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Processo n.º 381/03 Plenário Relator: Cons. Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
1.1. O Presidente da República requer ao Tribunal Constitucional - nos termos do artigo 278° nºs 4 e 6 da Constituição e dos artigos 51º n° 1 e 57° n° 1 da Lei sobre Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional - a apreciação da constitucionalidade de algumas das normas constantes do Decreto da Assembleia da República n° 50/IX que lhe fora remetido para ser promulgado como lei orgânica - a Lei dos Partidos Políticos.
Explica o Requerente que pela “importância vital para a vida democrática, pela sua íntima associação ao exercício dos direitos fundamentais de participação política e pelas funções constitucionalmente atribuídas aos partidos políticos - designadamente o exclusivo da apresentação de candidaturas à Assembleia da República -, bem pode dizer-se que a lei dos partidos políticos agora aprovada pela Assembleia da República é um diploma estruturante do regime democrático”, facto que “por si só, seria razão bastante para dedicar uma especial atenção ao esclarecimento prévio de eventuais dúvidas de constitucionalidade que algumas das suas normas podem suscitar, tanto mais quanto se pretende proceder a uma substituição global da primeira lei dos partidos políticos oriunda de 1974”.
Por outro lado - prossegue - “independentemente do largo apoio que suscitou na votação parlamentar, não pode esquecer-se que estamos num domínio em que importa sobremaneira garantir que os direitos das associações ou partidos políticos minoritários não sejam ilegitimamente afectados. Mais ainda, a extrema sensibilidade deste domínio, em que há que compatibilizar a liberdade e autonomia de organização interna com as exigências acrescidas que os fins dos partidos políticos em regime democrático lhes impõem, aconselha a uma verificação prévia das inovações susceptíveis de gerar mais controvérsia,” em ordem a impedir que a entrada em vigor da nova lei dos partidos políticos seja ensombrada “por dúvidas não previamente esclarecidas de constitucionalidade”.
São estas as razões que o Presidente da República liminarmente convocou para requerer a apreciação preventiva das seguintes normas do aludido diploma:
a) a norma da alínea c) do n° 1 do artigo 18° - que determina a extinção de partido político que não apresente candidaturas a duas eleições gerais sucessivas para a Assembleia da República - que pode, eventualmente, violar os artigos 2°, 46° n° 2 e 51 n° 1 da Constituição;
b) as normas do n° 1 do artigo 32° - que determinam a destituição de titulares dos órgãos partidários por efeito de condenação por crime de responsabilidade ou por efeito de condenação por participação em associações constitucionalmente proibidas - que, em dada perspectiva, poderão ofender a garantia consagrada no artigo 30° n° 4 da Constituição. E, por fim,
c) a norma do artigo 34°, que, na medida em que impõe que as eleições partidárias se realizem por sufrágio pessoal e secreto, pode violar a garantia consagrada no artigo 46° n° 2 da Constituição.
1.2. Quanto ao primeiro caso, especifica o Presidente da República que, sendo certo que a Constituição dá aos partidos políticos a competência exclusiva de apresentação de candidaturas à Assembleia da República, será também certo, em seu entender, que “em lado algum os obriga à apresentação de candidaturas”. O facto de, nos termos do artigo 10° n. 2 da Constituição, os partidos políticos concorrerem para a organização e para a expressão da vontade popular “não pode eliminar, em regime democrático, o momento e a margem interna de livre decisão política” que remete para o próprio partido político e para os seus órgãos legitimamente constituídos a decisão sobre os termos, as condições e o grau de participação nas eleições.
Ora, poderá acontecer que um determinado partido político, sobretudo quando se trata de partido minoritário, considere que a melhor forma de concorrer, em determinado momento, para a formação da vontade popular seja a não apresentação de candidaturas às eleições parlamentares, com, por exemplo, um eventual apoio a outras forças concorrentes sem que, com isso, pretenda renunciar à hipótese de futuramente se apresentar a eleições. Nessa altura, pode suscitar-se a dúvida de saber se a determinação legal de extinção quando tal se verifique em duas eleições sucessivas não constituirá uma restrição excessiva da livre prossecução dos fins associativos garantida pelo artigo 46° n. 2 da Constituição e da livre instituição e conformação de partidos políticos, bem como da liberdade de decisão e organização internas e da margem de autonomia partidária própria do Estado de Direito democrático pluralista consagradas respectivamente no artigo
51º n. 1 e no artigo 2°, ambos da Constituição.
Assim, a norma do artigo 18° n. 1 alínea c) pode, eventualmente, violar os artigos 2°, 46° n. 2 e 51º n. 1 da Constituição.
1.3. Quanto ao segundo caso, as normas do artigo 32° n.1 - que determinam a destituição de titulares dos órgãos partidários por efeito de condenação por crime de responsabilidade ou por efeito de condenação por participação em associações constitucionalmente proibidas - parecem constituir situações configuráveis enquanto perda de direitos “como efeito necessário” da condenação em certo tipo de crimes, o que, não assentando aqui numa habilitação constitucional específica - diferentemente do que acontece expressamente com a perda do mandato ou a destituição do cargo previstos no artigo 117° n. 3 da Constituição -, suscita a dúvida de saber se com a previsão legal daquele efeito não se estará a violar a garantia do artigo 30° n° 4 da Constituição.
1.4. Por último, e quanto à norma do artigo 34° - na medida em que impõe que as eleições partidárias se realizem por sufrágio pessoal e secreto -, sustenta o Requerente que “um dos aspectos mais delicados do nosso Estado de Direito democrático tem sido a dificuldade em compatibilizar o princípio da autonomia e liberdade de organização interna dos partidos políticos com o princípio da sua necessária democraticidade. Se o primeiro é um corolário da liberdade de associação (e também da associação política) própria do Estado de Direito, o segundo surge como exigência de adequação da organização e estrutura interna dos partidos políticos às funções que lhes são reconhecidas e atribuídas no Estado democrático” exigência a que a revisão constitucional de 1997 deu corpo, com o novo n. 5 do artigo 51º ao impor aos partidos políticos 'os princípios da transparência, da organização e da gestão democráticas'.
A fonte da preocupação do Presidente da República sobre a conformidade constitucional da norma reside precisamente na dificuldade em definir as
“fronteiras entre o que constitui densificação desta exigência e aquilo que poderia já ser uma regulamentação excessiva comprometedora da autonomia partidária”. Assim, no caso em apreço, pode colocar-se a dúvida de saber “se a imposição de realização das eleições partidárias (de todas elas) por sufrágio pessoal e secreto se situa para aquém ou para além daquelas fronteiras”, questão cuja importância “aconselha o esclarecimento preventivo dessas dúvidas por parte de quem tem a competência para o fazer”.
Importará, pois, saber se a norma do artigo 34°, enquanto impõe a realização das eleições partidárias por sufrágio pessoal e secreto, viola ou não a garantia constitucional do artigo 46° n. 2 da lei fundamental.
1.5. Cumprido o disposto no artigo 54º da LTC, respondeu o Presidente da Assembleia da República a oferecer o merecimento dos autos; fez juntar os Diários da Assembleia da República “que contêm os trabalhos preparatórios relativos ao diploma em apreciação”.
2.1. Para responder às questões suscitadas pelo Presidente da República importa antes de tudo ter em mente as linhas de força que a evolução do sistema político tem provocado no enquadramento legal dos partidos. É que, conforme sublinha Marcelo REBELO DE SOUSA - Os Partidos Políticos no Direito Constitucional Português, Braga, 1983, fls. 7 - “com a transição do Estado Liberal para o Estado Social a matéria referente aos partidos políticos ganhou uma dignidade jurídico-constitucional de que se encontrava carecida na segunda metade do Século XIX e nas primeiras décadas do Século XX”.
Este “ganho” foi, entre nós, particularmente evidente no âmbito da IV revisão constitucional, conforme claramente decorre das actas das reuniões da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, visando-se então [cfr. Acta da Reunião de 18 de Setembro de 1996, in Diário da Assembleia da República II Série-RC, n.
24 de 19 de Setembro de 1996] a “transposição explícita de princípios constitucionais para a vida interna dos partidos” como, por exemplo, a exigência de “mecanismos cada vez mais aperfeiçoados de pluralismo interno, policentrismo, transparência, organização rigorosamente democrática”, tudo correspondente a uma
“nova fase da vida do sistema político, maxime do sistema partidário” [Deputado A], tendo “como pano de fundo a importância que os partidos políticos têm na organização do Estado e a influência que a vontade de cada um dos partidos tem dentro da arquitectura constitucional em que estão inseridos” [Deputado M]. Reconheceu-se ainda que actualmente os partidos são titulares de direitos próprios da maior relevância e que o Estado tem determinadas obrigações para com os partidos, designadamente quanto ao respectivo financiamento, património e contas, razão pela qual “os princípios democráticos de organização partidária” deverão ser “obrigatórios” para todos os partidos, e que estes se devem reger
“por regras de transparência, de organização e gestão democrática, pelo direito de participação de todos os seus membros” [Deputado L].
Este pensamento, com naturais nuances, proveio de uma larga maioria do leque político-partidário com assento parlamentar, materializando-se posteriormente, na lei de revisão constitucional [Lei Constitucional n. 1/97 de 20SET, quanto ao que agora interessa, artigos 46º, 51º, 223º n.2 alínea e)] e na alteração da Lei do Tribunal Constitucional [através da Lei n. 13-A/ 98 de 26FEV]. Quanto ao enquadramento legal dos partidos, é aquela actualização que o decreto em análise visa concretizar.
Em suma, a natureza exclusivamente privada que, no inicio, os grandes partidos de massas assumiam, passou a contar com um marcante “relevo constitucional”; de tal forma que - como lhes chamam Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA in Constituição da República Portuguesa Anotada - os partidos políticos são um tertium genus quanto às demais associações genericamente previstas no actual sistema jurídico.
Fiquemos, portanto, com esta ideia que é útil para analisar o pedido: os partidos são associações de natureza privada de interesse constitucional e uma peça fundamental do sistema político (é o próprio Estado a estimular a sua actividade, suportando parte do respectivo financiamento), pois se lhes atribui
- por vezes em exclusivo - a tarefa de “concorrerem para a organização e para a expressão da vontade popular”.
Não menos importante foi a consagração - a par da regra de liberdade de associação e de criação de partidos políticos - de outros ditames normativos dirigidos à própria organização interna dos partidos, nos quais se incluem a imperativa transposição do princípio democrático, a adopção de restrições quanto aos objectivos ideológico-programáticos, quanto à denominação, ao emblema, à filiação partidária (ninguém pode estar inscrito simultaneamente em mais de um partido) e a imposição de correspondente controlo jurisdicional.
2.2. E aqui entronca (por facilidade de exposição) a última das questões levantadas pelo Presidente da República: caberá ao legislador ordinário estabelecer regras quanto à forma do próprio sufrágio a usar nas eleições internas dos partidos, como acontece no artigo 34º da lei em análise, ao pretender impor o sufrágio pessoal e secreto? Esta norma não ofenderá o disposto no artigo 46º n. 2 da Constituição?
É que, como bem salientou o Requerente, não é de todo fácil “compatibilizar o princípio da autonomia e liberdade de organização interna dos partidos políticos com o princípio da sua necessária democraticidade”. Tal tarefa visa harmonizar dois princípios quase antagónicos: o da liberdade de associação e o da imposição de regras de organização e estrutura interna dos partidos políticos.
O citado artigo 46º da Constituição refere-se não especificamente aos partidos políticos, mas às associações em geral, e o seu n. 2 dispõe o seguinte:
As associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as suas actividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial.
A norma em causa diz o seguinte:
As eleições e os referendos partidários realizam-se por sufrágio pessoal e secreto.
O pedido de fiscalização refere-se ao segmento da norma relativo às eleições partidárias e é nesta óptica que irá ser analisada a questão.
A liberdade de associação acima referida comporta, quando transposta para os partidos, excepções, ou limitações, decorrentes do disposto nos números 2 a 5 do artigo 51º da Constituição.
Por exemplo, o (novo) n. 5 do artigo 51º da Constituição impõe especificamente aos partidos políticos 'os princípios da transparência, da organização e da gestão democráticas'.
Isto é: a Constituição prevê que as exigências que o princípio democrático traz ao sistema político se estendam às associações privadas de interesse constitucional, como são os partidos. A vigência prática do princípio democrático nos partidos apresenta uma dupla vertente: tem uma dimensão material, que concerne aos direitos fundamentais dos seus filiados e uma dimensão estrutural, organizativa ou procedimental.
Ora é geralmente reconhecido que associado a este princípio democrático se acha a regra que a Constituição elege como “a” regra da expressão democrática do exercício do voto político: o sufrágio directo e secreto, pois selecciona-o como o único método de escolha a propósito das eleições que são objecto de normas constitucionais (designadamente, artigos 10º n.1 e 113º n. 1 da Constituição).
A imposição de natureza procedimental justifica-se, por um lado, pela preocupação de garantia dos direitos fundamentais dos votantes, pois o sistema de sufrágio secreto oferece indiscutivelmente um maior grau de autenticidade e de verdade do voto que se pretende expressar e, por outro, acrescenta genuinidade democrática à participação dos partidos na vida política.
O requisito relativo à pessoalidade do voto justifica-se pela decorrência dos mesmos princípios: a imediação do sufrágio visa também favorecer - sem que, com isso, se possa falar em compressão intolerável dos direitos dos interessados - a verdade, a liberdade e a genuinidade que deve substancialmente caracterizar a opção tomada.
Assim vistas as coisas, a norma que determina que as eleições partidárias se realizem por sufrágio pessoal e secreto não ofende a Constituição, não violando os limites relativos à proporcionalidade que a garantia de liberdade de associação, prevista no n. 2 do seu artigo 46º, impõe.
2.3. Maior complexidade apresenta a matéria relativa à norma do artigo 18º n.
1 alínea c) do decreto em análise, que determina a extinção de partido político que não apresente candidaturas “a duas eleições gerais sucessivas” para a Assembleia da República.
Pretende o Requerente que se afira da conformidade constitucional desta norma à luz dos parâmetros constitucionais constantes dos artigos 2º, 46º n.2 e 51º n.1 CR.
O artigo 2º proclama a República Portuguesa como “um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência dos poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.
O n. 2 do artigo 46º já foi aqui chamado a propósito da questão anteriormente tratada: visa garantir “às associações” o livre prosseguimento dos seus fins sem interferência das autoridades públicas, não podendo “ser dissolvidas” “senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial”.
De igual modo, o n. 1 do artigo 51º, reportando-se especificamente aos partidos, garante que “a liberdade de associação compreende o direito de constituir ou participar em associações e partidos políticos e de através deles concorrer democraticamente para a formação da vontade popular e a organização do poder político”.
A norma do Decreto da Assembleia da República n.º 50/IX ora em apreço é do seguinte teor:
Artigo 18º
Extinção judicial
1- O Tribunal Constitucional decreta, a requerimento do Ministério Público, a extinção de partidos políticos nos seguintes casos: a) Qualificação como partidos armado ou de tipo militar, militarizado ou paramilitar, ou como organização racista ou que perfilha a ideologia fascista; b) Redução do número de filiados a menos do 5000; c) Não apresentação de candidaturas a duas eleições gerais sucessivas para a Assembleia da República; d) Não comunicação de lista actualizada dos titulares dos órgãos nacionais por um período superior a seis anos; e) Não apresentação de contas em três anos consecutivos; f) Impossibilidade de citar ou notificar, de forma reiterada, na pessoa de qualquer dos titulares dos seus órgãos nacionais, conforme a anotação constante do registo existente no Tribunal.
2- ...
A citação integral das normas que, no diploma, tratam da extinção do partido pelo Tribunal Constitucional revela que a extinção decorrerá sempre que o partido pratique uma ideologia proibida (alínea a)); ou mostre um funcionamento formalmente irregular (alíneas b), d), e), f)); ou - e aqui temos o caso que nos interessa - quando não apresente candidaturas a duas eleições consecutivas para a Assembleia da República (alínea c)).
Argumenta o Presidente da República que “em lado algum” a Constituição obriga os partidos a apresentarem candidaturas e que, pelo contrário, estará dentro da margem de liberdade interna de cada partido a decisão de apresentação ou não de candidaturas às eleições parlamentares, “com, por exemplo, um eventual apoio a outras forças concorrentes” sem que, com isso, pretenda renunciar à hipótese de futuramente se apresentar a eleições.
É, no fundo, esta, a dúvida do Presidente da República: não estaremos perante
“uma restrição excessiva da livre prossecução dos fins associativos garantida pelo artigo 46° n. 2 da Constituição e da livre instituição e conformação de partidos políticos, bem como da liberdade de decisão e organização internas e da margem de autonomia partidária própria de Estado de Direito democrático pluralista consagrados respectivamente no artigo 51º n. 1 e no artigo 2°, ambos da Constituição”?
Certo é que a Constituição impõe restrições à constituição e funcionamento de partidos políticos. Desde logo, como associações que são, não podem destinar-se a promover a violência ou a violação da lei penal, não sendo consentidas associações armadas, de tipo militar, racistas ou que perfilhem a ideologia fascista. Para além disto, os partidos não podem usar denominações relacionadas com quaisquer religiões ou igrejas, ou emblemas confundíveis com símbolos nacionais ou religiosos, assim como lhes está vedado terem índole ou âmbito regional - artigos 46º e 51º. Por outro lado, confere-se-lhes a função de concorrerem para a formação da vontade popular e para a organização do poder político. O elemento teleológico dos partidos políticos fá-los, com efeito, representar uma tarefa essencial no sistema de representatividade constitucionalmente consagrado, sendo neste ponto que se distinguem das meras associações políticas, por estas não visarem a representação dos cidadãos nos órgãos de poder.
Ora, ao proibir a existência de partidos que se abstenham de apresentar candidaturas (por si, ou em coligação) ao parlamento - no fundo é isto que a norma pretende significar - a lei está a tomar uma posição relevantíssima quanto
à vida dos partidos.
Mas não será efectivamente excessivo que se preveja a sanção extintiva sem qualquer ligação a um determinado período de tempo, mas apenas a duas eleições que - ocorrendo normalmente de quatro em quatro anos - podem no entanto ter lugar num período muito mais curto, conforme o determinarem os imprevisíveis sucessos da vida política e as crises que a podem abalar?
Com efeito, apesar de uma aparente semelhança, é totalmente diverso admitir como causa de extinção de um partido a não apresentação de candidaturas a quaisquer eleições durante, por exemplo, seis anos - como chegou a ser proposto -, ou impor a extinção quando o partido não apresente candidaturas “a duas eleições gerais sucessivas para a Assembleia da República”. No primeiro caso, ainda será possível vislumbrar-se que a lei presumiria (bem ou mal) que o partido deixara de ter existência, visto que abandonara, durante um período significativo de tempo, a sua actividade. Mas, no segundo caso, é perfeitamente possível que o partido tenha efectivamente manifestado intensa actividade política e, ainda assim, fica sujeito a uma extinção forçada. A norma provoca, como bem detectou o Requerente, uma dificuldade acrescida aos pequenos partidos, cuja rarefacção dificulta o exercício continuado da apresentação de candidaturas nacionais e que, portanto, se tornam alvo privilegiado da sanção, circunstância que poderá irremediavelmente agravar-se com a antecipação de eleições gerais, decisão que esses partidos não podem, evidentemente, controlar.
É assim certo que a norma em questão pode criar um constrangimento excessivo e, portanto, inadmissível, à liberdade de actuação dos partidos. Isto é: perante a regra constitucional de liberdade de associação e de autoconformação partidária, o legislador ordinário, que deve mover-se dentro de limites que respeitem a proporcionalidade das soluções propostas sempre que estas condicionem aquela regra, ultrapassou, neste caso, aquela fronteira pois estabeleceu uma compressão desrazoável e, portanto, intolerável do direito em causa.
É, na verdade, de julgar que a extinção do partido prevista no artigo 18º n.1 alínea c) do Decreto da Assembleia da República n.º 50/IX desequilibra desrazoavelmente a ponderação meio-fim ínsita na vertente do princípio da proporcionalidade e determina a violação do direito de liberdade partidária previsto no disposto nos artigos 46º n. 2 e 51º n. 1 da Constituição.
Por esta razão se deve concluir pela inconstitucionalidade da norma da alínea c) do n. 1 do artigo 18º.
2.4. Ainda na perspectiva das exigências que a imposição do princípio democrático constitui para os partidos - olhando agora já para a questão suscitada a propósito da solução preconizada pelo artigo 32º n. 1 do diploma quanto à destituição de titulares de órgãos partidários - cumpre recordar o que se afirmou a propósito das duas dimensões do aludido princípio; a dimensão material que se liga directamente aos direitos dos filiados e a dimensão estrutural, organizativa e procedimental, dirigida directamente ao partido e aos seus órgãos. Também se viu já que, concedendo a Constituição uma ampla liberdade de autoconformação partidária - que decorre dos seus artigos 46º e 51º - impõe também, especificamente, a aplicação do princípio democrático. Deste sistema é lícito concluir que a fiscalização das regras internas de democracia dos partidos cabe, em primeira linha, ao próprio partido, aos seus órgãos e à intervenção dos seus filiados.
Esta será mesmo uma regra essencial do funcionamento tão democrático quanto livre dos partidos.
Assim, face ao direito que a Constituição confere, no n. 1 do seu artigo 51º, de liberdade de associação e de acesso a partido político - poderá equacionar-se a
última das questões suscitadas pelo Presidente da República: as normas das alíneas a) e b) do n. 1 do artigo 32º do Decreto em apreço “parecem constituir situações configuráveis enquanto perda de direitos como efeito necessário da condenação em certo tipo de crimes, o que, não assentando numa habilitação constitucional específica, suscita a dúvida de saber se com a previsão legal daquele efeito não se estará a violar a garantia do artigo 30º n. 4 da Constituição”. As questionadas normas são do seguinte teor:
Artigo 32º
Destituição
1- Determinam a destituição de titulares de órgãos partidários, o trânsito em julgado de: a) Condenação judicial por crime de responsabilidade no exercício de funções em órgãos de Estado, das Regiões Autónomas ou do poder local; b) Condenação judicial por participação em associações armadas ou de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, em organizações racistas ou em organizações que perfilhem a ideologia fascista.
2- Fora dos casos enunciados no número anterior, a destituição só pode ocorrer nas condições e nas formas previstas nos estatutos.
Estas normas (alíneas a) e b) do n. 1) têm uma interpretação unívoca: o simples trânsito em julgado da condenação nos crimes ali previstos determinaria necessariamente a destituição dos arguidos de quaisquer órgãos partidários de que sejam titulares. Tem, por isso, pleno cabimento a pergunta suscitada pelo Presidente da República, uma vez que as normas em apreço, ao prescreverem a necessária destituição de titulares de órgãos partidários à revelia de uma concreta avaliação das circunstâncias do caso, parecem efectivamente colidir com o disposto no artigo 30º n. 4 da Constituição, ou seja, o princípio que proíbe que a lei ligue como efeito necessário a uma pena a perda de direitos.
A sanção a que as normas se referem constitui restrição ao exercício de um direito de carácter político, sendo imposta obrigatoriamente, como consequência necessária da condenação pela prática do ilícito previsto no preceito. Isto é: a destituição surgiria como efeito necessário da condenação penal, sem qualquer procedimento que revele consideração pelas circunstâncias do caso.
Ora, sob este específico ponto, o Tribunal Constitucional tem elaborado abundante jurisprudência - em consonância com a doutrina - segundo a qual o sentido do artigo 30º n. 4 da Constituição seria o de negar ao legislador ordinário a possibilidade de criar um sistema de punição complexa, no seio do qual a lei possa fazer corresponder automaticamente à condenação pela prática de determinado crime, e como seu efeito, a perda de direitos (cfr. acórdão 202/2000 in Diário da República - II Série de 11 de Outubro de 2000). Também nos acórdãos
165/86, 224/90, 249/92, 373/92, 442/93 - todos publicados - se insiste: o sentido do preceito constitucional é o de proibir a perda de direitos - na sequência de condenação penal - por força directa da lei; a Constituição postula a genérica proibição de efeitos da condenação e de penas acessórias automáticas, quer associados a penas, quer associados a crimes. Tal como se afirma no acórdão
249/92 (Diário da República, II Série, de 27 de Outubro de 1992) “o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado, reiteradamente, pela inconstitucionalidade, por violação do disposto no n. 4 do artigo 30º da Constituição, de normas que impõem a perda de direitos como efeito necessário da condenação pela prática de certos crimes”.
É patente que agora nos encontramos perante um destes casos: nos termos do n. 1 do artigo 32º, em análise, a destituição de órgão partidário ocorreria necessariamente desde que verificado o trânsito em julgado de sentença condenatória por algum dos tipos penais ali retratados.
E ainda que se entenda que a condenação pelos aludidos crimes pode razoavelmente suscitar as maiores interrogações sobre a honorabilidade e capacidade política do arguido, indiciando a inabilidade para o exercício de cargos de relevo no aparelho partidário, certo é que se impõe que a destituição seja precedida de um procedimento sancionatório susceptível de avaliação em concreto, por um órgão independente, dos requisitos relativos à ilicitude e à culpa que justificam aquele efeito.
Impõe-se assim concluir que as normas constantes [das alíneas a) e b)] do n.1 do artigo 32º do Decreto da Assembleia da República n.º 50/IX ofendem o disposto no n. 4 do artigo 30º da Constituição.
3. Nestes termos, o Tribunal decide:
a) não se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma do artigo 34º do Decreto da Assembleia da República n.º 50/IX que aprova a Lei dos Partidos Políticos; b) pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma do artigo 18º n. 1 alínea c) do mesmo Decreto, por violação do disposto nos artigos 46º n. 2 e 51º n. 1 da Constituição; c) pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas do artigo 32º n. 1 do mesmo Decreto, por violação do disposto no artigo 30º n. 4 da Constituição.
Lisboa, 18 de Junho de 2003 Carlos Pamplona de Oliveira Artur Faria Maurício Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues (vencido quanto à al. b) do nº 1 do artº 32º) Rui Manuel Moura Ramos (vencido quanto à alínea a) da decisão) Paulo Mota Pinto (vencido quanto à alínea a) da decisão, nos termos da declaração de voto que junto) Maria Helena Brito (vencida, quanto à alínea a) da decisão, nos termos da declaração de voto junta) Mário José de Araujo Torres (vencido quanto à alínea a) da decisão, pelos fundamentos, que se complementam, das declarações de voto dos Exmºs Conselheiros Rui Moura Ramos, Paulo Mota Pinto e Maria Helena Brito) Luís Nunes de Almeida
Declaração de Voto
Votei vencido quanto ao juízo de inconstitucionalidade feito sobre a alínea b) do n.º 1 do art.º 32º. Na verdade, entendo que a destituição de titulares de órgãos partidários mais não é do que um efeito jurídico próprio autónomo, constituído pela lei infra-constitucional, que encontra o seu fundamento na proibição constante do n.º 4 do art.º 46º da Constituição, segundo a qual “não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista” e, bem ainda, na violação do direito de constituir ou de participar em associações e partidos políticos, reconhecido no art.º 51º, n.º 1 da mesma Lei fundamental. A destituição surge aqui, claramente, como um efeito jurídico necessário à realização e salvaguarda destes preceitos constitucionais. Nesta perspectiva, ela corresponde a uma simples sanção acessória decorrente do facto ilícito que atenta contra o direito-liberdade fundamental de associação política. Estamos perante uma valoração específica do legislador ordinário relativa à conduta levada a cabo por parte das pessoas que integram os órgãos partidários a coberto, precisamente, de um aparente exercício do direito-liberdade fundamental de constituir associações e partidos políticos.
Sendo assim, a destituição não pode deixar de ser vista como uma pena conformada, autonomamente, pelo legislador ordinário para a protecção e salvaguarda daqueles valores constitucionais por parte de órgãos partidários, levada a cabo com inteira perversão dos direitos-liberdades referidos. Ver, neste caso, a destituição dos órgãos partidários como um efeito necessário da condenação pelos crimes referidos na referida alínea só porque o processo de destituição deve ter lugar após a sua condenação por tais crimes é ignorar a força jurídica própria e autómona, independente de qualquer criminalização feita igualmente para defesa desses bens constitucionais, que decorre dos citados preceitos da Constituição. A circunstância de uma tal sanção dever ser operada, a quando, da condenação judicial pela participação em associações armadas ou de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, em organizações racistas ou em organizações que perfilhem a ideologia fascista, tem que ver apenas com a eleição, por parte do legislador, do pressuposto ético-jurídico que, precisa e adequadamente, evidencia a manipulação contra a Constituição dos direitos-liberdades que ela, própria, reconhece. Cabe, aqui notar, em reforço do que vem sendo dito, que a autonomia da sanção se revelará até no procedimento da sua aplicação. Na verdade, ao falar de destituição e não em perda do cargo partidário, o legislador terá querido a intervenção dos órgãos partidários na aplicação da sanção. E nesta perspectiva, haveria também autonomia na aplicação da sanção.
Mesmo a entender estar-se perante um efeito necessário da condenação imposta pela prática dos crimes a que se refere tal alínea, não poderia deixar de defender-se a harmonização da garantia constitucional constante do art.º 30º, n.º 4 - do estabelecimento de limites á previsão das penas - com o dever de salvaguarda ou de defesa da própria Constituição e dos direitos-liberdade por ela concedidos nos seus art.os 46º, n.os 1 e 4 e 51º, n.º 1. Ora perante a existência de um eventual conflito de valores sempre se teria de dar prevalência ao respeito pelos limites constitucionalmente impostos ao exercício dos direitos-liberdades concedidos pela Constituição, em virtude da sua natureza de princípios estruturantes do sistema constitucional. Como é evidente estes argumentos não são reversíveis para sustentar a constitucionalidade da alínea a) do artigo aqui em causa. Por outro lado, por falta de analogia substancial não se poderá estender a tais órgãos partidários o regime previsto no art.º 117.º da Constituição para os titulares de cargos políticos. Daí que se imponha a diferença quanto ao juízo de inconstitucionalidade das duas alíneas do art.º 32.º
Benjamim Rodrigues
Declaração de voto
Votei vencido quanto à alínea a) da decisão por entender que a exigência de um sufrágio pessoal e secreto em todas as eleições partidárias constitui uma limitação excessiva e desproporcionada da liberdade de organização interna dos partidos políticos constitucionalmente garantida (artigo 46, nº 1).
É certo que a Constituição impõe aos partidos os princípios de transparência, de organização e de gestão democráticas. Mas deles não retira como conclusão, contrariamente ao que fez a propósito das comissões de trabalhadores (artigo 54, nº 2) e das associações sindicais (artigo 55, nº 3), a obrigatoriedade do voto secreto em todas as eleições. Entendo que a referida exigência legal, com o alcance e a extensão com que foi consagrada a propósito dos partidos políticos, não é directamente exigida pelo princípio da organização e gestão democrática, revelando-se assim desnecessária e desproporcionada à compressão da liberdade de organização constitucionalmente reconhecida aos partidos que envolve.
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
1.Votei vencido quanto à alínea a) da decisão, por entender que o artigo 34º do diploma em causa introduz uma restrição excessiva à liberdade interna dos partidos políticos ao impor o voto pessoal e secreto para todas as eleições que tenham lugar nos partidos políticos. Esta posição não resulta de qualquer discordância ou, sequer, de uma menor convicção relativamente à idoneidade dessas exigências para melhorar a democracia interna nos partidos políticos. O que está em causa na norma em apreço é, antes, a meu ver, saber se, não só pelo conteúdo das exigências que contém, mas também pela sua extensão genérica a todas as eleições – no aspecto, não apenas qualitativo, mas quantitativo –, aquelas ainda podem dizer-se necessárias para assegurar o respeito pelos “princípios da transparência, da gestão e da organização democráticas”, ou são já uma intromissão na liberdade interna dos partidos políticos que viola a proibição do excesso, por, nessa sua extensão, irem além do “necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (artigo 18º, n.º 2 da Constituição da República – CR). Não pode, aliás, deixar de notar-se que o problema da extensão da exigência contida no artigo 34º, em apreço, foi autonomizado expressamente como fundamento do pedido, quando suscita a dúvida de saber “se a imposição de realização das eleições partidárias (de todas elas) por sufrágio pessoal e secreto se situa para aquém ou para além daquelas fronteiras” (itálico aditado).
2.A liberdade de associação constitui, na verdade, um direito fundamental, submetido ao regime dos direitos, liberdades e garantias, que inclui, quer a liberdade de constituição (artigos 46º, n.º 1 e 51º, n.º 1 da CR, respectivamente para as associações em geral e para os partidos políticos), quer a liberdade, externa e interna, de organização e de prossecução dos seus fins – artigo 46º, n.º 2, e para o fim dos partidos políticos de “concorrer democraticamente para a formação da vontade popular e a organização do poder político”, artigo 51º, n.º 1, 2ª parte, ambos da CR) –, sendo que, quanto a este segundo aspecto, se trata de um direito como que duplo: não apenas dos associados (militantes, quanto aos partidos políticos), mas também das próprias associações ou partidos já constituídos. O artigo 51º, n.º 5, da CR, segundo o qual os partidos políticos se regem pelos “princípios da transparência, da organização e da gestão democráticas e da participação de todos os seus membros”, introduz limitações à liberdade interna de associação político-partidária, tanto dos militantes, como da própria associação – não deixando, aliás, o acórdão de dar conta de tais limitações. Ora, não sofre dúvida que o imperativo constitucional da gestão e organização democráticas dos partidos políticos, contido no artigo 51º, n.º 5, da CR, é, sob o ponto de vista teórico, verdadeiramente um princípio, cujo conteúdo concreto carece de ser especificado (assim, Martin Morlok, Grundgesetz–Kommentar, org. por Horst Dreier vol. II, 1998 págs. 298-9, com referência aos “princípios democráticos” reclamados pelo artigo 21º, n.º 1, 3, da Lei Fundamental alemã). A organização e a gestão democráticas admitem diversas especificações, não apenas sobre o procedimento de voto (sobre procedimentos eleitorais, v., aliás, o artigo 35º do diploma em causa), mas, também, relativas a outros seus pressupostos e condições, formais e materiais – como, por exemplo, à percentagem de titulares de órgãos eleitos, à igualdade interna de oportunidades, etc.. Sobre o artigo 51º, n.º 5, introduzido na CR pela IV revisão constitucional, impõe-se, aliás, concordar com o que este Tribunal, pela sua 1ª secção, já afirmou, no Acórdão n.º 185/03 (não publicado, mas acessível já em
www.tribunalconstitucional.pt) salientando a “prudência do legislador constituinte”ou seja, “que a proposta que veio a ser aprovada não deixa de revelar uma certa ‘contenção’ – justificável pela auto-regulação dos partidos também constitucionalmente garantida – sem a imposição de regras idênticas às estabelecidas no artigo 55º, n.º 3 da CRP para as associações sindicais como propunha Jorge Miranda”. Como se reconheceu nesse aresto (citando um relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, sobre um projecto de alteração à Lei do Tribunal Constitucional), tal contenção ilustra-se, justamente, não só porque “o artigo 51º nº 5 da CRP se reporta a
‘princípios’ (não a ‘regras’) que ‘permitem o balanceamento de valores e interesses consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflituantes’ ”, mas, também, pelo contraste com outras normas constitucionais que regulam também eleições internas de associações com funções constitucionalmente relevantes: o artigo 55º, n.º 3, para as associações sindicais (“princípios da organização e da gestão democráticas, baseados na eleição periódica e por escrutínio secreto dos órgãos dirigentes”), e o artigo
54º, n.º 2, para a eleição dos membros das comissões de trabalhadores (“por voto directo e secreto”). A concretização do princípio democrático sofre, aliás, modificações tendo em conta os espaços a que se aplica, e, designadamente, especificações diversas para o poder público e para o espaço interno de uma organização partidária, que
é uma organização de voluntários com carácter de tendência. E não pode, assim, a meu ver, efectuar-se uma transposição imediata, para o interior destas organizações, da “regra geral” da Constituição sobre eleições de titulares de
órgãos de soberania (artigo 10º, n.º 1 e artigo 113º, n.º 1; e cfr. ainda o artigo 231º, n.º 2, todos da CR). Tais modificações são constitucionalmente legítimas, pois a possibilidade de “concorrer democraticamente para a formação da vontade popular e a organização do poder político” não só requer a manutenção da capacidade de funcionamento e de afirmação, na competição com outros partidos, como pode exigir uma certa energia interna e um encerramento na sua apresentação em relação ao exterior (assim Martin Morlok, loc. cit.). Não existindo, pois, uma única solução que – designadamente, atendendo à extensão do seu campo de aplicação – seja constitucionalmente imposta pelos princípios da organização e da gestão democráticas, e possa ser considerada limite “imanente” à liberdade político-partidária interna, é evidente que a especificação desses princípios, quando importe restrições a esta liberdade
(submetida ao regime dos direitos, liberdades e garantias), tem de obedecer ao princípio da menor limitação necessária para salvaguardar aqueles princípios, de acordo com o artigo 18º, n.º 2 da Constituição. Isto é, não pode ir para além da medida necessária para essa garantia, sob pena de violar a proibição do excesso. Para além dessa medida, são os partidos que, no exercício da sua liberdade interna de organização, podem conformar a dimensão organizatória (tal como a programática) da democracia interna a seu modo – isto é, em conformidade com as suas necessidades, interesses e princípios ideológicos, os quais podem, aliás, incidir também, justamente, sobre a ética pública no exercício do voto, e exigir, dentro dos limites da democracia interna, a sua discussão com os companheiros de partido.
3.Esclarecido o alcance e os termos do parâmetro constitucional em questão, logo se deixa ver que a norma do artigo 34º do diploma em apreciação, ao impor a realização por sufrágio pessoal e secreto de todas as eleições partidárias, violou a referida proibição do excesso. Este excesso reside aqui, a meu ver, não no sentido ou conteúdo da exigência restritiva – ao menos quanto ao carácter secreto do voto –, mas certamente, na ilimitada extensão do seu campo de aplicação a todas as eleições partidárias. Incluem-se, assim, também, por exemplo, eleições para organismos não directivos e locais, como, por exemplo, a eleição, num plenário de militantes, de um conselho ou comité consultivo, ou, mesmo, de um gabinete de estudos concelhio ou de uma comissão para elaboração de propostas eleitorais ou para estudo de um determinado problema ou estratégia concretos. E não há dúvida, não só de que este é o sentido da norma em causa, como de que foi também este o que motivou o pedido, o qual, como se disse, se refere à “imposição de realização das eleições partidárias (de todas elas) por sufrágio pessoal e secreto.” Não será, assim, por acaso, que, por exemplo, a lei dos partidos políticos alemã de 1967 (reformada em Janeiro de 1994), prevê , no n.º 2 do § 15, sobre
“formação da vontade nos órgãos” do partido, que apenas têm de ser secretas “as eleições de membros da direcção e dos delegados a assembleias, bem como dos
órgãos de circunscrições geográficas superiores”, e que “nas restantes eleições o voto pode ser aberto desde que não haja qualquer oposição a um requerimento nesse sentido.” Ou que a recente lei dos partidos políticos espanhola apenas exige (artigo 7º, n.º 3) a ocupação por “sufrágio livre e secreto” dos órgãos directivos dos partidos. Mesmo entre nós, aliás, o citado projecto de revisão constitucional apresentado pelo Prof. Jorge Miranda, que previa, como concretização dos princípios da organização e expressão democráticas (sendo, para além do projecto apresentado pelo Partido Socialista, que veio a inspirar o artigo 51º, n.º 5, o único que propunha a previsão expressa desses princípios para os partidos políticos), a obrigatoriedade de eleições periódicas e por voto directo e secreto nos partidos políticos, também o fazia apenas para os “titulares dos seus órgãos de direcção a nível nacional, regional e local.” Por entender que a imposição, aos partidos políticos, “de realização das eleições partidárias (de todas elas) por sufrágio pessoal e secreto” viola a proibição do excesso na restrição à liberdade partidária interna, pronunciei-me, pois, pela inconstitucionalidade do artigo 34º da Lei dos Partidos Políticos.
Paulo Mota Pinto
Declaração de voto
Votei vencida quanto à alínea a) da decisão e pronunciei-me no sentido da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 34º do Decreto da Assembleia da República n.º 50/IX, por entender que tal norma – ao impor que as eleições partidárias se realizem por sufrágio pessoal e secreto – limita de modo excessivo e não necessário o princípio da autonomia e liberdade de organização interna dos partidos políticos.
São as seguintes, em síntese, as razões da minha discordância em relação à tese que obteve vencimento:
Tal como se refere no pedido do Senhor Presidente da República, a questão de constitucionalidade suscitada pela norma em apreciação põe em confronto dois princípios fundamentais que devem presidir à actuação dos partidos políticos:
– o princípio da autonomia e liberdade de organização interna dos partidos políticos, corolário da liberdade de associação própria do Estado de Direito (princípio que encontra expressão nos artigos 46º, n.º 2, e 51º, n.º 1, da Constituição); e
– o princípio da democraticidade na organização e gestão dos partidos políticos, exigência da adequação dos partidos políticos às funções que lhes são atribuídas no Estado democrático (princípio que tem consagração, desde a revisão constitucional de 1997, no artigo 51º, n.º 5, da Constituição).
Em minha opinião, o acórdão esquece totalmente o primeiro destes princípios e apenas valoriza o segundo, dando a entender que a solução adoptada
é imposta pela norma do artigo 51º, n.º 5, da Constituição.
Na verdade, segundo o acórdão, ao princípio da democraticidade na organização e gestão dos partidos políticos deve necessariamente associar-se “a regra que a Constituição elege como «a» regra da expressão democrática do exercício do voto político: o sufrágio directo e secreto”. Como consequência, o acórdão aplica directamente às eleições partidárias a regra constante dos artigos 10º, n.º 1, e 113º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Ora, não me parece imposta pelo artigo 51º, n.º 5, da Constituição a exigência de que as eleições partidárias – todas as eleições partidárias – se realizem por sufrágio pessoal e secreto.
Na verdade, apesar do papel que lhes é constitucionalmente atribuído na formação da vontade popular e na organização do poder político, os partidos políticos não deixam de ser “associações privadas” – “associações privadas de interesse constitucional”, sem dúvida, na expressão do acórdão –, a que a Constituição reconhece o direito de livremente prosseguirem os seus fins “sem interferência das autoridades públicas” (cfr. artigo 46º, n.º 2).
Não se afigura por isso adequada a transposição, sem mais, para o
âmbito dos partidos políticos das regras sobre o sufrágio que a Constituição estabelece quanto à designação dos titulares dos órgãos electivos da soberania, das regiões autónomas e do poder local. Com efeito, os partidos políticos não são órgãos estaduais nem sequer associações de direito público; são associações políticas de cidadãos, a que os associados aderem livremente, em princípio em função de uma determinada ideologia, e que, precisamente em atenção a essa ideologia e aos objectivos de participação política enunciados, devem poder organizar-se de acordo com modelos diferentes uns dos outros. Todos estes aspectos podem ser tomados em conta na caracterização dos vários partidos políticos e funcionar como elemento de atracção dos potenciais filiados.
É certo que a Constituição prevê que a regra do escrutínio secreto seja observada noutros domínios, desde logo, na eleição dos órgãos dirigentes das associações sindicais (artigo 55º, n.º 3). Mas, a meu ver, essa opção constitucional justifica-se precisamente pela necessidade de garantir o princípio da independência e autonomia das associações sindicais perante o patronato, o Estado, as confissões religiosas e os partidos políticos, não legitimando, por si só, que a mesma solução deva ser imposta pelo Estado para todas as eleições a realizar no interior dos partidos políticos.
Acresce ainda que a solução adoptada não é indispensável; na verdade, existem outras normas na nossa ordem jurídica que têm como objectivo concretizar os princípios constitucionais da transparência e da democraticidade interna dos partidos políticos: para além, obviamente, das disposições legais já em vigor que prevêem a intervenção do Tribunal Constitucional em vários aspectos da vida dos partidos políticos, outras regras incluídas no próprio diploma em apreciação têm subjacente essa finalidade.
Concluo, assim, que, ao impor um modelo único de votação para todas as eleições partidárias, o preceito em análise traduz uma ingerência na autonomia de organização e funcionamento dos partidos, que excede o indispensável para prosseguir os objectivos de democraticidade pretendidos pelo artigo 51º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Por isso votei no sentido da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 34º do Decreto da Assembleia da República n.º 50/IX, por violação do disposto nos artigos 46º, n.º 2, e 51º, n.º 1, da Constituição.
Maria Helena Brito