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Procº nº 421/2004.
3ª Secção. Relator: Conselheiro Bravo Serra.
Em 13 de Abril de 2004 o relator proferiu decisão com o seguinte teor:
1. Por acórdão proferido em 29 de Abril de 2003 pelo tribunal colectivo do 2º Juízo do Tribunal da comarca de Faro foi, no que ora releva, efectuado, relativamente ao arguido A., o cúmulo jurídico de várias penas parcelares que
àquele arguido foram impostas (nove meses de prisão - Procº nº 1748/97.0JAFAR -, dois anos e quatro meses de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de dois anos - Pº nº 8/99.7GEPTM -, dois anos e dois meses de prisão - Procº nº
1644/97.1PBFAR -, dois anos e três meses de prisão, dois anos e quatro meses de prisão, dois anos e seis meses de prisão e três meses de prisão - Procº nº
21/00.3PEFAR -, dois anos e nove meses de prisão - Procº nº 34/00.4PEFAR -, e dois anos e seis meses de prisão - Procº nº 312/97.9GBSLV -) e que ainda se não encontravam extintas ou integralmente cumpridas, vindo-lhe a ser fixada a pena
única de doze anos de prisão, à qual foram perdoados um ano e seis meses de prisão.
Não se conformando como assim decidido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça a Representante do Ministério Público junta do Círculo Judicial de Faro.
Na alegação escrita que produziu no indicado Supremo Tribunal, a Representante do Ministério Público junta deste Alto Tribunal, a dado passo, disse:
‘............................................................................................................................................................................................................................................
VI
1. A Jurisprudência vem entendendo, majoritariamente, ser possível, em caso de conhecimento superveniente de concurso (art. 78°), revogar-se a pena de substituição, nomeadamente a pena de suspensão de execução da prisão, sem que tal implique violação de caso julgado, efectuando-se depois o cúmulo jurídico entre a pena de prisão que fora substituída e a( s) outra( s ) pena(s) de prisão não substituída(s).
2. Salvo o devido respeito, o referido entendimento não só não nos parece o mais correcto dogmaticamente, como se mostra ainda desconforme com o Código Penal e o Código de Processo Penal, sendo, além disso, violador da Constituição, como tentaremos de seguida demonstrar .
3. Ao pretender efectuar-se o cúmulo jurídico de uma pena de prisão com uma pena de prisão substituída, não revogada nem extinta, não se tem em consideração, nomeadamente, que: a) Quando o Tribunal substitui uma pena de prisão por uma pena de suspensão de execução da prisão (art. 50º) ou por uma pena de prestação de trabalho a favor da comunidade (art. 58°) ou por uma pena de multa de substituição (art. 44°, n°
1), está a aplicar e, posteriormente, a fazer executar em vez da pena de prisão, uma outra pena - uma pena de substituição, uma pena não privativa de liberdade. Pelo que, enquanto não for revogada, as penas de substituição previstas nos arts. 44º,50° e 58° encontram-se em execução. b) No art. 77° não está prevista a possibilidade de cúmulo jurídico de uma pena de prisão com a pena de substituição não privativa de liberdade prevista no art.
50º. Antes claramente decorre do seu n° 3 opção no sentido de «a diferente natureza» da pena não privativa de liberdade ( no caso, pena de multa) dever manter-se na pena única.
Por outro lado, da regulamentação do cúmulo jurídico constante dos arts. 77º e
78º não é possível retirar fundamento para a imposição de cúmulo jurídico entre penas privativas de liberdade e a pena prevista no 50° que não tenha sido, oportunamente, revogada por verificação dos pressupostos previstos no art. 56°, n° 1, considerados no seu n° 2 como os únicos justificativos do cumprimento da pena de prisão fixada na sentença. c) Ao pretender cumular uma pena de prisão com uma pena de prisão que fora substituída por pena não privativa de liberdade, assim impondo o cumprimento da pena de prisão substituída, o Tribunal acabaria por ‘revogar’ a pena de substituição, em desrespeito do disposto no art. 56°, n° 1. E ao assim proceder, sem curar de saber se «as finalidades que estavam na base da suspensão» podiam ou não ainda ser alcançadas, o Tribunal acabaria por revogar a pena de substituição de forma automática. d) Decorre claramente do art. 495°, n° 3, do Código de Processo Penal que é competente para a revogação, determinando o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, o Tribunal que o for para a execução da pena de substituição e não o Tribunal com competência , nos termos do art. 471º do C.P.P., para a realização de eventual cúmulo jurídico. Por isso é que, atento o disposto no art. 495°, n° 2, do Código de Processo Penal, qualquer Tribunal que venha a condenar um arguido pela prática de um crime cometido no decurso da execução de pena não privativa de liberdade - prevista no art. 50° ou no art. 58°- deve comunicar a condenação ao Tribunal competente, nos termos do art. 470° nº 1, para a execução, pois que é este - e só este - o competente em razão da matéria para, conhecedor do cometimento do crime e do teor da respectiva decisão condenatória, decidir da eventual revogação ou alteração da pena de substituição, ao abrigo do disposto nos arts.
55° e 56°. e) Nos termos do art. 495° do Código de Processo Penal, verificados o condicionalismo a que alude o art. 56°, n° 1, o Tribunal decide da revogação depois de recolhida a prova e antecedendo parecer do Ministério Público e audição do condenado. Por todo o acima exposto, temos defendido que a aludida interpretação jurisprudencial pode, salvo o devido respeito, implicar violação do caso julgado e dos princípios do contraditório e do juiz natural. VII O CÚMULO JURÍDICO EFECTUADO PELO DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO
1. No proc. nº 8/99.7GEPTM (cf. certidão de fls. 740 e ss.), por douto acórdão do Tribunal Colectivo do 1º Juízo Criminal do Tribunal de Portimão, de 25/10/99, A. foi condenado na pena de 2 anos e 4 meses de prisão, tendo o Tribunal decidido impor-lhe, em sua substituição, a pena prevista no art. 50° do C.P., com a duração de 3 anos. Ao substituir a pena de 2 anos e 4 meses de prisão por uma pena de suspensão de execução da prisão, o Tribunal Colectivo da Comarca de Portimão aplicou e fez executar, em vez da pena de prisão, uma outra pena - uma pena não privativa da liberdade, uma pena de substituição. Não há nos autos conhecimento que o Tribunal competente para a execução da pena não privativa de liberdade - o Tribunal Judicial da Comarca de Portimão, face ao disposto nos arts. 470°, n° 1, e 495°, ambos do Código de Processo Penal - tenha proferido despacho a revogar a aludida pena de substituição imposta no aludido proc. n° 8/99.7GEPTM. Pelo contrário, o entendimento, que se pode retirar do CRC junto aos autos, de que a referida pena de substituição não foi revogada por despacho do Tribunal Judicial de Portimão sai reforçado se procedermos, no douto acórdão recorrido, ao cotejo dos factos elencados sob 2. e 11. da matéria de fato provada. Efectivamente, enquanto que nos elencados sob 11. nada se refere quanto à revogação da pena não privativa de liberdade imposta ao arguido A., diversamente nos referidos sob 2. é feita referência, tal como consta de fls.
680, à decisão que revogou a pena de substituição aplicada ao condenado B..
2. O douto acórdão recorrido, considerando haver lugar à efectivação de cúmulo jurídico entre as penas de prisão, não substituídas por pena não privativa de liberdade, e a pena de prisão substituída pela pena não privativa de liberdade, imposta no aludido proc. n° 8/99 ao recorrente A., acabou por ‘revogar’, de forma automática a aludida pena de substituição. Fê-lo sem audição do condenado, cuja presença foi dispensada (cf. fls. 830). Ora, só a revogação – pelo Tribunal competente para a execução das penas de substituição –, prevista no art. 56°, verificados que sejam os pressupostos tipificados no seu n° 1, determina o cumprimento da pena de prisão substituída.
3. O douto acórdão recorrido – ao considerar que, por ser o Tribunal competente para a realização de cúmulo jurídico, podia nele integrar a pena de prisão substituída imposta no proc. n° 8/99.7GEPTM, apesar de não se mostrar revogada pelo Tribunal de Portimão a pena de substituição, acabando, assim, por proceder
à ‘revogação’ automática desta – afronta as normas 56, nº 1, 59°, nº 2, 77° e
78°, todos do C.P., 470°, n° 1, 495°, nºs 2 e 3, e 498º, nº 3, todos do C.P.P., nega a intangibilidade do caso julgado, com tutela no art. 282°, n° 3, da C.R.P., desrespeita o princípio do juiz natural, não salvaguarda o princípio do contraditório, não assegurando, assim, todas as garantias do processo criminal previstas no art. 32º,nºs 1, 5 e 9, da C.R.P. VIII A MEDIDA DA PENA ÚNICA A IMPOR AO CONDENADO A.
1. Temos presente o que deixámos referido sob II 4. e damos por adquirido, face ao entendimento que supra defendemos, que a pena de 2 anos e 4 meses de prisão, substituída pela pena não privativa de liberdade prevista no art. 50° que foi aplicada por douto acórdão de 25/10/99, no proc. n° 8/99.7GEPTM, não, deve ser objecto de cúmulo jurídico. Não pode, por isso, ser integrada na operação de determinação do limite máximo da moldura penal do concurso, relativamente ao condenado A..
2. Mas face à gravidade da pena única imposta no douto acórdão recorrido ao condenado A. (doze anos de prisão), não resistimos, salvo o muito devido respeito a questionar:
É possível que o condenado A. ,
– autor de crimes todos eles contra a propriedade – sendo sete de furto qualificado e um de dano simples;
– cuja pena concreta mais elevada não é superior a dois anos e nove meses de prisão;
– ocorridos três deles em Novembro/Dezembro de 1997 – quando o condenado, que nasceu em 18/12/1980, tinha então 16 e 17 anos de idade – e os restantes cinco em Fevereiro/Março de 2000 – quando o condenado tinha então 19 anos de idade;
– provada uma infância e adolescência não fáceis (cf. fls. 749),
«originário de um agregado familiar desfavorecido tendo a sua infância decorrido num ambiente de conflitualidade marcada pelo alcoolismo paterno» (cf. fls. 775); possa vir a ser condenado em pena única de medida mais consentânea com a punição de arguidos, não adolescentes, implicados em criminalidade mais grave, em criminalidade violenta, em criminalidade contra as pessoas?
3.
Sendo a moldura penal do concurso de dois anos e nove meses de prisão – medida da pena de prisão parcelar mais grave – a quinze anos e seis meses de prisão – soma das penas parcelares de prisão –, a imposição da pena única a impor ao condenado A. terá de situar-se dentro dos referidos limites. Na consideração conjunta dos factos e da personalidade do condenado, atendendo, nomeadamente: a) às circunstâncias provadas respeitantes às possibilidades de integração familiar e de valorização pessoal do condenado, que tem prosseguido os estudos no estabelecimento prisional e que tem recebido as visitas dos pais (cf. fls.
614); b) à natureza dos crimes praticados pelo condenado, todos contra a propriedade, sem a utilização de armas; c) a que os oito crimes cometidos, para além de terem ocorrido apenas em duas
épocas bem localizadas no tempo – Novembro/Dezembro de 1997 e Fevereiro/Março de
2000 –, quando considerados isoladamente [só um crime se mostra punido com a pena parcelar mais elevada (dois anos e nove meses de prisão), sendo que dois dos restantes crimes foram punidos com penas de três e nove meses de prisão] não se revestem de particular gravidade objectiva; d) a que o condenado, que nasceu em 18/12/1980, tinha 16 anos de idade, relativamente a dois dos crimes cometidos em Novembro/Dezembro de 1997 , 17 anos de idade, quanto ao terceiro crime cometido em Dezembro de 1997, e que, quanto aos restantes cinco crimes, praticados em Fevereiro/Março de 2000, tinha 19 anos de idade; e) a que o condenado teve uma infância e adolescência não fáceis (cf. fls. 749), sendo «originário de um agregado familiar desfavorecido tendo a sua infância decorrido num ambiente de conflitualidade marcada pelo alcoolismo paterno» (cf. fls. 775); f) a que os factos respeitando a três dos crimes concorrentes se reportam já há quase seis anos, parece-nos responder adequadamente às exigências de prevenção, sem colocar em causa o limite que a culpa constitui, uma pena única não superior a seis anos de prisão. Por último, IX APLICAÇÃO DA LEI Nº 29/99, DE 12/05 Por a aplicação do perdão previsto na Lei n° 29/99 se configurar como um acto inútil, atento o disposto no art. 4° da referida lei e uma vez que o condenado A. praticou infracção dolosa nos três anos subsequentes à data da entrada em vigor daquela, acompanhamos a Magistrada recorrente quando pugna pela não aplicação do aludido perdão. Em conclusão:
1. O douto acórdão recorrido, na determinação da pena única relativa ao condenado B., violou o determinado nos arts. 77°, n° 1, e 78°, n° 1, ao englobar no respectivo cúmulo jurídico penas parcelares relativas a crimes que foram praticados pelo condenado já depois do trânsito em julgado da sua condenação nos autos de processo comum singular n° 141/97.0TBABF.
2. O Supremo Tribunal de Justiça, ao decidir se, no caso concreto, a medida do perdão, deve ou não manter-se, não pode ficar cativo de uma operação de determinação da pena que desrespeita aqueles normativos, devendo, oficiosamente, conhecer também da medida da pena única.
3. Dentro da moldura penal do concurso, integradora das penas parcelares referidas no douto acórdão recorrido sob os nºs 1., 2., 6., 7., 8. – neste somente as penas de 7 meses e de 2 anos e 4 meses, relativas a factos praticados, respectivamente, em 19 de Novembro e 11 de Dezembro de 1997 – e 9., sendo o limite mínimo três anos de prisão e o limite máximo dezassete anos e três meses de prisão, uma pena única não superior a seis anos de prisão parece-nos responder adequadamente às exigências de prevenção, sem colocar em causa o limite que a culpa constitui.
4. Dentro da moldura penal do concurso, integradora agora das penas parcelares referidas no douto acórdão recorrido sob os nºs 3., 4., 5. e 8. – neste somente as penas de 3 anos, 2 anos e 6 meses e de 2 anos e 6 meses, relativas a factos praticados, respectivamente, em 2, 3 e 12 de Janeiro de 1999, sendo o limite mínimo três anos de prisão e o limite máximo dezanove anos e quatro meses de prisão, uma pena única não superior a sete anos de prisão parece-nos responder adequadamente às exigências de prevenção, sem colocar em causa o limite que a culpa constitui.
5. Uma vez que os factos praticados pelo condenado B. ocorreram todos antes de
25 de Março de 1999, sobre cada pena única incidirá o perdão a que alude o art.
1º, n° 1, da referida Lei nº 29/99, em medida que, face às penas únicas que o Supremo Tribunal de Justiça vier a impor, se mostrar então mais favorável ao condenado, mantendo-se distintas as penas únicas, a cumprir sucessivamente, salvo para efeitos da interrupção a que alude o art. 62°.
6. Atento o disposto no art. 4° da Lei n° 29/99 e uma vez que o condenado A. praticou infracção dolosa nos três anos subsequentes à data da entrada em vigor daquela lei, não deve ter lugar a aplicação do perdão por configurar como um acto inútil.
7. A pena não privativa de liberdade prevista no art. 50° constitui uma verdadeira pena e não uma forma de execução de uma pena de prisão, sendo autónoma em relação à pena de prisão substituída.
8. Nos termos do art. 495° do C.P.P., competente para a revogação – impondo o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença –, é o Tribunal que o for para a execução da pena de substituição e não o Tribunal com competência, nos termos do art. 471° do C.P.P., para a realização do cúmulo jurídico, pelo que a revogação, pelo douto acórdão recorrido, quando da realização do cúmulo, da pena de substituição impostas pelo Tribunal de Portimão viola o princípio do juiz natural.
9. Verificados os pressupostos típicos a que alude o art. 56°, n° 1, o Tribunal decide, nos termos do art. 495° do Código de Processo Penal, da revogação depois de recolhida a prova e antecedendo parecer do Ministério Público e audição do condenado, pelo que o douto acórdão terá também violado o princípio do contraditório.
10. Não tendo sido revogada pelo Tribunal de Portimão a pena de substituição previstas no art. 50°, não pode a pena de prisão substituída ser cumuladas com as outra penas de prisão não substituídas, sob pena de violação do art. 77°.
11. O douto acórdão recorrido – ao considerar que, por ser o Tribunal competente para a realização de cúmulo jurídico, podia nele integrar a pena de prisão substituída imposta no proc. n° 8/99.7GEPTM, apesar de não se mostrar revogada pelo Tribunal de Portimão a pena de substituição, acabando, assim, por proceder à ‘revogação’ automática desta – afronta as normas dos arts. 56°, n° 1,
59°, n° 2, 77° e 78°, todos do C.P., 470°, n° 1, 495°, nºs 2 e 3, e 498°, n° 3, todos do C.P.P., nega a intangibilidade do caso julgado, com tutela no art.
282°, n° 3, da C.R.P., desrespeita o princípio do juiz natural, não salvaguarda o princípio do contraditório, não assegurando, assim, todas as garantias do processo criminal previstas no art. 32°, nºs 1, 5 e 9, da C.R.P.
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Após algumas vicissitudes processuais que ao caso não interessa relatar, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 4 de Março de 2004, alterou a decisão recorrida, por forma a impor, no que concerne ao arguido A., a pena única de sete anos de prisão.
E, reportadamente à questão de, na pena única, ser incluída a pena parcelar de dois anos e quatro meses de prisão, cuja execução tinha ficado suspensa pelo período de dois anos, entendeu que nada obstava a que o tribunal que procede obrigatoriamente ao cúmulo das penas, imposto pelos artigos 77º e
78º do Código Penal, a englobe na pena única, já que o mesmo tem de ter em consideração os critérios ínsitos naquelas disposições, bem como os vertidos no seu artº 56º.
É deste aresto que, pelo Ministério Público, vem, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, interposto recurso para o Tribunal Constitucional, por seu intermédio pretendendo ‘ver apreciada a inconstitucionalidade dos artigos 77.º e 78.º, ambos do C. P., bem como do art.
56.º do mesmo diploma legal, aplicado implicitamente, quando interpretados no sentido dado pelo douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça’, dizendo que aquando ‘da produção de alegações escritas (fls. 897 a 925), o Ministério Público suscitou a inconstitucionalidade da interpretação que ora se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie’.
O recurso para este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa foi admitido por despacho lavrado em 24 de Março de 2004 pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça.
2. Porque tal despacho não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82) e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 70º, ainda da mesma Lei, a vertente decisão, por intermédio da qual se não toma conhecimento do objecto da presente impugnação.
Na verdade, como se sabe, objecto dos recursos visando a fiscalização concreta da constitucionalidade são normas constantes do ordenamento jurídico infra-constitucional não outros actos do poder público tais como, verbi gratia, as decisões judiciais qua tale consideradas.
Neste contexto, sendo um dos requisitos do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82 o de ter sido suscitada a questão da desconformidade com Lei Fundamental antecedentemente à prolação da decisão intentada impugnar perante o Tribunal Constitucional, mister é que se aprecie se, na situação sub specie, foi, efectivamente, assacada a qualquer preceito constante do dito ordenamento o vício de desarmonia com o Diploma Básico, ainda que reportadamente a uma norma alcançada mediante um dado processo interpretativo incidente sobre desse preceito.
Ora, como deflui dos transcritos passos da alegação escrita produzida pelo Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, aquela entidade não fez qualquer referência a qualquer concreta dimensão interpretativa, que teria sido levada a efeito pela decisão então impugnada perante aquele Alto Tribunal, referentemente aos artigos 56º, 77º e 78º do Código Penal e que, na perspectiva da mesma entidade, seriam conflituantes com a Constituição.
Na verdade, naquela peça processual o Ministério Público, relativamente
àquela decisão limitou-se, como se viu, a dizer que ‘O douto acórdão recorrido
– ao considerar que, por ser o Tribunal competente para a realização de cúmulo jurídico, podia nele integrar a pena de prisão substituída imposta no proc. n°
8/99.7GEPTM, apesar de não se mostrar revogada pelo Tribunal de Portimão a pena de substituição, acabando, assim, por proceder à ‘revogação’ automática desta – afronta as normas dos arts. 56°, n° 1, 59°, n° 2, 77° e 78°, todos do C.P.,
470°, n° 1, 495°, nºs 2 e 3, e 498°, n° 3, todos do C.P.P., nega a intangibilidade do caso julgado, com tutela no art. 282°, n° 3, da C.R.P., desrespeita o princípio do juiz natural, não salvaguarda o princípio do contraditório, não assegurando, assim, todas as garantias do processo criminal previstas no art. 32°, nºs 1, 5 e 9, da C.R.P.’.
Não se imputa aí a qualquer normativo - designadamente aos que porventura se teriam extraído de um processo interpretativo levado a efeito por tal decisão sobre os preceitos agora mencionados no requerimento de interposição de recurso - um vício de desarmonia com a Constituição.
Por outro lado, a referência, levada a efeito pelo Ministério Público na aludida alegação escrita, à circunstância de a jurisprudência ter vindo a entender maioritariamente que era possível, no caso de conhecimento superveniente de concurso, revogar-se a suspensão da execução da pena a integrar no concurso [rectius, englobar-se na pena única cuja execução não seria suspensa, uma pena de prisão parcelar cuja execução tinha ficada suspensa], e que esse entendimento não só não parecia o mais correcto dogmaticamente como era desconforme com o Código Penal e o Código de Processo Penal, sendo, além disso, violador da Constituição, não pode ser considerada como a utilização de um meio processualmente adequado para suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa reportadamente a preceitos que teriam sido convocados pela decisão então impugnada, questão essa que se desejaria submeter
à apreciação pelo tribunal perante o qual aquela decisão foi recorrida.
E não o é, porquanto, não só, com tais expressões, se não questiona o entendimento concreto relativamente aos preceitos utilizados como ratio decidendi pela decisão recorrida, como não se aponta que esta adoptasse interpretação normativa idêntica àquela que, alegadamente, é imputada à jurisprudência maioritária.
E, ainda quanto a este particular, sublinhe-se que sustentar-se que determinada postura assumida por uma invocada maioria de decisões judiciais é algo de violador de preceitos vertidos no ordenamento jurídico infra-constitucional substantivo e adjectivo, do mesmo passo o sendo relativamente à Lei Fundamental consubstancia, afinal, questionar aquelas próprias decisões e não a harmonia constitucional dos preceitos ordinários.
Em face do exposto, porque se perfilha a óptica segundo a qual não foi, adequadamente, suscitada, precedentemente ao acórdão de 4 de Março de 2004, a questão de inconstitucionalidade da dimensão interpretativa referente aos preceitos precipitados nos artigos 56º, 77º e 78º do Código Penal, não se toma conhecimento do objecto do recurso”.
Da transcrita decisão reclamou o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal, aduzindo:
“1 - Ao contrário do que se entendeu na decisão ora reclamada, consideramos que o representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça suscitou, em termos procedimentalmente adequados, na alegação escrita que produziu, a questão de constitucionalidade a que vem reportado o presente recurso.
2 - É que - conjugando a conclusão de fls. 917 com a aprofundada argumentação que a precedeu - resulta suficientemente especificado o sentido normativo que se tem por violador da Constituição.
3 - Assim, a fls. 912, - VI, ponto 1 - começa por se indicar qual o entendimento jurisprudencial que se pretende questionar: aquele que se traduz em considerar ‘ser possível, em caso de conhecimento superveniente de concurso
(artigo 78), revogar-se a pena de substituição, nomeadamente a pena de suspensão de execução da prisão, sem que tal implique violação de caso julgado, efectuando-se depois o cúmulo jurídico entre a pena de prisão que fora substituída e a(s) outra(s) pena(s) de prisão não substituída(s)’.
4 - Por outro lado, tal interpretação normativa jurisprudencial aparece claramente reportada aos preceitos do Código Penal que a alicerçam nomeadamente aos artigos 77°, 78° (logo citado no referido trecho) e 50° do Código penal
(cfr., fls. 912/913).
5 - Indicando-se, por outro lado, que tal sentido normativo seria ‘violador da Constituição’ (fls. 912), especificando-se, na parte conclusiva de tal argumentação jurídica, a fls. 917, quais as normas ou princípios constitucionais que se consideram violados.
6 - Di[s]sentindo-se, deste modo, da conclusão de que o Ministério Público não teria feito ‘qualquer referência a qualquer concreta dimensão interpretativa’, já que se considera que, na dita alegação: - se especifica tal interpretação, em termos bastantes;
- se indicam os artigos de lei a que a mesma se deve considerar reportada;
- se especificam as normas e princípios constitucionais que se consideram violados.
7 - Tal implica que, numa interpretação funcional e razoável dos ónus e exigências formais que funcionam como pressupostos do recurso tipificado na alínea b) do n° 1 do artigo 70° da Lei n° 28/82, o recorrente cumpriu em termos bastantes, as exigências para que o recurso deva ser admitido.
8 - Sendo pertinente notar que - em situação perfeitamente análoga à dos autos - o recurso interposto pelo Ministério Público se encontra em fase de alegações
(cfr., pº 626/03, da 1ª Secção)”.
Cumpre decidir.
2. Como deflui da transcrita peça processual consubstanciadora da reclamação, esta alicerça-se, essencialmente, na consideração segundo a qual a Representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, aquando da alegação escrita que aí formulou, ao referir-se, inicialmente, ao entendimento jurisprudencial de harmonia com o qual, no caso de conhecimento superveniente de concurso, pode ser englobada na pena única uma pena parcelar cuja execução tinha ficado suspensa, reportou-o aos preceitos dos artigos 77º, 78º e 50º, todos do Código Penal, dizendo, depois, que esse entendimento era violador da Constituição.
Ora, essa referência não deixou de ser, expressamente, equacionada na decisão em apreço, que a teve como não podendo integrar uma suscitação, em moldes adequados, de uma questão de inconstitucionalidade de dada interpretação normativa que teria sido acolhida na decisão então recorrida.
E a essa perspectiva, adoptada na decisão em crise, não a tem o Tribunal como passível de censura, em termos de considerar que foi, no caso, adequadamente suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa reportada a uma dimensão interpretativa dos preceitos - ora indicados no requerimento de interposição de recurso - que foram convocados para a decisão que veio a ser impugnada perante o Supremo Tribunal de Justiça.
Termos em que se indefere a reclamação.
Lisboa, 15 de Abril de 2004
Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida