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Processo n.º 134/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O Ministério Público deduziu acusação contra A., por existirem nos autos fortes indícios de que a mesma foi autora de factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de fraude fiscal, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 7.°, 9.°, 12.° e 23.°, n.°s 1,
2, alíneas a), b) e c), 3, alíneas a), e) e f), e 4, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro (doravante designado por RJIFNA), e pelas disposições conjugadas dos artigos 6.°, 7.º, 8.º, 103.°, n.° 1, alíneas a), b) e c), e 104.°, n.°s 1, alíneas d) e e), e 2, da Lei n.° 15/2001, de 5 de Junho,
A A. requereu a abertura de instrução, alegando a inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 20-A/90, designadamente do seu artigo 7.°, bem como a inexistência de elementos de prova que permitissem imputar aos seus órgãos a prática do crime por que foi acusada.
Essas questões foram apreciadas na decisão instrutória nos termos que a seguir se transcrevem:
“Suscitaram alguns arguidos a inconstitucionalidade do RJIFNA, invocando que o diploma que o aprovou, o Decreto-Lei n.° 20-A/90, de 15 de Janeiro, foi promulgado já depois de expirado o prazo concedido pela Lei de autorização legislativa para o Governo legislar, bem como pelo facto de ter estendido a punibilidade da ilicitude nele definida às pessoas colectivas. As questões não são novas.
Vejamos em primeiro lugar a questão da inconstitucionalidade orgânica, por caducidade da autorização legislativa:
A Assembleia da República concedeu autorização ao Governo para legislar em matéria de infracções fiscais através da Lei n.° 89/89, de 11 de Setembro, fixando o prazo de 90 dias para a utilização desta autorização
(artigo 6.°).
Em 28 de Setembro seria aprovado em Conselho de Ministros o Decreto-Lei n.° 20-A/90, de 15 de Janeiro.
Para que se considere respeitado o prazo da autorização legislativa, concedida em matéria de reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, basta, como tem sido considerado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que ocorra dentro desse prazo a aprovação pelo Conselho de Ministros do decreto-lei emitido no uso dessa autorização legislativa. E a razão fundamental invocada para este entendimento consiste no facto de não constituir a promulgação um acto da competência do Governo, não sendo, pois, de exigir que ela ocorra dentro do prazo concedido ao Governo para legislar em determinada matéria (neste sentido, ver, por todos, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 672/95, in Diário da República, II Série, de 20 de Março de 1996, que se pronunciou precisamente pela conformidade constitucional da aprovação do RJIFNA, e mais recentemente o Acórdão n.° 168/00, do mesmo Tribunal, proferido no processo n.° 16/2000, pela 2.ª Secção, em 22 de Março de
2000).
O mesmo entendimento tem sido sustentado em diversas outras decisões do Tribunal Constitucional, ainda que proferidas em sede de apreciação da constitucionalidade orgânica de outros diplomas. Com efeito, sobre esta matéria existe já uma reiterada e uniforme jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido de as autorizações legislativas serem tempestivamente utilizadas quando o Governo aprova o diploma delegado antes de expirar o prazo da sua duração, sendo irrelevante que as fases posteriores, consistentes na promulgação, referenda e publicação, venham a ocorrer depois de expirado aquele prazo. Também a doutrina, de modo geral, perfilha este entendimento (vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 213/95, in Diário da República, II Série, de 26 de Junho de 1995).
Em face do exposto, nada mais se me afigura adiantar em sustentação da conformidade constitucional orgânica do RJIFNA, indeferindo-se a invocação da respectiva inconstitucionalidade suscitada pelos arguidos.
O último acórdão do Tribunal Constitucional acima citado, apreciou também a questão da conformidade constitucional da norma inserta no Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro, que prevê a responsabilidade criminal das pessoas colectivas pelas infracções definidas naquele diploma. Pode ler-se no citado acórdão: «Contrariamente ao que, décadas atrás, dispunha de um generalizado beneplácito doutrinal, hoje em dia a responsabilidade criminal das pessoas colectivos é admitida por grande parte dos autores nacionais e estrangeiros, dispondo também de consagração no nosso ordenamento». E, mais adiante, sublinha-se ainda que o Código Penal afirma «o princípio da individualidade da responsabilidade criminal, mas admite-se a existência de excepções, pensadas precisamente para o alargamento da responsabilidade criminal das pessoas colectivas.» Tal como ali se desenvolve com recurso a asserções doutrinárias que reúnem o consenso de vários autores, a propósito do artigo 11.° do Código Penal, então vigente, e hoje plenamente justificáveis também à luz do actual artigo
12.° do Código Penal, actualmente em vigor, a responsabilidade penal dos pessoas colectivas, operada pelo Decreto-Lei n.º 28/84, «não constitui qualquer inovação fora do sistema, traduzindo-se, ao contrário, em mera aplicação de um princípio vigente no âmbito da matéria a que aquele diploma se reporta», passando-se, de seguida, a desenvolver as razões para tal entendimento.
Idêntica ordem de razões se aplica à previsão da responsabilidade penal das pessoas colectivas no âmbito do Decreto-Lei n.° 20-A/90, de 15 de Janeiro, que agora nos ocupa. Com efeito, são os mesmos os fundamentos que se impõe afirmar em defesa da responsabilização criminal das pessoas colectivas em qualquer área do direito penal secundário.
Valem aqui também as considerações tecidas por Alberto Remédio, in Revista do Ministério Público, n.° 53, pág. 63 e seguintes, a propósito da responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas, relativa a infracções contra a economia e contra a saúde pública: «A exteriorização de novas formas de criminalidade, o incremento da participação que nelas vão tendo entes colectivos, sobretudo nos campos da criminalidade económica e social, e a necessidade de as prevenir e reprimir (cf. Figueiredo Dias e Costa Andrade,
“Problemática geral das infracções anti-económicas”, Boletim do Ministério da Justiça, n.° 262, pág. 5 e seguintes), levou a que, um pouco por toda a parte, se fosse questionando o dogma da individualidade da responsabilidade criminal e admitindo a consagração da responsabilidade criminal das pessoas colectivas.
Neste sentido, merece destaque, ao nível das organizações internacionais, a intervenção do Conselho da Europa, que recomendou aos Estados membros o reexame dos princípios da responsabilidade criminal, de modo a viabilizar-se, em certos casos, a responsabilização de pessoas colectivas
(Resolução n.° (77)28, de 27 de Setembro de 1977, sobre a contribuição do direito penal para a protecção do ambiente), e o estudo da possibilidade de instituir a responsabilidade criminal das pessoas colectivas (Recomendações n.°s R (81)12, de 25 de Junho de 1981, R (88)18, de 20 de Outubro de 1988, sobre criminalidade económica, e R (82)15, de 24 de Setembro de 1982, sobre o papel do direito penal na protecção dos consumidores) (cf. Castro e Sousa, obra citada
[As pessoas colectivas em face do direito criminal e do chamado direito de mera ordenação social, Coimbra Editora, Coimbra, 1985], págs. 204-205; e Lopes Rocha, obra citada [«A responsabilidade penal das pessoas colectivas – Novas perspectivas», Direito Penal Económico, Centro de Estudos Judiciários, Coimbra,
1985], págs. 113-115).» Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, se decide também não atender a invocada inconstitucionalidade do artigo 7.° do RJIFNA suscitada por alguns arguidos.
Aliás, também à questão da conformidade constitucional da punição simultânea de pessoas singulares que actuam como órgãos e representantes da pessoa colectiva, nos termos do artigo 6.º do RJIFNA, e a própria pessoa colectiva, no sentido de não constituir qualquer violação do princípio constitucional ne bis in idem (na modalidade de dupla punição indevida pelo mesmo facto), já foi dada resposta pelo Tribunal Constitucional em jurisprudência ainda recentemente retomada (ver Acórdão n.° 389/01, proferido no processo n.° 284/01, 2.ª Secção, em 26 de Setembro de 2001).
(...)
A prova produzida na instrução, a requerimento dos arguidos A. e B., incidiu especialmente sobre o facto de esta empresa não ter pedido reembolsos de IVA. Para além de documentação que foi junta, foi inquirido o director financeiro da A. (fls. 56621/56623). Referiu que a A. nunca solicitou reembolsos de IVA ou fez qualquer adiantamento a fornecedores. As negociações eram feitas pelo director comercial, B., o director-geral da A., o qual aufere remuneração fixa e variável. Como a A. cresceu, ele aumentou a sua remuneração. O director-geral reporta a uma direcção, tendo funções de gestão. Não faz compras. Foi por ordem de B. que não foram pagas as mercadorias apreendidas nos autos e foi também na sequência dessa apreensão que foram proibidas as compras directas. As notas de crédito são prática corrente. Servem para esconder os preços, mas constituem prática comercial corrente.
Foi também inquirida uma advogada que actualmente presta serviços à A., tendo prestado depoimento em tudo coincidente com o prestado pela testemunha anterior (fls. 56 624/56 625).
Finalmente, em 20 de Dezembro, foram recolhidos esclarecimentos adicionais à Sr.ª Perita, C., designadamente no que respeitava à conclusão de a A., através das práticas acusadas nos autos, se ter constituído como credora de IVA ao Estado, tendo a mesma esclarecido que foram diversos os factores em que assentou aquele juízo: desde logo o facto de a A. ter revendido mercadoria a preços facturados substancialmente abaixo dos preços pelos quais adquirira a mesma mercadoria, com recurso a notas de crédito, exemplificando com facturas específicas o seu raciocínio. O facto, não ponderado na perícia realizada nos autos, de a A. também adquirir ou vender a outros fornecedores ou clientes sem recurso a notas de crédito, não pode servir para extrair a conclusão pretendida pela defesa desta arguida, de que o défice de IVA liquidado ao Estado, resultante de vendas sistemáticas anteriores com recurso a notas de crédito, seria compensado com essas aquisições ou vendas sem o recurso a essas notas de crédito, uma vez que, da análise pericial efectuada, resultou também evidenciado que só nos finais de 1999 surgiu a D. a facturar à A. sem recurso a descontos introduzidos nas notas de crédito, sendo certo que esta prática de facturação com recurso às mesmas se prolongara durante todo o ano de 1998. Sendo assim, não foi seguramente no curto período do final do ano de 1999 que a A. conseguiu compensar o défice de liquidação de IVA que acumulara do ano anterior. A outra situação que detectaram de vendas à A. sem recurso a notas de crédito foi do E., a partir de Julho de 1999, sendo certo, todavia, que a partir de então o mesmo baixou significativamente o volume de facturação à A., e mesmo o nível dos preços praticados. Em 1998 o E. facturou à A. 220 424 contos com recurso a notas de crédito e em 1999 apenas 121 747 contos com notas de crédito de 18 063 contos. Admitindo que a análise pericial apenas incidiu sobre as empresas referenciadas nos autos, mantém, todavia, a conclusão inicialmente formulada de que, através destas práticas, a A. teve de se constituir credora de IVA ao Estado.
Na sequência da prestação destes esclarecimentos viria a A. juntar aos autos os documentos constantes de fls. 57 300 a 57 341.
O arguido B. juntou ainda documentos com vista a ilustrar os rendimentos que auferia na sua actividade e solicitou ser de novo ouvido durante o debate instrutório, como efectivamente veio a ser.
Perante esta prova, inevitável será concluir que a mesma não feriu em nada a abundante prova recolhida ao longo do inquérito e que inequivocamente coloca a A. no cerne de toda esta actuação ilícita de defraudação do Estado, como adiante, a propósito da apreciação do recurso da F. melhor se ilustrará. Pretender refutar as conclusões periciais registadas nos autos será seguramente matéria para julgamento, durante a qual deverá ser dada oportunidade aos peritos para se debruçarem sobre a documentação só agora junta pela arguida e que, como
é bom de ver, exigem uma análise detalhada com recurso de novo a esclarecimentos adicionais a prestar pelos peritos. Mais: não tendo os crimes objecto da acusação a natureza de crimes de resultado, como acima já se deixou claro, a instrução requerida pela A. revelou-se, pois, totalmente irrelevante para a decisão a proferir nesta fase processual. A verificação do prejuízo efectivamente provocado há-de repercutir-se, sim, na medida da pena a aplicar aos seus responsáveis em sede de condenação, caso se confirme a prova inerente
à mesma.”
Contra este despacho interpôs a A. recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, suscitando, na respectiva motivação, as questões da inconstitucionalidade orgânica do artigo 7.º do RJIFNA, da não imputação de factos a nenhum órgão ou representante da recorrente e da existência de questão prejudicial (falta de liquidação do imposto para possibilitar a respectiva impugnação).
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 23 de Janeiro de 2003, decidiu não conhecer desta última “questão prejudicial” e, quanto às duas restantes, julgou-as improcedentes com base na seguinte argumentação:
“Quanto à primeira, pretende o recorrente que, sendo a definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, nos termos do disposto no artigo 168.°, n.° l, alínea c), da CRP, em vigor à data da aprovação do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro (correspondente ao actual artigo
165.°, n.º 1, alínea c)), da competência exclusiva da Assembleia da República, só podendo o Governo legislar nessas matérias com autorização da mesma, e não contemplando a lei de autorização legislativa n.° 89/89, de 11 de Julho, ao abrigo da qual tal diploma foi elaborado, nenhuma autorização para o Governo legislar no sentido da incriminação das pessoas colectivas nos crimes fiscais, considerando ainda o disposto no artigo 11.° do Código Penal, o artigo 7.° do citado Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, enferma de inconstitucionalidade orgânica na medida em que corresponde a invasão por parte do Governo, excedendo aquela autorização, de área de competência legislativa reservada àquele primeiro órgão.
Não lhe assiste razão.
Assim, como bem refere o Ministério Público na sua resposta, «o Tribunal Constitucional tem vindo a pronunciar-se de forma unânime no sentido da conformidade constitucional de vários diplomas, entre os quais o RJIFNA (...) prevendo a responsabilidade das pessoas colectivas».
Essa responsabilidade, hoje em dia aceite pela maioria dos autores, tem, como se refere no douto despacho recorrido, consagração no nosso ordenamento, pois que, não obstante o Código Penal afirmar o princípio da individualidade da responsabilidade criminal, admite a existência de excepções pensadas precisamente para o alargamento da responsabilidade às pessoas colectivas (tal subjaz claramente ao estatuído no artigo 12.° do Código Penal).
A responsabilização penal das pessoas colectivas prevista no artigo
7.° do diploma em causa, como se refere no douto acórdão do Tribunal Constitucional citado na douta decisão recorrida que trata desta mesma questão
(ainda que relativamente a outro diploma), «não constitui assim qualquer inovação fora do sistema», pelo que, como bem conclui o Ministério Público, «a Lei de autorização legislativa n.° 89/89, de 11 de Setembro, ao prever no seu artigo 2.° a tipificação de novos ilícitos penais e a definição de novas penas, tomando para o efeito como ponto de referência a dosimetria do Código Penal, ainda que podendo alargá-la ou restringi-la, comporta a extensão da responsabilidade criminal às pessoas colectivas e equiparadas».
O preceito – e diploma – em causa não estão, assim, como pretendia a recorrente, feridos de inconstitucionalidade orgânica, não colhendo, quanto a este aspecto, a sua argumentação.
Quanto ao segundo ponto posto em causa – impossibilidade de responsabilização da recorrente por factos praticados por pessoa não pertencente aos seus órgãos ou representantes legais, não deixaremos de assinalar que a vertente de tal decisão a que o mesmo se reporta, mais do que resposta a «questão prévia», ainda que suscitada e considerada autonomamente, consubstanciará já – na medida em que inequivocamente se insere na ponderação em ordem a concluir pela imputação ou não da prática de ilícito, ou seja, no juízo de integração da prova indiciária obtida – decisão inerente à pronúncia, pelo que, em rigor, é duvidoso que não se situe fora do âmbito da excepção, a que se alude no Assento n.º 6/2000, de 7 de Março de 2000, à irrecorribilidade da decisão instrutória que, como acontece in casu, pronuncie pelos factos constantes da acusação.
De qualquer forma – e na dúvida nos pronunciaremos – nunca a argumentação da recorrente poderia ter acolhimento.
Assim, vejamos:
Pretende a recorrente que, não imputando a acusação qualquer facto aos órgãos previstos no Código Cooperativo, e considerando que, nos termos do artigo 7.° do RJIFNA, as pessoas colectivas são incriminadas pela actuação de uma pessoa física membro de um seu órgão ou seu representante, que tenha actuado no seu interesse, não poderia ser responsabilizada criminalmente, como foi, pelos factos referidos na acusação praticados por pessoas não pertencentes aos seus órgãos nem aos seus representantes legais.
Tal é dizer que entende que, sendo as pessoas colectivas responsabilizadas penalmente pelas infracções fiscais cometidas pelos seus
órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo, para que a infracção fiscal seja imputável à pessoa colectiva, é necessário que a qualidade de representante de facto se cumule com a de representante de direito, e a infracção seja praticada em nome e no interesse da sociedade – o que implica que o agente esteja legitimado por lei, pelos estatutos ou pelo acto do qual derivam os poderes de representação para actuar em nome da pessoa colectiva, tendo a infracção de ser cometida no interesse colectivo e de se traduzir na obtenção de uma vantagem económica em benefício da pessoa colectiva.
Em suma, pretende a recorrente que, em vista do disposto no artigo
7.° do RJIFNA, não poderá ser responsabilizada pelos factos descritos na acusação desde logo em virtude de as pessoas a quem são imputados actos por que a acusam não serem seus representantes legais.
Não tem razão.
Contrariamente ao que defende, a responsabilização de pessoa colectiva por actos praticados no âmbito de representação de facto, por representante não formal, não contraria o estatuído no artigo 7.° do RJIFNA.
Assim, tal preceito não restringe a responsabilização da pessoa colectiva apenas relativamente aos actos praticados pelos seus representantes formais, bastando-se com a mera representação de facto, tendo a punição da sociedade em virtude dos actos praticados por um seu representante, ainda que voluntário, aceitação praticamente unânime na doutrina.
Nas palavras de Paulo Saragoça da Mata, em O artigo 12.° do Código Penal e a Responsabilidade dos «Quadros» das «Instituições», pág. 104, a lei considera existir «uma actuação no lugar de outrem, não só nos casos em que a instituição é representada por um dirigente, mas em todos os casos em que ela, instituição, se patenteia, seja quem for que a represente».
Também, como bem refere o Ministério Público na sua douta resposta,
«essencial para a apreciação da questão ... é ... o contexto em que se desenvolve a actuação referida nos autos, designadamente o recurso sistemático
à criação de empresas, entrepostos e “testas de ferro” que, em termos formais, sejam insusceptíveis de ser conotadas com os factos delituosos. Tenta-se, assim, concertar a irresponsabilização de todos os intervenientes. Uns, as empresas, que alegam nada saber relativamente aos negócios, ou porque não os efectuaram, ou porque, a não poderem negar as evidências, referem terem os mesmos sido realizados com a utilização indevida do seu nome, outros alegando nada ter a ver com as empresas, não podendo, por isso, ser responsabilizados pelos factos que aquela pratica. A este respeito, o comité de peritos sobre criminalidade económica, a trabalhar no âmbito do Conselho da Europa, sublinhou a relevância criminógena de certos comportamentos que surgem e se desenvolvem no seio das pessoas colectivas. Por outro lado, o Professor André Vitu sustenta a perseguição criminal dos entes colectivos já que a sua responsabilização permite atingir, não só os indivíduos que actuam física e intencionalmente, como também os “guarda ventos” atrás dos quais se abrigam e nos quais depositam os meios materiais propícios à acção (in Direito Penal Económico Europeu – Textos Doutrinários, ed. Coimbra Editora).»
É pois lícita a responsabilização da recorrente com base em actuação apuradas levadas a cabo em seu nome pelos arguidos G., seu director comercial, e B., seu director-geral, nos termos em que foi feita, a partir do momento em que na acusação se refere «todos os arguidos – agiram em seu nome e no das empresas que representavam».
Nenhum óbice legal existe, assim, a que se considere que a actuação daqueles arguidos também em representação de facto da recorrente a tomou responsável pelos actos que praticou em seu nome e no seu interesse, pelo que, assim decidindo, a decisão recorrida não violou qualquer princípio ou preceito legal, não violando também a interpretação em tal sentido do artigo 7.° a ela implícita qualquer norma constitucional.
Não merece assim censura a decisão recorrida também no que concerne a esta questão.”
Contra este acórdão interpôs a A., ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, recurso para este Tribunal, tendo, a finalizar as respectivas alegações, formulado as seguintes conclusões:
“I – O artigo 7.º do RJIFNA, permitindo a responsabilidade penal das pessoas colectivas quando não é imputada a qualquer dos seus legais representantes acção penalmente punível – e esta é a dimensão normativa concreta que tal norma assumiu na decisão recorrida – viola o Princípio da Legalidade, bem como o Princípio do Carácter Individual da Responsabilidade Penal. II – O mesmo se diga quando tal preceito legal procede à responsabilização penal das pessoas colectivas com fundamento na actuação penalmente punível de pessoas que se arroguem ser, ou actuem como sendo, seus representantes de facto. III – O artigo 7.º do RJIFNA viola os n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º da CRP, que consagram a regra da tipicidade incriminatória. IV – O artigo 7.º do RJIFNA viola, também, o artigo 30.º, n.º 3, da CRP – no qual se consagra o Princípio do Carácter Individual da Responsabilidade Penal – pois responsabiliza a pessoa colectiva por causa e por efeito de acção punível de uma outra pessoa, singular. V – O artigo 7.º do RJIFNA, ao prever a responsabilidade penal das pessoas colectivas e equiparadas pelos crimes previstos naquele Regime Jurídico, viola o, então em vigor, artigo 168.º da CRP (actual artigo 165.º, n.º 1, alínea c)), pois foi legislado pelo Governo, ao abrigo de uma Lei de autorização legislativa (Lei n.º 89/89, de 11 de Setembro), que não outorgava ao Governo poderes para legislar em matéria da responsabilidade penal de pessoas colectivas.”
O Ministério Público contra-alegou, concluindo:
“1 – Ao consagrar a responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas, o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro – RJIFNA manteve-se dentro dos limites fixados pela respectiva lei de autorização legislativa, pelo que não ocorre a inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, em vigor.
2 – Não constitui questão de inconstitucionalidade normativa, a apreciar pelo Tribunal Constitucional, a que se traduz em sindicar o processo interpretativo que, em áreas cobertas pelo princípio da legalidade, teria levado o Tribunal a quo a realizar uma interpretação extensiva de preceitos legais incriminatórios.
3 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Notificada para responder à questão prévia a que se reporta a segunda conclusão da contra-alegação do Ministério Público, veio a recorrente aduzir que:
“1.ª Nas conclusões do seu recurso, as quais delimitam o objecto do mesmo, a recorrente explicitou que estava em causa uma norma jurídica e não um acto judicial, sendo sobre aquela e não sobre este que pretendia fazer incidir o juízo de constitucionalidade.
2.ª Nas mesmas conclusões a recorrente não mencionou que estava em causa uma norma jurídica decorrente de um processo de interpretação extensiva.
3.ª Cabe, porém, dentro do âmbito dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional, o conhecimento da dimensão normativa de uma norma jurídica alcançada por interpretação extensiva, pois esta mais não é do que «a reintegração do pensamento legislativo», dentro dos limites do respectivo sentido.
4.ª Nestes termos, a questão que está sub judice integra o âmbito de cognição do Tribunal Constitucional.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A questão da inconstitucionalidade orgânica da norma do artigo 7.º, n.º 1, do RJIFNA (“As pessoas colectivas e equiparadas são responsáveis pelos crimes previstos no presente Regime Jurídico quando cometidos pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo”) está confinada à questão de alegado excesso no uso da autorização legislativa, uma vez que a recorrente abandonou a tese da caducidade desta mesma autorização.
O Decreto-Lei n.º 20-A/90, que aprovou o RJIFNA, foi emitido ao abrigo da Lei n.º 89/89, de 11 de Setembro, que concedeu ao Governo
“autorização legislativa para aprovar o regime jurídico das infracções fiscais”
(artigo 1.º) e cujo artigo 2.º, n.º 1, dispunha que: “No uso da autorização conferida pelo artigo anterior pode o Governo, em matéria penal, adaptar os princípios gerais, os pressupostos da punição, as formas de crime e as causas de suspensão do procedimento e da extinção da responsabilidade criminal, tipificando novos ilícitos penais e definindo novas penas, tomando para o efeito como ponto de referência a dosimetria do Código Penal, ainda que podendo alargá-la ou restringi-la”.
Como se salienta na contra-alegação do Ministério Público, trata-se de uma disposição que credencia de forma ampla o Governo a legislar relativamente aos crimes fiscais, no quadro de um sistema punitivo que não exclui, nos termos do artigo 11.º do Código Penal, a responsabilidade criminal das pessoas colectivas. Aliás, a própria Lei n.º 89/89, ao prever, na alínea c) do n.º 2 do mesmo artigo 2.º, os limites das penas criminais de multa aplicáveis a “pessoas colectivas ou entidades como tal fiscalmente consideradas”, está necessariamente a admitir a responsabilização criminal destas entidades.
De qualquer forma, sempre valeriam aqui as considerações tecidas no Acórdão n.º 213/95 deste Tribunal Constitucional (Diário da República, II Série, n.º 145, de 26 de Junho de 1995, pág. 7031; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º vol., pág. 985), embora a propósito de outro diploma, mas cuja transcrição, apesar da sua extensão, se justifica, pelo esclarecimento que propiciam quanto à conformidade constitucional da responsabilização criminal de pessoas colectivas e entidades equiparadas, no
âmbito do direito penal secundário. Consignou-se nesse aresto:
“C – Quanto ao alegado excesso de autorização do Decreto-Lei n.º
28/84, na parte respeitante à definição dos crimes e à fixação das penas a que se reportam as normas dos artigos 36.º e 37.º, bem como a sua extensão às pessoas colectivas e equiparadas por força dos artigos 3.º, n.º 1, e 7.º, n.ºs 1 e 4, do mesmo diploma
1. (...)
2. Os artigos 3.º, n.º 1, e 7.º, n.ºs 1 e 4, do Decreto-Lei n.º
28/84, que dispõem sobre a responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas e sobre as penas que lhe são aplicáveis, rezam assim:
Artigo 3.º (Responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas)
1 – As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo.
(...)
Artigo 7.º (Penas aplicáveis às pessoas colectivas e equiparadas)
1 – Pelos crimes previstos neste diploma são aplicáveis às pessoas colectivas e equiparadas as seguintes penas principais:
a) Admoestação;
b) Multa;
c) Dissolução.
(...)
4 – Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 1000$ e 100
000$, que o tribunal fixará em função da situação económica e financeira da pessoa colectiva ou equiparada e dos seus encargos.
(...)
Instituiu-se, deste modo, a responsabilização criminal das pessoas colectivas e equiparadas pelas infracções anti-económicas e contra a saúde pública previstas naquele diploma, nomeadamente, pelos crimes a que se reportam os artigos 36.º e 37.º.
Sustentam os recorrentes que ao assim se disciplinar esta matéria se incorreu no vício de excesso no uso da autorização legislativa, pois que, não se fazendo referência expressa na lei delegante à responsabilidade criminal das pessoas colectivas, estava vedado ao Governo proceder à sua criminalização.
Todavia, não se tem por verificado qualquer desbordamento das normas em causa relativamente ao quadro de directivas parlamentares que as delimitam, nem tão-pouco se julga verificado um outro vício não explicitamente invocado pelos recorrentes, qual seja o de um eventual impedimento constitucional à responsabilização criminal das pessoas colectivas.
Vejamos ambas as questões.
3. Contrariamente ao que, décadas atrás, dispunha de um generalizado beneplácito doutrinal, hoje em dia a responsabilidade criminal das pessoas colectivas é admitida por grande parte dos autores nacionais e estrangeiros, dispondo também de consagração no nosso ordenamento.
Ainda no domínio da vigência do Código Penal de 1886, no qual vigorava o princípio de que só a pessoa física, individualmente considerada, podia ser sujeito activo de infracções criminais (artigos 26.º e 28.º), tiveram afloramento diversas excepções ao velho princípio societas delinquere non potest, como bem se alcança do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 41 204, de 24 de Julho de 1957 (diploma que no domínio das infracções contra a economia antecedeu o Decreto-Lei n.º 28/84, vindo por este a ser expressamente revogado) onde se prescrevia que «as sociedades civis e comerciais são solidariamente responsáveis pelas multas e indemnizações em que forem condenados os seus representantes ou empregados, contanto que estes tenham agido nessa qualidade ou no interesse da sociedade, salvo a prova de que procederam contra ordem da administração». Embora não se previsse, autonomamente, a responsabilidade criminal das pessoas colectivas, sujeitavam-se estas, dentro de certos condicionalismos, a uma responsabilidade solidária com os seus representantes ou agentes pelo pagamento das multas e indemnizações impostas a estes últimos pelo cometimento de infracções contra a economia nacional.
O Código Penal de 1982 veio entretanto trazer, relativamente ao quadro normativo antecedente, uma manifesta alteração de perspectiva.
No artigo 11.º, subordinado à epígrafe «carácter pessoal da responsabilidade», dispõe-se no seu n.º 2 que «salvo disposição em contrário, só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal».
Afirma-se assim o princípio da individualidade da responsabilidade criminal, mas admite-se a existência de excepções, pensadas precisamente para o alargamento da responsabilidade criminal das pessoas colectivas.
Como se pode verificar dos trabalhos preparatórios do Código Penal, aquando da discussão do artigo 8.º do Projecto (correspondente ao artigo 11.º do Código), depois de acentuar que a punição tem uma base ética assente numa ideia individual, Eduardo Correia reconheceu que «em homenagem a razões particulares e, em todo o caso, excepcionais –, pode admitir-se que haja lugar à aplicação de certas reacções a sociedades ou outras pessoas colectivas, reacções que podem ter a natureza de penas ou medidas de segurança» (Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, pág. 110).
Em sentido similar se pronunciou Figueiredo Dias quando, a propósito da ilicitude do facto, comentou aquele preceito do Código Penal nos termos seguintes:
«Trata-se, à primeira vista, da consagração do princípio, antigo e respeitável, da individualidade (ou individualização) da responsabilidade criminal; princípio que aliás se considerava já contido no artigo 28.º do velho código a que a doutrina ainda hoje dominante continua a ver fundado na incapacidade jurídico-penal, ou só de acção ou também de culpa, das pessoas colectivas. Mas não pode ser esse seguramente nem o sentido, nem a justificação do preceito. Se o fosse, se o princípio da individualização da responsabilidade se encontrasse inscrito na natureza das coisas, não teria sentido a ressalva de disposição em contrário. Esta só se compreende quando se vê naquele princípio uma pura opção normativa do legislador, que não um suposto ôntico a ele previamente imposto. Por isso, se me é permitido dizê-lo, vejo eu neste artigo
11.º a confirmação da minha ideia já antiga e segundo a qual é viável e adequado considerar as pessoas colectivas – através de um processo de pensamento filosófico analógico – capazes de acção e de culpa jurídico-penais»
(«Pressupostos da punição e causas que excluem a ilicitude e a culpa», Jornadas de Direito Criminal O novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1983, págs. 50 e 51).
Este mesmo autor, em um outro estudo, depois de recordar que o princípio da individualidade da responsabilidade penal, tornado praticamente em dogma na transição do século XVIII para o século XIX – à luz, sobretudo, das chamadas «teorias da ficção» sobre a essência das pessoas morais – passou a ser discutido a partir do Congresso Internacional de Direito Penal de Bucareste
(1929), em nome da convicção de que as exigências programáticas da política criminal devem passar à frente dos preconceitos filosóficos, sustenta que «se, em sede político-criminal, se conclui pela alta conveniência ou mesmo imperiosa necessidade de responsabilização das pessoas colectivas em direito penal secundário», não se vê então «razão dogmática de princípio a impedir que elas se considerem agentes possíveis dos tipos-de-ilícito respectivos».
E logo se acrescenta não ser «impensável ver nas pessoas colectivas destinatárias passíveis do juízo de censura em que a culpa se traduz. Certo que, na acção como na culpa, tem-se em vista um “ser livre” como centro ético-social de imputação jurídico-penal e aquele é o homem individual. Mas não deve esquecer-se que as organizações humano-sociais são, tanto como o próprio homem individual, “obras da liberdade” ou “realizações do ser-livre”; pelo que parece aceitável que em certos domínios especiais e bem delimitados – de acordo com o que poderá chamar-se, segundo Max Müller, o princípio da identidade da liberdade
– ao homem individual possam substituir-se, como centros ético-sociais de imputação jurídico-penal, as suas obras ou realizações colectivas e, assim, as pessoas colectivas, associações, agrupamentos ou corporações em que o ser-livre se exprime» (cf. «Para uma dogmática do direito penal secundário», Direito e Justiça, vol. IV, 1989/1990, pág. 7 e seguintes).
Entre nós, na actualidade, o princípio da responsabilidade penal das pessoas colectivas não é gerador de particular disputa doutrinal, merecendo um quase generalizado consenso entre os autores (cf. entre outros, Lopes Rocha,
«A responsabilidade penal das pessoas colectivas – Novas perspectivas», Direito Penal Económico, pág. 162; José de Faria Costa, «A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos (ou uma reflexão sobre a autoridade nas pessoas colectivas à luz do direito penal)», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2.º, n.º 4, Outubro-Dezembro 1992, pág. 537 e seguintes, e O Perigo em Direito Penal, Coimbra, 1991, pág. 447 e seguintes).
E no plano legislativo, no seguimento da evolução doutrinal iniciada antes ainda da aprovação do Código Penal mas que conheceu então assinalada expressão, foram publicados diversos diplomas que criminalizam determinadas condutas dos seus órgãos ou representantes.
Assim sucedeu, nomeadamente, nos seguintes casos: artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 630/76, de 28 de Julho (ilícitos no domínio das operações cambiais); artigos 21.º do Decreto-Lei n.º 187/83, de 13 de Maio, 32.º e 33.º do Decreto-Lei n.º 424/86, de 27 de Dezembro, e 7.º do Decreto-Lei n.º 37-A/89, de 25 de Dezembro (todas referentes a infracções fiscais aduaneiras).
A consagração da responsabilidade penal das pessoas colectivas operada pelo Decreto-Lei n.º 28/84 não constitui qualquer inovação «fora do sistema», traduzindo-se, ao contrário, em mera aplicação de um princípio vigente no âmbito da matéria a que aquele diploma se reporta.
A autorização legislativa concedida pela Assembleia da República através da Lei n.º 12/83, em matéria de infracções antieconómicas e contra a saúde pública, credenciava o Governo a alterar os regimes em vigor, e a tipificar novos ilícitos penais, com o objectivo de se alcançar maior celeridade e eficácia no combate a esta específica criminalidade.
Ora, «provindo hoje as mais graves e frequentes ofensas aos valores protegidos pelo direito penal secundário, em muitos âmbitos, não de pessoas individuais mas colectivas, a irresponsabilidade directa destas significaria sempre um seu inexplicável tratamento privilegiado perante aquelas» (Figueiredo Dias, Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.ºs 3716 a 3720), por certo que se o decreto-lei delegado não consagrasse, como consagrou, a responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas, não teria utilizado integralmente, em todo o alcance do seu sentido, aquela autorização legislativa.
E assim sendo, há-de concluir-se que o Governo, ao estender às pessoas colectivas e equiparadas a responsabilidade criminal dos crimes definidos no Decreto-Lei n.º 28/84, nomeadamente nos artigos 36.º e 37.º, não ultrapassou os limites contidos na lei de autorização.
4. Afirmou-se em passo anterior não existir obstáculo constitucional na atribuição às pessoas colectivas de responsabilidade criminal.
Cabe agora justificar as razões deste entendimento.
Acompanhando o pensamento dos autores citados, particularmente de Figueiredo Dias (cf. Jornadas, citadas), dir-se-á que no artigo 11.º do actual Código Penal não se consagrou o princípio da individualização da responsabilidade criminal em termos de dele derivar a incapacidade jurídico-penal, ou só de acção ou também de culpa, das pessoas colectivas. E não pode ser esse seguramente nem o sentido nem a justificação do preceito, pois que, a ser assim, a achar-se aquele princípio inscrito na natureza das coisas, não teria explicação a ressalva da locução «salvo disposição em contrário» que ali se contém por forma a proibir a conclusão de que só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal. O excepcionamento da «disposição em contrário» só se poderá compreender quando se vê no princípio da individualização uma pura opção normativa do legislador e não já um suposto
ôntico a ele previamente imposto.
Ora, quando se conclua, em sede político-criminal, pela conveniência ou imperiosa necessidade de responsabilização das pessoas colectivas em direito penal secundário, não se vê razão dogmática de princípio a impedir que elas se considerem agentes possíveis dos tipos-de-ilícitos respectivos. A tese contrária «só pode louvar-se numa ontologificação e autonomização inadmissíveis do conceito de acção, a esquecer que a este conceito podem ser feitas pelo tipo-de-ilícito exigências normativas que o conformem com «uma certa unidade de sentido social». Tão-pouco «parece impensável ver nas pessoas colectivas destinatárias possíveis do juízo de censura em que a culpa se traduz».
E isto porque, em certos domínios especiais e bem delimitados, parece aceitável que ao homem individual possam substituir-se, como «centros
ético-sociais de imputação jurídico-penal», as suas obras ou realizações colectivas e, assim, as pessoas colectivas em que o ser livre se exprime.
E há-de dizer-se que a toda esta retórica argumentativa não se opõe a Constituição, pois que não existe norma ou princípio constitucional a impedir o legislador de prever, no domínio dos crimes antieconómicos e contra a saúde pública (os que aqui importa considerar), a responsabilidade criminal das pessoas colectivas ou equiparadas.
E as razões invocadas em defesa da responsabilização criminal das pessoas colectivas em direito penal secundário valem também, no essencial, para demonstrar a sua conformidade constitucional.
Hoje em dia, as mais graves e frequentes ofensas aos valores protegidos pelo direito penal secundário provêm de pessoas colectivas, existindo uma imperiosa necessidade, em sede político-criminal, de criminalizar determinadas condutas imputadas aos seus representantes.
E esta criminalização não encontra impedimento irremovível ditado pela dogmática do direito penal e dos princípios que o inspiram, quando se afastar uma «ontologificação e autonomização inadmissíveis do direito de acção» e quando se tiver presente que em certos domínios especiais e bem delimitados ao homem individual podem «substituir-se como centros ético-sociais de imputação juridico-penal» as pessoas colectivas.
O artigo 12.º, n.º 2, da Constituição reconhece expressamente às pessoas colectivas capacidade de gozo de direitos e submissão aos deveres
«compatíveis com a sua natureza», superando assim uma concepção de direitos fundamentais exclusivamente centrada nos indivíduos.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, págs. 122 a 124, a determinação de quais sejam esses direitos e deveres «só pode resolver-se casuisticamente», sendo porém claro que «o ser ou não ser compatível com a natureza das pessoas colectivas depende normalmente da própria natureza de cada um dos direitos fundamentais, sendo incompatíveis aqueles direitos que não são concebíveis a não ser em conexão com as pessoas físicas, com os indivíduos».
Ora, nada obsta a que o Estado de direito democrático, ao qual incumbe não apenas «respeitar» os direitos e liberdades fundamentais mas também
«garantir a sua efectivação», possa num quadro jurídico-penal bem delimitado no seu âmbito e na sua génese motivadora, alargar a responsabilidade criminal às pessoas colectivas em ordem à protecção de bens jurídicos socialmente relevantes e cuja defesa é condição indispensável do livre desenvolvimento da personalidade do homem.
Assim sendo, não se tem por verificado qualquer impedimento constitucional à criminalização das pessoas colectivas ao nível do direito penal secundário.”
As considerações tecidas na precedente transcrição do Acórdão n.º 213/95 (em especial, no ponto C-3.) são, em grande parte, transponíveis para o presente caso, pelo que o Decreto-Lei n.º 20-A/90, ao prever, no RJIFNA por ele aprovado, a responsabilização criminal das pessoas colectivas, não desrespeitou a extensão e o sentido da autorização legislativa concedida “para aprovar o regime jurídico das infracções fiscais”, “adapta[ndo] os princípios gerais” vigentes em matéria penal, uma vez que entre estes princípios já se contava a admissibilidade daquela responsabilização.
A isto acresce que, como já se referiu, a própria lei de autorização legislativa (Lei n.º 89/89, de 11 de Setembro) prevê expressamente, na alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º, os limites das penas criminais de multa aplicáveis a “pessoas colectivas ou entidades como tal fiscalmente consideradas”, o que necessariamente representa a outorga de credencial ao legislador autorizado para prever a responsabilização criminal destas entidades.
Por último, há que registar que a responsabilização criminal das pessoas colectivas por infracções criminais fiscais desde há muito fora consagrada pela legislação respectiva, podendo mesmo afirmar-se constituir a regra nesse domínio jurídico. Como refere Nuno Sá Gomes (Direito Penal Fiscal, ed. Centro de Estudos Fiscais da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, Ministério das Finanças, Lisboa, 1983, págs. 193 e seguintes), a regra era a da responsabilidade penal fiscal das pessoas colectivas (e dos entes de facto com personalidade tributária) nos impostos administrados pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos: cf. artigos 150.º do Código da Contribuição Industrial, 315.º e 378.º do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, 71.º do Código do Imposto Profissional, 86.º do Código do Imposto de Capitais, 73.º e 108.º do Código do Imposto Complementar, 55.º do Código do Imposto de Mais-Valias, 167.º e 178.º do Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, 119.º do Código do Imposto de Transacções, 27.º do Regulamento do Imposto sobre Veículos e 16.º do Código de Processo das Contribuições e Impostos.
Por todas estas razões, conclui-se que, no presente caso, não ocorreu inconstitucionalidade orgânica por alegado excesso no uso de autorização legislativa.
2.2. Relativamente à questão da inconstitucionalidade material, cumpre, antes de mais, apreciar a questão prévia suscitada pelo Ministério Público no sentido de não vir colocada uma questão de inconstitucionalidade normativa sindicável por este Tribunal.
Diversamente do aí sustentado, entende-se que, neste tipo de situações, se mostra delineada uma questão de inconstitucionalidade normativa, cognoscível em recurso de constitucionalidade, já que o processo interpretativo, alegadamente extensivo, seguido pelo tribunal recorrido, decorre, não de uma pura operação subsuntiva no tipo, mas da adopção de um critério normativo, dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas. Como relativamente a questões relacionadas com a prescrição do procedimento criminal este Tribunal tem sustentado (cf. Acórdãos n.ºs 205/99, 285/99, 122/00, 317/00,
494/00, 557/00 e 585/00), não estamos, nestas hipóteses, perante o eventual confronto directo da decisão judicial recorrida, na sua substância meramente decisória, com a Constituição, mas antes perante uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, apesar de tal questão resultar de o tribunal recorrido ter atingido um resultado interpretativo eventualmente proibido, em face das restrições interpretativas impostas pelo princípio da legalidade em direito penal. Não se trata de suscitar o mero controlo pelo Tribunal Constitucional da decisão recorrida, pois não se submete à sua apreciação um processo interpretativo utilizado pontualmente na decisão recorrida, isto é, a inserção do caso concreto num âmbito normativo pré-determinado pelo julgador. Não é um tal momento de sotoposição do caso no quadro lógico decorrente da interpretação da norma o que verdadeiramente se questiona, mas antes um certo conteúdo interpretativo atribuído ao artigo 7.º, n.º 1, do RJIFNA. Questiona-se, sem dúvida, se a fixação de sentido da norma, segundo a qual esta abrangerá, em geral, a responsabilização da pessoa colectiva por crimes cometidos por seus representantes de facto é uma interpretação normativa compatível com a Constituição, em face dos artigos 29.º, n.ºs 1 e 3, e 30.º, n.º 3. É, assim, o conteúdo final da interpretação ou, dito de outro modo, o resultado interpretativo pelo qual se atinge a norma que decide o caso, que é submetido ao controlo de constitucionalidade.
A isto acresce que o referido conteúdo interpretativo não é apenas determinado pelo caso concreto, mas é referido com elevada abstracção. Emerge, assim, claramente, de um momento interpretativo a questão de constitucionalidade. Não se trata de um momento meramente aplicativo da norma ao caso concreto, isto é, de uma situação em que o recorrente suscite apenas a correcção lógico-jurídica da inclusão do caso na norma. Trata-se, antes, da indicação, com suficiente autonomia, dos critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos pelo julgador ao texto legal para decidir casos semelhantes. Neste caso, foi enunciada pelo julgador uma dimensão normativa que, segundo a recorrente, não corresponde fielmente às palavras do legislador, violando, por isso, o princípio da legalidade, sendo essa dimensão normativa que a recorrente pretende ver apreciada.
Ora, o Tribunal Constitucional não pode deixar de controlar dimensões normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultantes de uma aplicação analógica ou interpretação extensiva, em casos em que estejam constitucionalmente vedados certos modos de interpretação ou a analogia. O resultado do processo de interpretação ou criação normativas (tanto de meras dimensões normativas como de normas autónomas), ínsito na actividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de controlo de constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativas, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgador.
Conclui-se, assim, nada obstar ao conhecimento desta segunda questão.
2.3. Aqui chegados, recordando as considerações constantes do Acórdão n.º 213/95, acima transcritas, sobre a justificação político-criminal da responsabilização das pessoas colectivas e sobre a sua conformidade constitucional, e analisando a norma do artigo 7.º, n.º 1, do RJIFNA no contexto em que a mesma se insere, a questão que se coloca, como acabou de explicitar-se, é a de saber se a interpretação dada a esta norma pela decisão recorrida se evidencia como violadora do princípio da legalidade ou da tipicidade penal, ou, dito de outro modo, se a interpretação normativa questionada ultrapassa o sentido possível das palavras da lei, criando situações imprevisíveis (em termos de razoabilidade) para os destinatários das normas penais e consequentemente privando estas normas da possibilidade de cumprirem a sua função específica de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos.
A tese que restringe o conceito de “representante”, usado no n.º 1 do artigo 7.º do RJIFNA, aos representantes “legais” ou
“formais” da pessoa colectiva, arranca de um argumento histórico, extraído do debate travado no âmbito da Comissão Revisora do Código Penal a propósito do que
é hoje o artigo 12.º do Código Penal, que regula a responsabilização criminal da actuação em nome de outrem (“1. É punível quem age voluntariamente como titular de um órgão de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, ou em representação legal ou voluntária de outrem, mesmo quando o respectivo tipo de crime exigir: a) Determinados elementos pessoais e estes só se verificarem na pessoa do representado; ou b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado. 2. A ineficácia do acto que serve de fundamento à representação não impede a aplicação do disposto no número anterior.”). Na verdade, interrogado sobre se a doutrina do artigo só devia valer para as hipóteses em que é ineficaz o acto jurídico, fonte dos poderes de representação, “ou se deverá também aplicar-se a toda a representação de facto, mesmo quando não haja título”, o Autor do Projecto, Eduardo Correia, respondeu parecer-lhe “que é sempre necessário que haja um título que confira poderes ao representante”.
Não se afigura, porém, que este elemento – seja qual for o valor que se atribua ao elemento histórico na interpretação das leis – surja como decisivo para a solução do presente caso.
Desde logo, o âmbito de previsão é diverso: a
“representação legal ou voluntária de outrem” prevista no citado artigo 12.º não se cinge às pessoas colectivas e entes equiparados, mas abrange também a representação de pessoas físicas, como, por exemplo, os menores ou incapazes. Depois, mesmo quando respeita a entes colectivos, trata-se do “lugar inverso” da previsão do ora questionado artigo 7.º do RJIFNA, sendo a norma correspondente ao artigo 12.º do Código Penal a do artigo 6.º do RJIFNA: nestas duas regula-se, entre o mais, os termos em que os “representantes” respondem por actos que pratiquem nessa qualidade; no artigo 7.º regulam-se os termos em que a pessoa colectiva ou equiparada pode ser responsabilizada pelos crimes praticados pelos seus “representantes”, não sendo obrigatória uma absoluta simetricidade entre as duas regulações. Finalmente, enquanto no direito criminal “primário” ou “de justiça” a responsabilização das pessoas colectivas continua a ter natureza absolutamente excepcional, no direito penal
“secundário”, designadamente no económico e fiscal, ela é a regra e surge mesmo como requisito indispensável para a eficiência do sistema sancionatório. A formulação de um conceito jurídico-penal único de representação a partir do artigo 12.º do Código Penal e sua aplicação à norma em causa não seria, pois, apenas uma transposição para uma norma com sentido inverso da deste artigo 12.º, como também uma transposição para um campo, o do direito penal económico e secundário, onde se prevê um instituto sem lugar paralelo, em regra, no Código Penal.
Não se justifica, pois, uma acrítica transposição para o direito penal fiscal de considerações eventualmente pertinentes no direito criminal “de justiça”. Sempre se dirá, no entanto, que, face à versão originária do artigo 227.º do Código Penal, relativo à insolvência dolosa, chegou a ser admitida, para a hipótese de o devedor (agente do crime) ser uma pessoa colectiva, a realização do tipo por “meros sócios ou outros agentes que não sejam titulares, do ponto de vista jurídico, dos órgãos da pessoa colectiva, mas o sejam apenas de facto” desde que existisse, pelo menos, “a aparência de representação ou de actuação como titular de órgão de pessoa colectiva” (cf. Maria Fernanda Palma, Aspectos Penais da Insolvência e da Falência: Reformulação dos Tipos Incriminadores e Reforma Penal, separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXVI, 1995, pág. 412). Na redacção dada a este preceito pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, o n.º 5 veio estipular que
“Sem prejuízo do disposto no artigo 12.º, é punível nos termos dos n.ºs 1 e 2 deste artigo, no caso de o devedor ser pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou direcção efectiva e houver praticado algum dos factos previstos no n.º 1”
(sublinhado acrescentado). É assim o próprio Código Penal a, relativamente a este tipo de crime, responsabilizar meros “administradores/gerentes de facto”
(cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, págs. 411 e 412).
Cingindo-nos, como cumpre, ao âmbito do direito penal fiscal, importa recordar que a legislação anterior ao RJIFNA, dispersa pelos diversos Códigos que regulavam cada um dos impostos, a par de recorrentes referências aos “directores, administradores, gerentes, membros do conselho fiscal, liquidatários ou administradores da massa falida”, também se referia aos
“técnicos de contas que forem responsáveis” (artigo 147.º do Código da Contribuição Industrial), aos “técnicos de contas e guarda-livros ou outros que forem responsáveis” (artigo 109.º do Código do Imposto de Transacções) e aos
“guarda-livros e outros responsáveis” (artigo 80.º do Código do Imposto Profissional), previsões estas que Nuno Sá Gomes (obra citada, pág. 231) considerava de alcance geral.
Embora estas formulações não tenham sido reproduzidas no RJIFNA, elas permitem compreender que a especificidade do direito penal fiscal implicará a adopção de critérios não estritamente formalistas na admissibilidade da responsabilização dos entes colectivos, relevando sobretudo que o agente do crime não surja a actuar como um terceiro, em relação a esse ente, mas antes como um seu elemento que, inserido na respectiva estrutura organizativa, actuando, no desempenho das funções que nessa estrutura lhe são atribuídas, em nome e no interesse do ente colectivo, designadamente quando essa actuação seja tolerada pelos órgãos competentes da pessoa colectiva. A responsabilização da pessoa colectiva pela actuação desses seus “representantes”, que ela controla ou, pelo menos, tem a possibilidade e o dever de controlar, surge como necessária a “uma mais consequente e firme reacção do sistema penal perante actividades criminosas que, mercê da estrutura e natureza da personalização colectiva, tendem a escapar por entre as malhas dogmáticas do direito penal”
(Paulo Saragoça da Matta, O Artigo 12.º do Código Penal e a Responsabilidade dos
“Quadros” das “Instituições”, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pág. 6).
Isto posto, cumpre dar resposta à pergunta formulada no início deste ponto: a interpretação dada ao artigo 7.º do RJIFNA (não sendo de considerar, por inaplicável ao caso, a legislação posterior) pelo acórdão recorrido viola o princípio da legalidade penal, por ultrapassar o sentido possível das palavras da lei, criando situações imprevisíveis (em termos de razoabilidade) para os destinatários das normas penais e consequentemente privando estas normas da possibilidade de cumprirem a sua função específica de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos?
A resposta é negativa.
Desde logo, a interpretação acolhida é adequada às finalidades do sistema punitivo em causa, sob pena de, ilibando a pessoa colectiva de responsabilidade por crimes praticados, em seu nome e em seu proveito, por seus representantes “reais” só pelo motivo de estes não ostentarem título jurídico que os permita qualificar como representantes “formais”, se criar uma enorme lacuna de punibilidade quanto a infracções que podem revestir assinalável gravidade social. Ora, perante mais do que uma interpretação possível da lei, é de presumir que o legislador tenha querido a mais adequada aos fins da sua intervenção.
Na verdade, a expressão “representante”, sem qualquer qualificativo – diversamente do que acontece no imediatamente precedente artigo
6.º –, é, à partida, idónea a abranger quer representantes com legitimação representativa (que, aliás, para efeitos civis, pode ser superveniente), quer
“representantes de facto”.
Depois, a norma abrange não apenas “pessoas colectivas”, em sentido jurídico estrito, mas também entidades “equiparadas”, que abrangerão, para utilizar a enumeração do precedente artigo 6.º, n.º 1, as “sociedades irregularmente constituídas” e as meras “associações de facto”. Ora, relativamente a estas “entidades fiscalmente equiparadas” (como agora se refere no correspondente artigo 7.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), não faz qualquer sentido a distinção entre “representantes legais” e “representantes de facto”, não sendo crível que o legislador tenha, no mesmo preceito, utilizado a mesma expressão para significar conceitos distintos.
O resultado interpretativo assim obtido não se mostra, portanto, violador do princípio da tipicidade criminal e, tratando-se de crime cometido por representante, mesmo que apenas “de facto”, do ente colectivo, em cujo nome e interesse actua, não se mostra desrespeitado o princípio do carácter individual da responsabilidade penal. O ente colectivo não será responsabilizado por factos de terceiro, mas sim por factos praticados por um elemento da sua organização, actuando em seu nome e no seu interesse e sem desrespeitar ordens ou instruções de “quem de direito”.
No caso dos autos, como se refere no acórdão recorrido, trata-se de crimes imputados a um director-geral e a um director comercial da recorrente, cometidos em seu nome e no seu interesse e sem contrariar instruções ou ordens de superiores.
A eventual responsabilização criminal da recorrente, neste contexto, propiciada pela interpretação normativa questionada, não se mostra, pois, violentadora dos princípios contidos nos artigos 29.º, n.ºs 1 e 3, e 30.º, n.º 3, da Constituição.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em negar provimento ao presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Julho de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues (Vencido de acordo com a declaração de voto anexa)
Maria Fernanda Palma (Vencida nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de Voto Votei vencido quanto ao conhecimento da questão de inconstitucionalidade material, pois entendo que o Tribunal excedeu os seus poderes de cognição.
2. Na verdade, propende-se para considerar que não traduz uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa o problema atinente à forma ou ao modo como o direito ordinário é interpretado, para daí se concluir que a norma alcançada por via interpretativa, ao ultrapassar o campo semântico dos conceitos jurídicos empregues pelo legislador (e por esse modo procedendo a uma extensão ou analogia desses mesmos conceitos), viola o princípio da legalidade que constitui princípio constitucional do direito criminal (e do direito fiscal – art.º 103º, n.º 2 da CRP), consequentemente se postando essa interpretação como inconstitucional por violação do artigo 29º, números 1 e 3, da Lei Fundamental.
Esta posição sedimenta-se na jurisprudência deste Tribunal, actualmente maioritária, como se pode constatar pelos Acórdãos n.os 196/2003 e
197/2003, inéditos, relativos à questão paralela da legalidade e da tipicidade fiscais, de que foi relator o autor deste voto de vencido, onde se seguiu, de perto, a doutrina do Acórdão n.º 674/99 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 25 de Fevereiro de 2000), que mais extensamente tratou a questão, e a que o autor deste voto aderiu por inteiro.
3. Disse-se, a tal propósito, neste aresto, ao enfrentar-se a questão de saber se pode considerar-se um verdadeiro problema de inconstitucionalidade normativa quando está em causa um processo interpretativo que, por não ter respeitado os limites da interpretação da lei criminal decorrentes do princípio da legalidade, conduz a uma analógica ou extensiva aplicação de determinados preceitos:-
«[...] Resta, porém, saber se essa questão se reconduz a uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, isto é, a uma questão que caiba ao Tribunal Constitucional conhecer, no âmbito do recurso de constitucionalidade.
50. O Tribunal Constitucional, pela sua 2ª Secção, começou por considerar que, em tais casos, se estaria perante «a inconstitucionalidade do acto de julgamento, e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica», pelo que se lhes não aplicaria o sistema de fiscalização da constitucionalidade, ao qual estão «apenas sujeitos os actos do poder normativo» (cfr. Acórdão nº
353/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º vol., págs. 571 e segs.).
Contudo, mais tarde, no Acórdão nº 141/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs. 599 e segs.), o Tribunal Constitucional, pela sua 1ª Secção, embora com o voto de vencido do Exmº Presidente, Consº Cardoso da Costa, deu resposta afirmativa ao problema. Afirmou-se então:
«De facto, poderia sustentar-se que o Tribunal Constitucional carecia de competência para conhecer do objecto deste recurso, porquanto não estaria em causa propriamente matéria normativa (norma inconstitucional, numa certa interpretação da mesma), mas matéria decisória (o Supremo Tribunal de Justiça, ao confirmar a decisão condenatória da primeira instância, teria aplicado analogicamente uma norma incriminatória, em contravenção imediata ao disposto no artigo 1º, nº 3, do Código Penal, só mediatamente se podendo considerar que esta decisão judicial teria violado os nºs. 1 e 3 do artigo 29º da Constituição
[...].
Não obstante o carácter sugestivo deste raciocínio, crê-se que o mesmo não procede. De facto, o recorrente suscitou no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a questão de inconstitucionalidade da norma [...]. Sustentou aí que o tribunal havia interpretado extensivamente ou aplicado analogicamente certa norma incriminatória, sendo tal interpretação ou aplicação analógica através da criação de uma norma análoga aplicável a um caso omisso, contrárias à Constituição (no caso de se estar perante uma interpretação extensiva, seria também esta inconstitucional tal como o seria, por idêntica razão, o nº 3 do artigo 1º do Código Penal).
Ora, num plano perfunctório de análise de verificação dos pressupostos do recurso de constitucionalidade, ou seja, numa avaliação prima facie de tais pressupostos, entende-se que os mesmos se verificam no caso concreto. Saber se a interpretação perfilhada foi ou não inconstitucional faz parte já do conhecimento da questão de fundo ou de mérito.
[...]»
51. Esta última jurisprudência, porém, não se sedimentou. Com efeito, posteriormente, o Tribunal Constitucional veio a entender, nomeadamente no Acórdão nº 634/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º vol., págs. 243 e segs.), no Acórdão nº 221/95, (Diário da República, II Série, de 27 de Junho de
1995), no Acórdão nº 756/95, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., págs. 775 e segs.), no Acórdão nº 682/95, (inédito) ou, mais recentemente, no Acórdão nº 154/98 (inédito), que hipóteses em que se questionem certas interpretações normativas por ofensa do princípio da legalidade penal - ou hipóteses idênticas, no âmbito do respeito pelo princípio da legalidade fiscal - não traduzem verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa, mas reflectem antes questões de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento.
Assim, pode ler-se no citado Acórdão nº 221/95:
«Portanto, o que a recorrente questiona, no essencial, no recurso interposto no tribunal a quo, não é a norma [...] interpretada em desarmonia com a Constituição, mas, antes, a decisão judicial [...] que, inconstitucionalmente, e na sua tese, tê-la-ia prejudicado, ao aplicar certa norma ao seu caso, através de um método de interpretação colidente com as regras gerais de interpretação das leis fiscais e os princípios constitucionais na matéria [...]».
E, por outro lado, escreveu-se no já mencionado Acórdão nº 154/98:
«Pretende o recorrente que o Tribunal recorrido interpretou a norma do artigo 292º do Código Penal de forma extensiva, aplicando-o analogicamente, desde logo violando o disposto no nº 1 do artigo 29º da Constituição.
No entanto, não é o controlo normativo - legitimante do recurso de constitucionalidade - que está em causa. [...]
Ora, esse objectivo não se compagina com aquele controlo normativo, abrindo via, quando muito, a um recurso de amparo que não está entre nós previsto».
E sublinhe-se também que no anteriormente referido Acórdão nº 682/95 se entendeu sugestivamente que, em tais hipóteses, «o que está em causa não é uma específica dimensão normativa do preceito», mas antes «a determinação do seu
âmbito de aplicação, de acordo com a sua ratio», tarefa que «corresponde apenas
à subsunção jurídica do caso, não havendo nenhum sentido específico da norma confrontável com a Constituição». Por isso, aí mesmo se concluiu que não estaria em causa «qualquer específica questão de constitucionalidade, mas apenas um problema de averiguação da intenção normativa, objectivamente considerada, e de subsunção».
52. Mais recentemente, porém, esta posição do Tribunal - que já não era totalmente unânime (cfr. declarações de voto do Exmo. Conselheiro José de Sousa Brito apostas ao Acórdão nº 634/94 e ao Acórdão nº 756/95) - parece ter-se inflectido através do Acórdão nº 205/99 (Diário da República, II Série, de 5 de Novembro de 1999) e do Acórdão nº 285/99 (Diário da República, II Série, de 21 de Outubro de 1999).
Com efeito, entendeu-se no citado Acórdão nº 205/99:
« É objecto do presente recurso de constitucionalidade o confronto de uma interpretação do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982 com os artigos 29º, nºs 1 e 2 e 32º, nºs 1 e 4, da Constituição.
Consubstancia um tal confronto uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa para cujo conhecimento o Tribunal Constitucional tem competência ou estar-se-á, apenas, perante o pedido de apreciação de uma eventual contradição da decisão recorrida, na sua substância meramente decisória, com a Constituição?
Impõe-se o entendimento segundo o qual o Tribunal Constitucional se confronta, neste caso, com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, apesar de tal questão resultar de o tribunal recorrido ter atingido um resultado interpretativo eventualmente proibido, em face das restrições interpretativas impostas pelo princípio da legalidade em direito penal.
Com efeito, várias razões intercedem a favor de que a questão colocada não pretende suscitar o mero controlo pelo Tribunal Constitucional da decisão recorrida.
Assim, desde logo, o recorrente não submete à apreciação do Tribunal Constitucional um processo interpretativo utilizado pontualmente na decisão recorrida, isto é, a inserção do caso concreto num âmbito normativo pré-determinado pelo julgador. Não é um tal momento de sotoposição do caso no quadro lógico decorrente da interpretação da norma o que verdadeiramente se questiona, mas antes um certo conteúdo interpretativo atribuído ao artigo 120º, nº 1, alínea a), o qual é identificado. Questiona-se, sem dúvida, se a fixação de sentido da norma, segundo a qual esta abrangerá, em geral, na interrupção da prescrição, a notificação ao arguido do despacho do Ministério Público para interrogatório no inquérito e a realização deste“ é uma interpretação normativa compatível com a Constituição, em face dos artigos 29º, nºs 1 e 3 e 32º, nºs 1 e
4. É, assim, o conteúdo final da interpretação, ou dito de outro modo, o resultado interpretativo pelo qual se atinge a norma que decide o caso, norma que eventualmente não tem competência constitucional para o decidir, que é submetido ao controlo de constitucionalidade.
A isto acresce que o referido conteúdo interpretativo não é apenas determinado pelo caso concreto, mas é referido com elevada abstracção, na base de uma linha jurisprudencial anterior que utilizou a mesma perspectiva interpretativa para casos idênticos.
Emerge, assim, claramente, de um momento interpretativo a questão de constitucionalidade. Não se trata de um momento meramente aplicativo da norma ao caso concreto, isto é, de uma situação em que o recorrente suscite apenas a correcção lógico-jurídica da inclusão do caso na norma. Trata-se, antes, da indicação, com suficiente autonomia, dos critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos pelo julgador ao texto legal para decidir casos semelhantes. Neste caso, foi enunciada pelo julgador uma dimensão normativa que, segundo o recorrente, não corresponde fielmente às palavras do legislador, violando, por isso, o princípio da legalidade, sendo essa dimensão normativa que o recorrente pretende ver apreciada.
Ora, o Tribunal Constitucional não pode deixar de controlar dimensões normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultantes de uma aplicação analógica, em casos em que estejam constitucionalmente vedados certos modos de interpretação ou a analogia. O resultado do processo de interpretação ou criação normativa (tanto de meras dimensões normativas como de normas autónomas), ínsito na actividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de controlo de constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativa, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgador.
Questão afim da anterior é a de saber se o objecto do recurso é efectivamente o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal ou antes uma norma construída pelo julgador através de um processo de integração de lacuna por analogia, nos termos do artigo 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil. Note-se, porém, que em ambos os casos estaremos confrontados com uma norma cuja conformidade à Constituição é sindicável perante o Tribunal Constitucional. Na primeira hipótese, concluir-se-á que a aplicação analógica ainda constitui uma actividade interpretativa, em sentido amplo, dando como resultado uma certa dimensão normativa que pode contrariar normas ou princípios constitucionais. Na segunda hipótese, estará em causa uma norma não escrita igualmente susceptível de afrontar a Constituição quer quanto ao seu conteúdo quer quanto à sua génese (a circunstância de ser obtida mediante uma aplicação analógica vedada pelo artigo
29º, nºs 1 e 3, da Constituição feri-la-á de inconstitucionalidade material).
Todavia, esta questão acaba por ser de cunho puramente teorético na medida em que estará sempre em causa a questão de saber se é compatível com a Constituição a norma que determina a interrupção da prescrição obtida a partir do artigo
120º, nº 1, alínea a) do Código Penal. E, independentemente de estar em causa uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex certa que lhe é ínsita».
Também este aresto não obteve unanimidade.
Com efeito, o Exmo. Conselheiro-Presidente manifestou opinião contrária à doutrina que obteve vencimento - em voto de vencido que juntou a este mesmo Acórdão nº 205/99 - tendo então considerado que se não deveria conhecer do recurso, «por entender que o seu objecto extravasa o âmbito da competência e do poder de cognição do Tribunal», e que a argumentação desenvolvida em contrário no acórdão não punha em crise a conclusão «de que, ao cabo e ao resto, já não está em causa, na situação, uma questão de inconstitucionalidade ‘normativa’ – tal como o não estava nos casos versados nos Acórdãos nº 682/95 e 221/95, os quais [...] não são ‘estruturalmente’ diferentes do ora em apreço».
Posição idêntica de afastamento relativamente a esta nova corrente jurisprudencial viria também posteriormente a ser manifestada pelo ora relator, através de declaração de voto aposta, por sua vez, ao mencionado Acórdão nº
285/99.
53. Acerca da questão em apreço, designadamente da eventual extensão do sistema de controlo da constitucionalidade às normas que se extraem da integração de lacunas, afirma Rui Medeiros (A Decisão de Inconstitucionalidade - Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, págs. 340 a 342):
«A conclusão adoptada não significa, porém, que o Tribunal Constitucional possa fiscalizar a constitucionalidade, não já da norma determinada através do processo de integração de lacunas, mas antes do próprio processo de obtenção da regra aplicável. A questão ganha particular relevância nos domínios em que existe uma proibição constitucional de recurso à analogia. É o que sucede, concretamente, com o princípio constitucional da legalidade em matéria penal.
Há quem entenda que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que, aplicando analogicamente uma norma incriminadora, violam o princípio constitucional da legalidade em matéria penal.
Não duvidamos que essa é a solução mais consentânea com a lógica do recurso de amparo ou da queixa constitucional. Mas, já o sabemos, o legislador constitucional português não quis introduzir um sistema semelhante ao da acção constitucional de defesa de direitos fundamentais. Ora, independente da questão de saber se a violação do nullum crimen sine lege stricta envolve ou não uma inconstitucionalidade directa, a verdade é que, quando invoca a proibição da analogia, o que o recorrente suscita é «a inconstitucionalidade do acto de julgamento e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica». Sem dúvida que, nos casos em que um tribunal interpreta uma lei em desconformidade com a Constituição, a inconstitucionalidade não pode apenas ser imputada ao legislador, pois, sendo possível atribuir à lei um sentido conforme com a Constituição, a disposição legal em si é válida. Mas, na hipótese aqui em apreciação, a inconstitucionalidade, ainda que se convole numa inconstitucionalidade material, reporta-se unicamente ao processo de integração de lacunas adoptado pelo tribunal. Ora, uma coisa é dizer que a norma que um tribunal extrai, ainda que por analogia, de um acto normativo pode ser fiscalizada pelo Tribunal Constitucional, outra, bem diferente, á afirmar que a própria decisão jurisdicional constitui um acto normativo sindicável pelo Tribunal Constitucional. De resto, se assim não fosse, «todas as decisões judiciais, enquanto tais, susceptíveis de fiscalização da constitucionalidade
(...). E assim se defraudaria a Constituição, que expressamente pretendeu que o controlo da constitucionalidade fosse um controlo eminente normativo.
Tudo somado, é possível concluir que, nos casos em que o próprio legislador pode (sem ofender a Constituição) estabelecer por via legislativa solução idêntica àquela que resultava da interpretação ou integração inconstitucional da lei realizada pelo tribunal a quo, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso».
É para a transcrita fundamentação lógica - válida necessariamente, tanto para as formas não admissíveis de interpretação extensiva, como para a interpretação analógica - que ora se remete, assim se confirmando a jurisprudência deste Tribunal seguida entre 1994 e 1998 e vertida nos arestos anteriormente citados.
[...]
De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma «operação equivalente», designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr. declaração de voto do Consº Sousa e Brito ao citado Acórdão nº 634/94, bem como o já mencionado Acórdão nº 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.
Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens -, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu
«sentido natural» (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento - alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional - deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa. Assim, por exemplo, e no caso dos autos, para decidir a questão de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional seria, em primeira linha, chamado a resolver as controvérsias doutrinais respeitantes à factualidade típica do crime de burla (cfr., verbi gratia, José de Sousa e Brito, A burla do artigo 451º do Código Penal – Tentativa de sistematização, Scientia Ivridica, Tomo XXXII, 1983, págs. 131 e segs.; e Maria Fernanda Palma e Rui Pereira, O Crime de Burla no Código Penal de 1982-95, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXV, 1994, págs. 321 e segs.).
[...].
4. Por outro lado, dizer-se, como se afirma no Acórdão, para sustentar que o reexame do processo interpretativo levado a cabo pelo tribunal ordinário consubstancia, ainda, uma questão normativa de que o Tribunal Constitucional poderá conhecer, que o “o processo interpretativo, alegadamente seguido pelo tribunal recorrido, decorre, não de uma pura operação subsuntiva no tipo, mas da adopção de um critério normativo, dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas”
(itálico acrescentado), é colocar num mesmo e único plano duas dimensões do juízo decisório completamente distintas: de um lado, o juízo de determinação do sentido normativo aplicando; do outro, a aplicação aos factos concretos da causa desse critério normativo de decisão, antes apurado. A tarefa de interpretação da lei, a ser levada a cabo de acordo com os critérios normativos pré-estabelecidos (cf., quanto ao direito civil, art.º 9º do C. Civil que não deixa de ser uma norma geral), não é nenhuma “operação subsuntiva no tipo”. Na verdade, o que o intérprete procura alcançar, no processo interpretativo, é, ainda e tão somente, qual é o critério normativo de decisão que a norma consubstancia, critério esse que deve ser aferido em termos gerais e abstractos ou seja, com a natureza própria de norma. E tanto assim é que essas dimensões interpretativas que o tribunal aplique podem ser objecto de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade [cf. art.º 70º, n.º1, alíneas a), b) e f)].
É claro que, na sua elaboração, o juiz deverá atender aos interesses do caso. Mas estes devem ser ponderados não enquanto interesses concretos ou específicos do caso, mas enquanto arquétipos ou categorias cujo relevo se deve sopesar, tendo em conta que o critério de decisão deve valer para todos os casos paralelos ou análogos (categorias de casos). Daí que todo o resultado da interpretação deva poder ser aplicado a “uma pluralidade de situações concretas”. Dimensão diferente é o juízo de subsunção dos factos do litígio a esse critério normativo antes determinado, designado pelo Acórdão de operação subsuntiva no tipo. Não obstante este juízo envolver ainda uma actividade judicativa de ponderação das circunstâncias do caso, precisamente para indagar se elas se integram nos arquétipos antes considerados, estamos já numa operação essencialmente subsuntiva. Finalmente, o Acórdão despreza inteiramente a circunstância de, em todo o processo interpretativo, haver critérios normativos a respeitar, todos eles de elevada abstracção, - e não só nos casos em que a lei está sujeita aos princípios da legalidade e da tipicidade penal ou fiscal - ou seja, que toda a actividade de interpretação está condicionada directamente pelos critérios definidos na norma sobre a interpretação e indirectamente pelos factores ou elementos a que ela manda atender, sendo que é, neste domínio, que o intérprete deve considerar aqueles princípios da legalidade e da tipicidade.
Benjamim Rodrigues
Declaração de voto
1. Votei vencida o presente Acórdão quanto à alegada questão da inconstitucionalidade material do artigo 7º, nº 1, do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, quanto interpretado no sentido de a expressão “representante” incluir os chamados representantes de facto, por entender que tal norma viola o princípio de legalidade consagrado no artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição. O problema versado no Acórdão é, essencialmente, o de saber se, tendo o legislador previsto que “as pessoas colectivas e equiparadas são responsáveis pelos crimes previstos no presente Regime Jurídico quando cometidos pelos seus
órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo”, será uma interpretação constitucionalmente legítima e não violadora do princípio da legalidade a que apresente como resultado a inclusão de agentes que não tenham a qualidade de representantes legais no conceito de representante de uma pessoa colectiva Estaremos já perante uma equiparação analógica dos representantes de facto aos representantes compreendidos no sentido normativo específico do referido preceito ou estaremos ainda a realizar uma interpretação permitida? A resposta que tal pergunta reclama de acordo com os princípios constitucionais aqui relevantes é, no meu entendimento, a primeira, por uma razão fundamental: a expressão “representante de pessoa colectiva” só abrange com precisão e determinabilidade as pessoas que são representantes legais de pessoas colectivas, não podendo o intérprete fundamentar, consistentemente, na expressão
“representante de pessoa colectiva” a inclusão de quaisquer pessoas que ajam no interesse e em nome de uma pessoa colectiva ou, mesmo mais restritivamente, certas categorias de pessoas que ajam nessas condições. Ao dar esse passo, o intérprete estará a arrogar-se um papel que apenas cabe ao legislador democrático e a fomentar a insegurança nos destinatários do Direito sobre as condições em que uma actuação (neste caso, da pessoa colectiva em conexão com a de certas pessoas singulares) suscita responsabilidade penal.
2. Esta razão fundamental subjaz à minha discordância quanto a vários argumentos em que a decisão do Tribunal Constitucional se alicerçou e que são, essencialmente, os seguintes: a) Argumento da justificabilidade da punição das pessoas colectivas quando as infracções criminais são praticadas por meros representantes de facto e não pelos seus órgãos ou representantes legais. Pretende o Acórdão, com tal argumento, demonstrar que no conceito de representante cabem os chamados “representantes de facto”. Porém, razões desse tipo, que apenas justificam a necessidade da pena, não são pertinentes em face do problema interpretativo de que cura o princípio da legalidade, pois não ultrapassam o plano da igualdade de razões que caracteriza o modo de inferência lógica que é a analogia, proibida em Direito Penal. Em rigor, o princípio da legalidade e o seu corolário da tipicidade sobrepõem-se absolutamente à necessidade político-criminal. Aliás, o próprio princípio da necessidade da pena ou da intervenção mínima do Direito Penal não conduz necessariamente a uma lógica de incriminações por igualdade de razões, podendo mesmo contrariar essa lógica. De qualquer forma, o facto de haver razões político-criminais e até de igualdade para que a actuação típica dos representantes de facto seja fundamento de responsabilidade penal das pessoas colectivas não resolve, neste caso, o problema do âmbito da interpretação típica. b) Argumento da relativização da simetria entre o artigo 12º do Código Penal e o artigo 7º, nº 1, do RJIFNA. Não é relativizável, do modo como o Acórdão sustenta, o argumento da simetria entre a norma do Código Penal que prevê a responsabilidade dos agentes individuais por factos praticados em nome e no interesse da pessoa colectiva que se restringe aos representantes legais e titulares dos órgãos e a interpretação da presente norma. Com efeito, se a primeira regra resolve o problema de saber quem é responsável quando actua em nome de outrem, é razoável que regra idêntica resolva a questão de saber quando alguém se considera representado para o efeito de ser penalmente responsável pela actuação do representante. A simetria, se não for explicitamente afastada pelo legislador, é justificável logicamente pois, em ambos os casos, pressuposto do respectivo critério é uma certa unidade de imputação entre representante e representado. Tal unidade de imputação explica, num caso, que só o representante legal, que age no interesse e em nome de outrem, seja responsável e, no outro caso, que o representado seja responsável apenas pela actuação daquele que o representa legalmente. c) Argumento do artigo 227º, nº 5, do Código Penal. O facto de o artigo 227º, nº 5, do Código Penal, se referir, após a Revisão de
1998, aos agentes de facto nos crimes de insolvência dolosa só demonstra que o legislador necessitou de afastar explicitamente, numa certa situação, a simetria anteriormente referida, que, de outro modo, se imporia por força do argumento sistemático. O legislador determinou pois, por opção democrática, um alcance mais vasto para a norma através de uma orientação segura dada ao intérprete. Não tem por isso sentido invocar a opinião que exprimi, no âmbito doutrinário, antes da Revisão do Código Penal de 1998, visto que não me ocupava da interpretação jurídica de tal preceito mas apenas da solução para um problema no plano da política legislativa. d) Argumento da paridade entre pessoas colectivas e equiparadas. Não é válida a conclusão retirada no Acórdão de que a equiparação, no preceito sub judicio, das pessoas colectivas a outras entidades (relativamente às quais não se poderia conceber a existência de órgãos ou a representação legal) justificaria que também as formas equiparáveis funcionalmente à representação legal se deveriam admitir quanto às pessoas colectivas. Tal inferência é insustentável logicamente, embora possa parecer atraente segundo o senso comum. A equiparação de um grupo a outro (de certas entidades a pessoas colectivas) não permite concluir que todas as características específicas dessas entidades, que são meramente equiparadas, passem a valer para o primeiro grupo. O facto de não ter sentido exigir representação legal nas entidades equiparadas devido à sua natureza não significa que tal espécie de representação também não deva ser exigida às pessoas colectivas. É, na verdade, uma extensão do termo de comparação legalmente estabelecido inusitada. O único termo de comparação legalmente obrigatório entre pessoas colectivas e equiparadas é o que corresponde à natureza de centro de imputação de uma vontade e actuação, que é semelhante nas pessoas colectivas e em tais entes. Retirar daí que o modo de actuação em nome e no interesse das entidades equiparadas, de acordo com a sua natureza, é suficiente para justificar a imputação de uma actuação às verdadeiras pessoas colectivas é uma inversão do ponto de partida da equiparação legalmente estabelecida e corresponde, na realidade, a uma verdadeira analogia. e) Argumento da não excepcionalidade da responsabilidade penal das pessoas colectivas no Direito Penal secundário e do correspondente afastamento dos limites do artigo 12º do Código Penal.
É várias vezes utilizada a ideia de que os princípios do Direito Penal clássico, nomeadamente os que enformam o artigo 12º do Código Penal, justificando a restrição da responsabilidade aos representantes legais, não valem, de todo, no Direito Penal secundário, em que a responsabilidade das pessoas colectivas seria a regra, justificando uma interpretação generosa dos tipos incriminadores. No entanto, a responsabilidade penal das pessoas colectivas no Direito Penal secundário não pode ser pensada ainda senão como excepção, não sendo aceitável que não vigore relativamente à delimitação de tal tipo de responsabilidade a perspectiva de excepcionalidade resultante dos princípios gerais.
3. Para além destas dificuldades que o Acórdão me sugere, é certo que o resultado interpretativo a que o tribunal recorrido chegou – segundo o qual no conceito “representantes das pessoas colectivas” cabem pessoas que não sejam mais do que representantes de facto – constitui, necessariamente, produto de uma interpretação que vai para além do sentido normativo possível, em termos declarativos, e, por isso, ultrapassa o sentido previsível para os destinatários. Com efeito, tal resultado tem contra si elementos históricos e sistemáticos e não é confirmável pela ratio legis, a qual há-de ser configurada como um critério de imputação à vontade da pessoa colectiva da actuação controlável dos agentes que ajam em seu nome e no seu interesse. Ora, não é indiscutível que a reposta a tal problema seja abranger os representantes de facto sem mais. A ratio legis exige que esse nexo de imputação se construa a partir de agentes cuja actuação deva ser considerada como “a voz e o corpo” da pessoa colectiva, por ela poder controlar tais agentes. Que o critério para a imputação de vontade abranja os representantes de facto por razões de eficácia ou apenas os representantes legais por razões de segurança é algo que só pode ser decidido pelo legislador, não cabendo ao intérprete inferir de uma expressão não suficientemente precisa da lei a primeira opção. Ao fazê-lo, o intérprete não só não garante a certeza imposta pelo princípio da legalidade no Direito Penal como, sem uma clara opção do legislador, admite uma solução em que a segurança jurídica não tem plena satisfação. Com efeito, o que
é agir no nome e no interesse de outrem sem vínculo legítimo de representação? É necessário para entender esse conceito vago de representação de facto um acordo prévio expresso da entidade colectiva, um acordo tácito, uma ratificação posterior ou um mero consentimento implícito? A indefinição de tal conceito impõe que a subsunção utilize, forçosamente, critérios de comparação típicos da analogia que está proibida em Direito Penal. Enfim, foram estas as razões pelas quais não pude considerar suficientes as razões utilizadas no presente Acórdão para a decisão alcançada.
Maria Fernanda Palma