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Processo n.º 458/12
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é reclamante o Partido Socialista e reclamado o Ministério Público, o primeiro reclamou, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho de 24 de maio de 2012, que não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional.
2. O reclamante impugnou judicialmente, junto do Supremo Tribunal de Justiça, decisão da Comissão Nacional de Eleições de 12 de julho de 2011, que o condenou numa coima pela prática de contraordenação prevista na Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto. Através do acórdão de 15 de fevereiro de 2012, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso (impugnação da decisão da autoridade administrativa).
Interposto recurso para o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, o mesmo não foi admitido pelo relator, em 30 de março de 2012, com fundamento em inadmissibilidade legal. Desta decisão foi deduzida reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que, por despacho de 16 de abril de 2012, decidiu que a mesma «não pode ser objeto de conhecimento».
Notificado desta decisão, o reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação do «n.º 1 do artigo 202.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, quando interpretada no sentido de admitir a competência instrutória da CNE no âmbito dos processos por contraordenação (…), por violação do princípio da legalidade, da tipicidade e da proibição da interpretação extensiva» (cf. fl. 15 e s. dos presentes autos).
3. Foi então proferido o despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade, com a seguinte fundamentação:
«Não admito o recurso interposto para o Tribunal Constitucional da decisão proferida em 15 de fevereiro de 2012 relativamente à interpretação que se diz ter sido feita do art.º 202.º, n.º 1 da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, quanto à competência da CNE para levar a cabo atos instrutórios – isto porque a pretensa inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo, sendo certo que o podia e devia ter sido, não havendo, sob esse aspeto, qualquer solução inconjecturável que tivesse surpreendido o requerente Partido Socialista».
4. É esta decisão que é agora objeto de reclamação:
«1. No processo sinalizado supra, e por acórdão da 5ª Secção do STJ (Única Instância) foi mantida a decisão condenatória da Comissão Nacional de Eleições, e que condenou o ora reclamante a uma coima no valor de €4.984,98, por, alegadamente, não ter apresentado as contas do referendo, em violação ao disposto no artigo 216º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 11 de setembro;
2. Irresignado, o arguido recorreu de tal acórdão para o pleno das Secções Criminais do STJ;
3. Por despacho de 30/03/2012, notificado ao arguido/reclamante, foi tal recurso recusado, alegando, o Digníssimo Conselheiro, e por súmula, (…) que o recurso para as secções criminais da decisão da CNE esgota todas as possibilidades de recurso (...);
4. O aqui reclamante, reclamou de tal despacho para o Excelentíssimo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, alegando, conforme se transcreve:
(…)
5. Tal reclamação não mereceu acolhimento, mantendo, o Ilustre Presidente do STJ a decisão de não admissão do recurso (de segunda instância), desta feita para o pleno do STJ.
6. Mais uma vez, discordando o ora reclamante de tal decisão, apresentou recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos que de seguida se transcreve:
(…)
7. O Excelentíssimo Presidente do STJ recusou, por despacho de 08 de maio de 2012, o recurso para o Tribunal Constitucional, remetendo para a 5ª Secção do STJ a apreciação do recurso quanto à incompetência da CNE e, concomitantemente, a inconstitucionalidade suscitada.
8. Sendo que é desse despacho que ora se reclama para o Tribunal Constitucional (doc.1 que se junta);
9. Visa, pois, o PS ver apreciada a inconstitucionalidade do nº 1 do artigo 202º da Lei Orgânica nº 4/2000, de 21 de agosto, quando interpretado no sentido de admitir a competência instrutória da CNE no âmbito dos processos por contraordenação.
10. Defende o Digno Relator, no despacho agora em crise, que o PS não invocou a inconstitucionalidade da norma durante o processo;
11. Ora, perante isto, resta apenas dizer, com a vénia devida, que o Digníssimo Conselheiro lavra em erro, uma vez que a inconstitucionalidade foi, devida, e formalmente (e mesmo atempadamente) invocada junto do STJ aquando da interposição de recurso para pleno, em conformidade e nos termos transcritos supra (ponto 34º das alegações de recurso).
12. Resulta claro, seguindo a tramitação do processo que aqui nos ocupa, que o arguido não suscitou anteriormente a questão da inconstitucionalidade, porquanto só após a decisão condenatória na primeira instância (do STJ) – que não esperava de todo - é confrontado com a impossibilidade de recurso, pelo que se verifica o efeito surpresa da aplicação da norma e falta de momento anterior para suscitar a inconstitucionalidade de normas em causa, por se tratarem de normas adjetivas, que, diga-se, não foram invocadas no despacho de que agora se reclama.
13. A inconstitucionalidade da norma foi invocada no texto do recurso para o Pleno, e, bem assim, em sede de reclamação dirigida ao Presidente do STJ, cujo texto está transcrito supra no ponto 4 da presente reclamação, em que é invocada a inconstitucionalidade do por violação do princípio da legalidade, da tipicidade e da proibição da interpretação extensiva.
14. Termos em que, ao abrigo do disposto na al.b) do n.º 1 do art. 70º, atento o efeito surpresa, requer-se que seja admitido recurso para o Tribunal Constitucional, revogando-se desta feita a o despacho/decisão do Exmo. Senhor Conselheiro Relator da 5ª Secção do STJ.
Pelo que ficou dito, deve o presente recurso ser admitido, seguindo os seus ulteriores termos e deferimento».
5. Neste Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação, nos seguintes termos:
«6. O Partido ora reclamante interpôs, então, recurso para o Tribunal Constitucional, alegando, designadamente, ser “inconstitucional o nº 1 do artigo 202º da Lei Orgânica nº 4/2000, 24 de agosto, quando interpretado no sentido de admitir a competência instrutória da CNE no âmbito dos processos por contraordenação, interpretação esta assumida no acórdão aqui sob recurso, por violação do princípio da legalidade, da tipicidade e da proibição da interpretação extensiva” (cfr. fls. 5-6 dos autos).
7. No entanto, o Ilustre Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho, de 24 de maio de 2012, recusou o mesmo recurso, afirmando, designadamente (cfr. fls. 20 dos autos) (destaques do signatário):
“Não admito o recurso interposto para o Tribunal Constitucional da decisão proferida em 15 de fevereiro de 2012 relativamente à interpretação que se diz ter sido feita do art. 202º, nº 1, da Lei Orgânica nº 4/2000, de 24 de agosto, quando à competência da CNE para levar a cabo atos instrutórios – isto porque a pretensa inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo, sendo certo que o pedia e devia ter sido, não havendo, sob esse aspeto, qualquer solução inconjeturável que tivesse surpreendido o requerente Partido Socialista.”
8. Ora, crê-se que o Ilustre Conselheiro Relator tem inteira razão no que afirma. Com efeito, a questão de inconstitucionalidade, que agora se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, não foi suscitada perante o tribunal a quo – no caso dos autos, o Supremo Tribunal de Justiça -, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
Nessa medida, não foi respeitado o disposto no art. 72º, nº 2 da LTC, o que inviabiliza o conhecimento do presente recurso.
9. Pelo exposto, crê-se que a presente reclamação não deve merecer deferimento por parte deste Tribunal Constitucional».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
No Supremo Tribunal de Justiça foi proferido despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade interposto do acórdão de 15 de fevereiro de 2012, com fundamento na não suscitação, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade relativa à «interpretação que se diz ter sido feita do art.º 202.º, n.º 1, da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, quanto à competência da CNE para levar a cabo atos instrutórios», não havendo razões para dispensar o recorrente de tal suscitação prévia.
O reclamante alega que a inconstitucionalidade da norma foi invocada no recurso interposto para o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, bem como na reclamação do despacho que não o admitiu, argumentando que não suscitou anteriormente a questão da inconstitucionalidade, porquanto só após a decisão condenatória na primeira instância (do STJ) – que não esperava de todo – é confrontado com a impossibilidade de recurso.
De acordo com o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – ao abrigo da qual foi interposto o recurso de constitucionalidade –, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, impendendo sobre o recorrente o ónus de suscitar a questão de constitucionalidade «perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC). Ou seja, em momento prévio à respetiva prolação, o que, manifestamente, não se verifica nos presentes autos, uma vez que tal questão não foi suscitada em momento anterior à prolação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de fevereiro de 2012.
Na impugnação judicial da decisão da Comissão Nacional de Eleições de 12 de julho de 2011 não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada ao n.º 1 do artigo 202.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto. E no recurso para o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça e na reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça do despacho que não o admitiu, o então recorrente já não estava a tempo de suscitar a questão de inconstitucionalidade em causa, face ao disposto no n.º 2 do artigo 72.º da LTC. Tais peças processuais são subsequentes à prolação da decisão recorrida (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de fevereiro de 2012).
É de acompanhar a fundamentação do despacho reclamado quando conclui que o então recorrente podia ter suscitado a questão de inconstitucionalidade durante o processo, «não havendo sob esse aspeto, qualquer solução inconjecturável que tivesse surpreendido o requerente Partido Socialista». Se, por um lado, um dos fundamentos da impugnação judicial foi a falta de competência da Comissão Nacional de Eleições para proceder à instrução de processos relativos a ilícitos de mera ordenação social, face ao disposto no artigo 202.º, n.º 1, da Lei Orgânica n.º 4/2000 (cf. fl. 25 e ss. dos presentes autos), por outro, não se pode concluir que o então recorrente tenha sido surpreendido com a decisão de não admissão do recurso para o pleno das secções criminais, face ao disposto no artigo 11.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal (cf. fl. 44 e ss. dos presentes autos). O então recorrente tinha o ónus de antecipar a decisão de inadmissibilidade legal do recurso do acórdão que conheceu a impugnação judicial da decisão da Comissão Nacional de Eleições e, consequentemente, abrir atempadamente a via do recurso de constitucionalidade (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Há que confirmar, pois, o despacho que é objeto da presente reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 25 de setembro de 2012.- Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Rui Manuel Moura Ramos.