdão de 19 de Março de 2002, ao indeferir o pedido de aclaração do acórdão de
10 de Janeiro anterior.
Na verdade, como observa o Ministério Público, a discussão nas instâncias incidiu precisamente sobre a problema da repartição do
ónus da prova e em sua função se decidiu a revista.
6. - Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação, mantendo-se, consequentemente, o acórdão reclamado.
Custas pelos reclamantes, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta. Lisboa, 10 de Julho de 2002- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida