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Processo n.º 248/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No processo n.º 178/09.8TYLSB, do 4.º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, a arguida Associação dos Industriais de Panificação de Lisboa apresentou recurso de impugnação da decisão do Conselho da Autoridade da Concorrência de 12 de dezembro de 2008 que a condenou no pagamento da coima de € 1.177.429,30, por violação da proibição do n.º 1, do artigo 4.º, da Lei n.º 18/2003, de 11 de junho, punível nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, alínea a), e 44.º, do mesmo diploma.
Foi proferida sentença em 25 de junho de 2010 que julgou improcedente a impugnação judicial.
A arguida recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão proferido em 28 de dezembro de 2011, concedeu parcial provimento ao recurso, reduzindo o montante da coima aplicada para € 850.000,00.
A arguida alegou a nulidade desta decisão por omissão de pronúncia.
O Tribunal da Relação de Lisboa indeferiu esta arguição por Acórdão proferido em 7 de março de 2012.
A arguida recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, dizendo pretender a fiscalização da constitucionalidade do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na interpretação que dele fez o acórdão recorrido no seu ponto 4.2., “…mais concretamente a interpretação de que não constitui omissão de pronúncia a circunstância de, no acórdão proferido, se pronunciar expressamente sobre apenas três questões…das constantes das conclusões das alegações de recurso da recorrente…não o fazendo em relação a uma quarta questão, de natureza substancialmente distinta daquelas, igualmente constante das conclusões daquelas alegações de recurso…considerando o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa…que esta última se encontra esclarecida na fundamentação apresentada a propósito das outras”.
O Tribunal Constitucional proferiu decisão sumária de não conhecimento deste recurso.
Mas a arguida também interpôs recurso do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 28 de dezembro de 2011, nos seguintes termos:
“[…]
2- A ora Recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade do artº 4º, nº 1, 42º, 43º, nº 2 e 44º da Lei nº 18/2003, de 11 de junho (adiante designada por LdC).
3- A ora Recorrente considera que as referidas disposições da LdC violam os artºs 18º, nº 2, 20º, 29º, nºs 1 e 2, 32º, 46º, nºs 1 e 2 e 165º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
4- A ora Recorrente considera ainda que as referidas disposições da LdC violam os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade decorrente do artº 165º, nº 1, bem como o princípio “in dubio pro reu” consagrado no artº 32º, nº 2, ambos da Constituição da República Portuguesa.
5- A ora Recorrente pretende, ademais, ver apreciada a ilegalidade do artºs 4º, nº 1, 42º, 43º, nº 2 e 44º da LdC.
6- A ora Recorrente considera que as referidas disposições da LdC violam os artºs 1º, 2º, 7º, 17º e 18º do Regime Geral das Contraordenações, aprovado pelo Decreto-Lei nº433/82, de 27 de outubro, alterado pelo Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de outubro, pelo Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de setembro, pelo Decreto-Lei nº 323/2001, de 17 de dezembro e pela Lei 109/2001, de 24 de dezembro (adiante designada por RGCO).
7- A ora Recorrente considera que o RGCO é uma lei de valor reforçado, na aceção do nº 3 do artº 112º da Constituição da República Portuguesa.
8- As questões de inconstitucionalidade e de ilegalidade acima mencionadas foram suscitadas pela ora Recorrente no recurso da sentença do Tribunal de Comércio de Lisboa para o Tribunal da Relação de Lisboa.
9- Mais concretamente, as mencionadas inconstitucionalidades foram invocadas nos pontos 46 a 149 da motivação e nas conclusões XII a XV do referido recurso.
10- Já as mencionadas ilegalidades foram invocadas nos pontos 150 a 159 da motivação e nas conclusões XVI e XVII do referido recurso.”
Apresentou alegações com as seguintes conclusões:
“I- O artº 40, nº 1, da LdC viola os princípios da tipicidade, da legalidade, da culpa, da presunção de inocência e da tutela jurisdicional efetiva, nos termos e pelos motivos anteriormente expostos.
II- O artº 40, nº 1, da LdC, na interpretação que lhe foi dada pelas instâncias, viola os princípios da tipicidade, da legalidade, da culpa, da presunção de inocência e da tutela jurisdicional efetiva, nos termos e pelos motivos anteriormente expostos.
III- O artº 4º, nº 1, da LdC é inconstitucional, por violação dos artºs 18º, nº 2, 20º, 29º, nºs 1 e 2, 32º e 165º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
IV- O artº 4º, nº 1, da LdC, na interpretação que lhe foi dada pelas instâncias, é inconstitucional, por violação dos artºs 18º, nº 2, 20º, 29º, nºs 1 e 2, 32º e 165º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
V- O artº 4º, nº 1, da LdC viola ainda, a liberdade de associação, nos termos e pelos motivos anteriormente expostos.
VI- O artº 40, nº 1, da LdC, na interpretação que lhe foi dada pelas instâncias, viola ainda, a liberdade de associação, nos termos e pelos motivos anteriormente expostos.
VII- O artº 40, nº 1, da LdC é inconstitucional, por violação do artº 46º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
VIII- O artº 4º, nº 1, da LdC, na interpretação que lhe foi dada pelas instâncias, é inconstitucional, por violação do artº 46º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa
Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exªs, seja dado provimento ao presente recurso, declarando-se a inconstitucionalidade do artº 40, nº 1, da LdC, com todas as legais consequências daí decorrentes, fazendo-se, deste modo, a costumada JUSTIÇA”.
O Ministério Público apresentou contra-alegações que concluiu do seguinte modo:
“1.º As normas dos artigos 4.º, n.º 1, e 42.º, da Lei n.º 18/2003, de 11 de junho (LdC), na interpretação efetuada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, não afrontam a Constituição, nomeadamente, os seus artigos 18.º, nº 2, 20.º, 29.º, nº 1 e 2, 32.º, 46.º, nº 1 e 2, e 165.º, nº 1.
2.º Com efeito, foi a própria Assembleia da República, nos termos da alínea c) do artigo 161 da Constituição, que emitiu a Lei n.º 18/2003, onde se inserem as normas questionadas, não se compreendendo, por isso, a alegada violação do artigo 165.º, nº 1, da CRP, que dispõe sobre a reserva relativa de competência da Assembleia da República.
3.º Por outro lado, e muito embora, no âmbito do direito contraordenacional, onde nos encontramos, as exigências da tipicidade das infrações sejam de menor grau ( cfr. Acs. nºs 666/94 e 635/2011), a norma do artigo 4.º da LdC, que procede à descrição das condutas ou práticas proibidas, e enumera, a título exemplificativo, as situações mais típicas, garante os critérios de determinabilidade da infração, pelo que, não é uma norma contraordenacional em branco, nem afronta o princípio da tipicidade e da legalidade.
4.º Por sua vez, e como é óbvio, o artigo 42.º da LdC não deve ser analisado isoladamente, mas tendo em consideração todo o regime jurídico estabelecido na Lei nº 18/2003, e, em particular, os seus artigos 43.º e 44.º, que estabelecem as coimas e os critérios de determinação da medida das coimas.
5.º Assim, no caso em apreço, a diferenciação da moldura abstrata das coimas, definida em função de um critério objetivo, designadamente, o da gravidade da infração relativa à manutenção de uma concorrência efetiva no mercado nacional, não sendo inadequada, desproporcionada ou arbitrária, também não obsta a que a culpa, a situação económica e demais circunstâncias da infração sejam ponderadas dentro dos limites máximos fixados.
6.º Importa, ainda, salientar, que a arguida nos presentes autos é a Associação dos Industriais de Panificação de Lisboa (A.I.P.L.), a quem foi imputada a autoria material da infração contraordenacional prevista no nº 1 do artigo 4.º da LdC, e que, em consequência, foi condenada ao pagamento de uma coima punível nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 43.º e 44.º da LdC.
7.º Ora, não resulta dos autos, que a sanção contraordenacional tenha sido aplicada à arguida A.I.P.L., sem que a mesma tenha sido previamente ouvida (direito de audição), ou não tenha podido defender-se das imputações que lhe foram feitas (direito de defesa), como vem consagrado, especificamente para os processos de contraordenação, no que tange aos direitos de defesa do arguido, no n.º 10 do art.º 32.º da Constituição.
8.º Por fim, não vemos como possa, a interpretação normativa questionada, colidir com a liberdade de associação, com a tutela jurisdicional efetiva ou com a presunção de inocência da arguida, repita-se, A.I.P.L.
9.º Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.”
A Autoridade da Concorrência apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:
“A. Por Sentença de 25 de junho de 2010, o TCL confirmou a Decisão da AdC na totalidade, condenando a AIPL no pagamento de uma coima no valor de € 1.177.429,30 (um milhão, cento e setenta e sete mil, quatrocentos e vinte e nove euros e trinta cêntimos), por violação da proibição contida no n.º 1 do artigo 42.º da Lei n.º 18/2003, punível nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 43.º e do artigo 44.º do mesmo diploma legal, por proceder a troca de informações sobre preços com as empresas suas associadas, o que constitui uma decisão de associação de empresas com o objetivo de impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência numa parte relevante do território nacional, tendo sido cometida com caráter doloso. Desta Sentença a AIPL recorreu para o TRL e é do aresto deste Venerando Tribunal que ora recorre.
B. A defesa da concorrência constitui um bem público constitucionalmente consagrado na alínea f) do artigo 81.º da CRP que cabe à AdC preservar numa perspetiva instrumental.
C. A Autoridade, nos termos dos artigos 1.º e 4.º dos Estatutos, tem como missão assegurar a aplicação das regras da concorrência nacionais e europeias, no respeito pelo princípio da economia de mercado e de livre concorrência, com vista ao funcionamento eficiente dos mercados, à repartição eficaz dos recursos e aos interesses dos consumidores.
D. No âmbito do exercício dos seus poderes sancionatórios, cumpre à Autoridade identificar e investigar as práticas suscetíveis de infringir a legislação da concorrência nacional e europeia, proceder à instrução e decidir sobre os respetivos processos, aplicando, se for caso disso, as sanções previstas na lei, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 7.º, dos Estatutos supra mencionados.
E. O objeto do Recurso foi delimitado pelas conclusões formuladas pela Recorrente para o TCL. Assim, ao pretender ver apreciadas pelo Tribunal ad quem questões que não se reconduzem a questões de direito apreciadas e aplicadas pela Sentença, nem pelo aresto do TRL, e, outras ainda, que se reconduzem à atuação da AdC na aplicação das normas violadas pela Recorrente, deverá o Recurso ser declarado improcedente.
F. A Recorrente não cumpriu assim o ónus de suscitação das questões inconstitucionalidade perante o Tribunal recorrido, conforme exigido pelos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC, pelo que, desde logo por falta de preenchimento desse pressuposto processual, pelo que, o TC não pode conhecer do Recurso.
G. Por outro lado, o Acórdão de 28.12.2011 não aplicou como ratio decidendi o artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2003.
H. Não se encontrando os pressupostos do Recurso de constitucionalidade preenchidos, por um lado, como se constata não foi a questão normativa e interpretativa suscitada ao longo do processo de modo a que tenha podido ser objeto de decisão do TCL, em desconformidade com o artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP e o artigo 72.º, n.º 2, da LTC.
I. Finalmente, as interpretações normativas que foram efetivamente aplicadas pelas instâncias em recurso não coincidem com aquelas que a Recorrente pretende ver ora sindicadas, pelo que não deve o Venerando Tribunal conhecer do objeto do Recurso.
J. Todo o Recurso se baseia na discordância da Recorrente com o decidido de fundo.
K. A norma do artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2003 não viola nenhuma disposição constitucional.
L. Nada há a censurar ao Acórdão do TRL. Até porque previsão legal do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 18/2003 não constitui qualquer novidade no panorama jurídico, nem sequer nas lides da concorrência, quer nacionais quer europeias.
M. Acresce que, independentemente da definição avançada para o conceito de empresa ou decisão de associação de empresas, este estará sempre indissociavelmente ligado aos objetivos da legislação de defesa da concorrência e nunca poderá contribuir para os limitar ou eliminar.
N. A AdC não cria as infrações, nem integra os elementos da infração ao abrigo de qualquer poder discricionário, nem tal seria possível ao abrigo da Lei n.º 18/2003, a qual contém a previsão da infração, e foi aprovada pela Assembleia da República, nos termos do artigo 161.º, alínea e), da CRP, em concretização de uma das incumbências prioritárias do Estado, e salvaguardando um dos princípios fundamentais da ordem jurídica da União Europeia. Como tal, a mesma norma não viola o princípio da tipicidade, nem o princípio da legalidade.
O. Não existe inconstitucionalidade do artigo 4.º, n.º 1, ex vi artigo 42.º, ambos da Lei n.º 18/2003:
a. Porque não viola os princípios da legalidade e da tipicidade, constante dos artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.ºs 1 e 2, e 165.º, n.º 1, todos da CRP;
b Porque não existe responsabilidade contraordenacional objetiva, nem desconsideração do princípio da culpa, do princípio da tutela jurisdicional efetiva e ainda do princípio da presunção de inocência em violação dos artigos 20.º e 32.º da CRP;
c. Porque não configura uma restrição ao princípio da liberdade de associação, a violação do disposto no artigo 46.º, n.ºs 1 e 2, da CRP.
P. Tampouco há violação dos princípios da tipicidade, da legalidade e da culpa nos artigos 4.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2003.
Q. Sendo certo que, apesar de no seu requerimento de interposição de recurso se insurgir contra a não aplicação das normas da Lei n.º 18/2003 por violação do RGCO, que considera uma lei com valor reforçado, da leitura das alegações de Recurso resulta que a Recorrente, apesar de continuar a pugnar pela ilegalidade das normas, já não faz qualquer referência à aplicação de uma norma por esta contender com uma lei daquela natureza.
R. Aliás, todas as suas alegações se reconduzem à violação da CRP pelo artigo 4.º da Lei n.º 18/2003, não existindo qualquer referência ao RGCO.
S. A argumentação que sustenta a tese de ilegalidade, não tem qualquer suporte legal, tampouco conseguindo a Recorrente contornar a ausência dessa base legal através do expediente de invocação genérica e descontextualizada de qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade por violação dos princípios da legalidade, da tipicidade, da culpa, já que os mesmos não são, de todo, beliscados pela solução encontrada pelo legislador.
T. Não há violação dos princípios da tipicidade, da legalidade e da culpa no artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2003, pelo que falece toda a argumentação da Recorrente também quanto a este aspeto.
U. Ainda assim e por dever de patrocínio, sempre se dirá que o diploma em causa não constitui lei com valor reforçado, nos termos do artigo 112.º, n.º 3, da CRP.
V. Em conclusão não foram aplicadas quaisquer normas que padeçam de qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade, nem foi feita qualquer interpretação normativa inconstitucional das normas em causa (n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 18/2003), pelo que não deve ser julgada inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 18/2003, e, igualmente, não conhecido o presente Recurso da AIPL no que respeita às interpretações normativas inconstitucionais e às ilegalidades suscitadas, por inexistentes, sendo, consequentemente, rejeitado o Recurso da AIPL.
Nestes termos, e nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente
Recurso ser julgado totalmente improcedente e mantido na íntegra o Acórdão do TRL e declarada a não inconstitucionalidade/ilegalidade da norma do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 18/2003.”
Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso constitucional é definido em primeiro lugar pelos termos do requerimento de interposição de recurso.
Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza (vide, Lopes do Rego, em “Os recursos de fiscalização concreta na lei e na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, p. 207, da ed. de 2010, da Almedina).
Confrontando o teor das conclusões das alegações com o do requerimento de interposição de recurso, constata-se que a Recorrente, por um lado, ampliou os termos em que havia delimitado o objeto do recurso neste requerimento, invocando a inconstitucionalidade de novas dimensões normativas, e, por outro lado, reduziu-o, deixando de impugnar a constitucionalidade de alguns preceitos legais e abandonando a invocação do vício da ilegalidade, por violação de lei com valor reforçado.
Assim, a Recorrente, no requerimento de interposição de recurso, invocou a inconstitucionalidade e ilegalidade do disposto nos artigos 4.º, n.º 1, 42.º, 43.º, n.º 2, e 44.º, da Lei nº 18/2003, de 11 de junho.
Nas alegações agora apresentadas, a Recorrente se, por um lado, restringe o objeto do recurso à inconstitucionalidade do artigo 4.º, n.º 1, da referida Lei, tenta ampliá-lo ao artigo 40.º, n.º 1, do mesmo diploma e a interpretações normativas subjacentes à aplicação pela decisão recorrida destes preceitos legais.
Apesar de algumas destas interpretações se encontrarem reportadas ao referido artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2003, de 11 de junho, cuja inconstitucionalidade havia sido arguida no requerimento de interposição de recurso, estamos perante novos conteúdos normativos de origem interpretativa, imputados à decisão recorrida, que se diferenciam do sentido do próprio preceito legal, pelo que não é possível considerá-los compreendidos na definição do objeto de recurso efetuada de forma definitiva no requerimento que o interpôs.
Por estes motivos e sendo lícita a redução do objeto de recurso nas alegações, contrariamente ao que sucede com a sua ampliação, na apreciação do seu mérito apenas se efetuará a fiscalização da constitucionalidade do tipo contraordenacional constante do artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2003, de 11 de junho, estando excluído do seu objeto qualquer uma das agora invocadas interpretações normativas desse preceito.
Perante esta delimitação fica prejudicada a apreciação da alegação pela Recorrida que não estavam verificados alguns dos pressupostos do conhecimento do recurso de constitucionalidade, uma vez que, relativamente ao artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2003, de 11 de junho, a sua inconstitucionalidade foi suscitada adequadamente perante o tribunal recorrido e o mesmo foi aplicado como sua ratio decidendi.
2. Do mérito do recurso
2.1. A Lei n.º 18/2003, de 11 de junho, denominada a Lei da Concorrência, visou dotar o ordenamento jurídico português de um regime de defesa da concorrência que, corrigindo as imperfeições dos anteriores regimes que se vinham sucedendo desde 1983, contribuísse para a modernização e competitividade da economia nacional, adaptando o ordenamento jurídico português à legislação comunitária europeia no domínio da concorrência, nomeadamente ao Regulamento (CE) n.º 1/2003, do Conselho, de 16 de dezembro de 2002.
No artigo 4.º, n.º 1, da Lei da Concorrência, estabelecem-se quais são os comportamentos proibidos por se considerarem ofensivos ou potencialmente ofensivos da concorrência.
Uma vez que o artigo 42.º, n.º 1, do mesmo diploma, qualifica a infração a estas proibições como contraordenação, o artigo 4.º, n.º 1, funciona como um tipo legal de contraordenação.
A Recorrente alega que o conteúdo do referido artigo 4.º, n.º 1, ao utilizar vários conceitos indeterminados não permite que os seus destinatários, assim como os seus aplicadores, saibam quais são as condutas que efetivamente são proibidas e sancionadas com a aplicação de uma coima, violando, assim, os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade.
Sobre a observância destes princípios no direito de mera ordenação social escreveu-se o seguinte no recente Acórdão n.º 397/12 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt):
“Num Estado de direito democrático a prevenção do crime deve ser levada a cabo com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, estando sujeita a limites que impeçam intervenções arbitrárias ou excessivas, nomeadamente sujeitando-a a uma aplicação rigorosa do princípio da legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege). É neste sentido que o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, dispõe que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.
Essa descrição da conduta proibida e de todos os requisitos de que dependa em concreto uma punição tem de ser efetuada de modo a que “se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos (Figueiredo Dias, na ob. cit. pág. 186). Daí que, incindivelmente ligado ao princípio da legalidade se encontre o princípio da tipicidade, o qual implica que a lei deve especificar suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos de medida de segurança), bem como tipificar as penas (ou as medidas de segurança). A tipicidade impede, assim, que o legislador utilize fórmulas vagas, incertas ou insuscetíveis de delimitação na descrição dos tipos legais de crime, ou preveja penas indefinidas ou com uma moldura penal de tal modo ampla que torne indeterminável a pena a aplicar em concreto. É um princípio que constitui, essencialmente, uma garantia de certeza e de segurança na determinação das condutas humanas que relevam do ponto de vista do direito criminal.
O princípio da tipicidade tem que ver, assim, com a exigência da determinabilidade do conteúdo da lei criminal. Conforme escreve Taipa de Carvalho (em “Constituição Portuguesa anotada”, organizada por Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo I, pág. 672, da 2.ª edição, revista, atualizada e ampliada, da Wolters Kluwer Portugal - Coimbra Editora), «dada a necessidade de prevenir as condutas lesivas dos bens jurídico-penais e igualmente de garantir o cidadão contra a arbitrariedade ou mesmo contra a discricionariedade judicial, exige-se que a lei criminal descreva o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime. Só assim o cidadão poderá saber que ações e omissões deve evitar, sob pena de vir a ser qualificado criminoso, com a consequência de lhe vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança”.
Não se pode afirmar que as exigências de tipicidade valham no direito de mera ordenação social com o mesmo rigor que no direito criminal. Aliás nem sequer existe no artigo 29.º da Constituição, que se refere às garantias substantivas do direito criminal, um preceito semelhante àquele que existe no artigo 32.º, a respeito das garantias processuais, alargando-as, com as necessárias adaptações, a todos os outros processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10).
Contudo, sendo o ilícito de mera ordenação social sancionado com uma coima, a qual tem repercussões ablativas no património do infrator, também aqui se devem respeitar os princípios necessariamente vigentes num Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), como o da segurança jurídica e da proteção da confiança.
Como se disse no Acórdão n.º 41/2004 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt):
“Está, porém, consolidado no pensamento constitucional que o direito sancionatório público, enquanto restrição relevante de direitos fundamentais, participa do essencial das garantias consagradas explicitamente para o direito penal, isto é, do núcleo de garantias relativas à segurança, certeza, confiança e previsibilidade dos cidadãos (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 158/92, de 23 de abril, 263/94, de 23 de março, publicados no D.R., II Série, de 2 de setembro de 1992 e de 19 de julho de 1994, e nº 269/2003, de 27 de maio, inédito). E se tal não resulta diretamente dos preceitos da chamada Constituição Penal, resultará, certamente, do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição.”
A determinabilidade do conteúdo de proibições cujo desrespeito é sancionado com uma coima é um pressuposto da existência de uma relação equilibrada entre Estado e cidadão. Na verdade, essa exigência é um fator de garantia da proteção da confiança e da segurança jurídica, uma vez que o cidadão só pode conformar autonomamente as suas condutas se souber qual a margem de ação que lhe é permitida e quais as reações do Estado aos seus comportamentos.
E se a menor danosidade da sanção das contraordenações (as coimas), que nunca afetam o direito à liberdade, conjuntamente com a necessidade de prosseguir finalidades próprias da ordenação da vida social e económica, as quais são menos estáveis e dependem, muitas vezes, de políticas sectoriais concretas, permitem uma aplicação mais aberta e maleável do princípio da tipicidade, comparativamente ao universo penal, o caráter sancionatório e a especial natureza do ilícito contraordenacional não deixam de exigir um mínimo de determinabilidade do conteúdo dos seus ilícitos. Uma vez que nas contraordenações a proibição legal assume especial importância na valoração como ilícitas de condutas de ténue relevância axiológica, a sua formulação tem que necessariamente constituir uma comunicação segura ex-ante do conteúdo da proibição aos seus destinatários.”
Vejamos se estas exigências se revelam asseguradas na redação do artigo 4.º, n.º 1, da Lei da Concorrência.
Dispõe este preceito:
“1 - São proibidos os acordos entre empresas, as decisões de associações de empresas e as práticas concertadas entre empresas, qualquer que seja a forma que revistam, que tenham por objeto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional, nomeadamente os que se traduzam em:
a) Fixar, de forma direta ou indireta, os preços de compra ou de venda ou interferir na sua determinação pelo livre jogo do mercado, induzindo, artificialmente, quer a sua alta quer a sua baixa;
b) Fixar, de forma direta ou indireta, outras condições de transação efectuadas no mesmo ou em diferentes estádios do processo económico;
c) Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos;
d) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento;
e) Aplicar, de forma sistemática ou ocasional, condições discriminatórias de preço ou outras relativamente a prestações equivalentes;
f) Recusar, direta ou indiretamente, a compra ou venda de bens e a prestação de serviços;
g) Subordinar a celebração de contratos à aceitação de obrigações suplementares que, pela sua natureza ou segundo os usos comerciais, não tenham ligação com o objeto desses contratos.”
Este preceito inspirou-se no então artigo 81.º do Tratado da Comunidade Europeia (que corresponde ao actual artigo 101.º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia), o qual proíbe as práticas anti-concorrenciais, adoptando uma formulação em tudo idêntica.
São elementos do tipo:
- a realização de um acordo ou de uma prática concertada entre empresas ou uma decisão de uma associação de empresas;
- o objeto ou efeito anticoncorrencial (impedindo, falseando ou restringindo) desses comportamentos;
- o cariz sensível do grau de restrição da concorrência;
- a existência de um mercado nacional nesse domínio.
No juízo de verificação da determinabilidade da previsão legal de um comportamento sancionado criminalmente ou contraordenacionalmente convém, desde logo, ter presente que, por mais cuidada que seja a técnica legislativa e sendo seguro que qualquer conceito terá sempre um maior ou menor grau de imprecisão, é inevitável o recurso a cláusulas gerais ou a conceitos que sofrem de algum grau de indeterminação (vid., a propósito da construção de tipos legais de crime, Figueiredo Dias, na ob. cit., pág. 186).
Dos elementos apontados pela Recorrente apenas o cariz sensível do grau de afectação da concorrência e o modo de descrição dos comportamentos que a afectam colocam dúvidas quanto à indeterminabilidade do respectivo tipo legal, uma vez que os restantes correspondem a realidades perfeitamente identificáveis pelos destinatários da norma em causa.
O primeiro elemento, apesar de ser indiscutivelmente um conceito indeterminado, desempenha uma função negativa no tipo, excluindo da sua previsão as acções de diminuta relevância, não tendo no conjunto da regulamentação típica um papel susceptível de gerar uma indefinição da área de protecção da norma.
Quanto ao modo de identificação das acções violadoras da concorrência efectuada no corpo do referido artigo 4.º, se o mesmo poderia suscitar algumas dúvidas, pelo seu cariz genérico, quanto à existência de uma definição legal suficientemente esclarecedora dos comportamentos verdadeiramente proibidos e sancionados contraordenacionalmente, a descrição exemplificativa, contida nas alíneas a) a g), de um conjunto de práticas que integram a previsão do corpo do artigo, supre essa insuficiência de concretização.
Na verdade, o legislador não se limitou a uma proibição genérica de comportamentos que impedissem, falseassem ou restringissem de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional, tendo acrescentado nas referidas alíneas uma descrição de exemplos-padrão desses comportamentos que concretiza e determina minimamente o critério generalizador estabelecido no corpo do artigo.
Assim, contrariamente ao sustentado pela Recorrente, a formulação do artigo 4.º, n.º 1, da Lei da Concorrência, constitui uma comunicação segura ex-ante do conteúdo da proibição aos seus destinatários, permitindo-lhes, por isso, orientar e conformar as suas condutas de acordo com esta proibição.
Não se revela, pois, que o conteúdo deste preceito viole os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade em matéria contraordenacional.
2.2. A Recorrente alega ainda que o artigo 4.º, n.º 1, da LTC, ao sancionar contraordenacionalmente as “decisões de associações de empresas”, responsabilizando-as pelos comportamentos das suas associadas, viola os princípios constitucionais da culpa, da presunção de inocência e da tutela jurisdicional efetiva.
Estando apenas em causa neste recurso o conteúdo do artigo 4.º, n.º 1, da LTC, no seu enunciado literal, não é possível considerar que o mesmo comporta a responsabilização contraordenacional das associações de empresas por comportamentos das suas associadas.
Na verdade, da leitura deste preceito resulta que as associações de empresas são apenas sancionadas pela adoção de decisões, através dos seus órgãos, que tenham por objeto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional. Se, na sequência dessas decisões, são adoptados pelas respetivas empresas associadas comportamentos que infringem as proibições contidas no artigo 4.º, da Lei da Concorrência, o sancionamento das associações reportar-se-á ao ato deliberativo, isto é a uma conduta por si praticada, pelo que este preceito não prevê qualquer fenómeno de transmissão subjetiva da responsabilidade contraordenacional que pudesse colocar em causa os princípios da culpa, da presunção de inocência e da tutela jurisdicional efetiva.
2.3. Tendo-se concluído que a formulação do artigo 4.º, n.º 1, da Lei da Concorrência, não consagra o sancionamento de condutas indeterminadas, nem o sancionamento de associações pelo mero comportamento individual dos seus associados, não é possível afirmar que o mesmo atenta contra a liberdade de associação garantida pelo artigo 46.º, n.º 1, da Constituição.
2.4. Não se verificando que o preceito fiscalizado viole qualquer um dos princípios e direitos indicados pela Recorrente, nem se vislumbrando que viole qualquer outro parâmetro constitucional, deve o recurso ser julgado improcedente.
Decisão
Pelo exposto julga-se improcedente o recurso interposto para o Tribunal Constitucional pela Associação dos Industriais de Panificação de Lisboa do acórdão da Relação de Lisboa proferido nestes autos em 28 de dezembro de 2011.
Custas do recurso pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios estabelecidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 1 de outubro de 2012.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.