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Proc. n.º 139/04
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal da Comarca de Vila Franca de Xira, por despacho de 1 de Julho de 2002 (fls. 8 e seguinte destes autos), foi decretada a prisão preventiva de A., ora recorrente, e de outro arguido, ambos indiciados pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo
21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
A decisão assentou nos seguintes fundamentos:
“[...] Indiciam os autos a prática pelos arguidos de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, n.º 1, do Dec. Lei 15/93, de 22/01.
[...] A este ilícito corresponde uma pena de prisão de 4 a 12 anos. Fazendo um juízo de prognose, e não obstante o facto de os arguidos não terem antecedentes criminais, é muito provável que os mesmos venham em sede de julgamento a ser condenados em pena efectiva de prisão. Neste momento, importa acautelar os ulteriores trâmites processuais. Os autos dão conta de que tal actividade decorreu pelo menos durante alguns meses, assumindo-se ambos os arguidos como consumidores de haxixe. Face a estes factos verifica-se em concreto o perigo de continuação da actividade criminosa. Também pela natureza e circunstâncias deste ilícito, gerador de forte alarme social, se vislumbra a verificação do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. Para afastar tais perigos, considera-se que a única medida adequada e proporcional à gravidade do caso é a prisão preventiva, situação em que os arguidos deverão aguardar os ulteriores trâmites processuais (arts. 191º, 192º,
193º, n.ºs 1 e 2, 194º, 195º, 196º, 202º, n.º 1, a), e 204º, c), do C.P.P.).
[...].”
O arguido A. requereu a substituição da medida de prisão preventiva por outra menos gravosa (requerimento de fls. 12), tendo tal pedido sido indeferido por despacho de 10 de Novembro de 2003 (fls. 25 e seguintes), nos seguintes termos:
“[...] Importa ter em conta que estamos em sede de reapreciação de pressupostos que determinaram a aplicação da medida de prisão preventiva, no sentido de eventual diminuição das necessidades cautelares que levaram à aplicação e manutenção de tal medida. Desde logo, resulta que as únicas informações significativas trazidas para os autos, é o apoio incondicional da sua família, o qual é de tomar em consideração, bem como o facto de o arguido (e os pais) ser bem considerado socialmente pelos seus vizinhos. Resulta ainda que os pais do arguido estarão dispostos a deixá-lo retomar a sua actividade na empresa familiar, situação a que o arguido, aparentemente, se dispõe. Acontece que, e quanto a nós, tais elementos nem sequer poderão ser considerados como alterações, pois que nenhuma das situações relatadas se apresenta como nova, tendo antes sido só agora trazida aos autos. Ademais, entende-se que nenhum destes factos, nem o facto de o arguido estar a tentar fazer a sua vida longe do consumo de drogas, permite concluir pela alteração das circunstâncias que determinaram a aplicação da prisão preventiva ao arguido. Entendemos, por isso, que se mantêm os fundamentos, quer de facto, quer de direito, que determinaram, aquando do primeiro interrogatório judicial a aplicação da medida de prisão preventiva, mantida na sequência de idêntico requerimento do arguido.
[...] Assim sendo, determino que o arguido continue a aguardar os ulteriores termos processuais sujeito a medida de coacção de prisão preventiva.
[...].”
2. Deste despacho recorreu A. para o Tribunal da Relação de Lisboa (fls.
55), tendo na motivação respectiva (fls. 56 e seguintes), concluído do seguinte modo:
“1. O despacho recorrido mais não fez do que puni-lo antecipadamente pelo crime de que vem indiciado, instituindo a «obrigatoriedade da prisão preventiva», para estes delitos.
[...]
9. [...] o despacho que ordenou a prisão preventiva previa o concreto perigo da continuação da actividade criminosa, porque o arguido se assumiu como consumidor de haxixe (cfr. despacho de fls. 975), facto este que conforme relatórios referidos no despacho recorrido, já não se verifica, existindo, pelo menos, actualmente, uma atenuação dos pressupostos de facto.
10. E tanto assim é que o despacho recorrido, entra em contradição, quando já só
(!) se refere aos «perigos de perturbação da ordem e tranquilidade públicas».
11. Contudo essa interpretação (art° 204° al. c) do C.P.P.), pressupõe que se atribua à medida coactiva um efeito de pacificação social que é um dos que se compreendem no conceito de prevenção geral positiva e se reconhecem ser co-naturais à aplicação das penas;
[...]
13. Donde esse perigo aflorado no despacho recorrido tem necessariamente de se reportar a um comportamento futuro do arguido e não ao seu comportamento pretérito e à reacção que a sua prática pode, em concreto, gerar na comunidade.
[...]
15. Daí o despacho recorrido ter feito uma interpretação normativa inconstitucional do art. 204° al. c) por violação do art. 32° n° 2 da C.R.P., o que desde já se argui, e, consequentemente, dado por não provado por V. Exas. esse único pressuposto da fundamentação do despacho recorrido e substituir-se a prisão preventiva por outra medida menos gravosa da sua execução, como seja a pulseira electrónica, onde até já consta o aval positivo do I.R.S.
[...]
17. Desvirtuando-se por isso o verdadeiro sentido dos arts 212° e 213° do C.P.P., demonstram à saciedade que o recorrente só continua preso porque se age de acordo com o preconceito inconstitucional de que há crimes incaucionáveis, sendo a prisão preventiva regra, quando expressamente o art. 28° n.º 2 da Lei Fundamental determina exactamente o contrário, atribuindo natureza excepcional à mesma, que não deve ser decretada nem mantida, sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei, como é o nosso caso.
18. O despacho recorrido violou assim os artigos 193°, 194°, 202°, 204° al. c),
212° e 213° n° 4 do C.P.P. e 32° n° 2 da C.R.P., que deviam ter sido considerados, como impôs o Douto Acórdão referido, além da gritante inconstitucionalidade resultante de ter feito do art° 28° n° 2 da Lei Fundamental letra morta, ao não se pronunciar, sequer, sobre a caução proposta.
[...].”
Na resposta, o representante do Ministério Público junto do Tribunal da Comarca de Vila Franca de Xira pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso, porquanto:
“a) o despacho recorrido interpretou e aplicou correctamente as normas legais aplicáveis; b) existem fortes indícios da prática, pelo arguido, de um crime de tráfico de estupefacientes, encontrando-se, aliás, neste momento, a decorrer o respectivo julgamento; c) a medida a que o mesmo se encontra sujeito é a única do nosso ordenamento jurídico que se mostra adequada e proporcional ao perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, in casu, subjacente ao crime pelo qual está a ser julgado; e d) as informações entretanto juntas aos autos, destinadas a aferir, ou não, da atenuação das concretas exigências cautelares que fundamentaram a aplicação e manutenção de tal medida, não alteram a conclusão anterior, na medida em que não traduzem nenhuma situação relevante, com potencialidade para influir no estatuto processual do arguido.
[...].”
No Tribunal da Relação de Lisboa, o Ministério Público concluiu também pelo improvimento do recurso, uma vez que “a medida de coacção imposta respeita os princípios da adequação e proporcionalidade (v. art. 193º do C.P.P.) e não deixaram de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação
[art. 212º n.º 1 al. b) do C.P.P.], pelo que, nesta fase não será de revogar ou substituir”.
3. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 27 de Janeiro de
2004, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida (fls. 84 e seguintes).
Neste acórdão, depois de transcrever na íntegra o despacho então recorrido, disse o Tribunal da Relação:
“E, perante a mesma, só é possível concluir pelo seu acerto, já que não se traz
à apreciação do tribunal qualquer circunstancialismo fundamentalmente novo. Pode, desde logo, verificar-se que os elementos constantes da declaração da Associação de Proprietários e Comissão de Administração Conjunta do Bairro da Fraternidade de fls. 13, do relatório social para determinação da sanção de fls.
15 a 17 e da informação para aplicação da obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica de fls. 19 a 23 não revestem carácter de novidade relativamente ao momento em que se proferiu a decisão inicial de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, conforme se vislumbra, indubitavelmente, do conteúdo de fls. 7, tendo antes sido só agora trazidos aos autos de uma forma mais concreta e detalhada. Assumir isto, como se fez no despacho em crise não se nos afigura susceptível de configurar desrespeito pelo decidido no Acórdão desta Relação, cuja cópia se encontra a fls. 28 a 41. E dizemo-lo porque se constata que, efectivamente, foram levadas a cabo diligências no sentido de permitir ao tribunal a quo apreciar a pretendida comutação da medida coactiva a que o arguido se encontra submetido, as quais conduziram, a final, ao entendimento vertido na decisão de que ora se recorre e que supra se transcreveu. Dos autos resulta, desde logo, que o recorrente se dedicava à compra e venda de haxixe, tendo sido encontradas, no decurso de uma busca realizada na casa onde residia no dia em que foi detido, várias substâncias e resíduos em dez navalhas e em dois tubos de plástico que acusaram ser, respectivamente, canabis, canabis
(resina) e MDMA, com peso líquido de 3,318 g e 14,240 g. Ora, tal permite concluir existirem, indubitavelmente, fortes indícios de que o arguido terá praticado um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelo art. 21º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, a que corresponde a pena de prisão de 4 a 12 anos. Portanto, o Exm.º Juiz a quo entendeu, de uma forma que se nos afigura correcta, no seu primeiro despacho, existir, em face das circunstâncias do crime e da personalidade do arguido, manifesto perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, de acordo com o estabelecido no art. 204°, alínea c) do C.P. Penal. Daí que os argumentos aduzidos pelo recorrente que, como já se disse, nada de verdadeiramente inovador trazem aos autos, sejam insusceptíveis de fazer abalar a indiciação feita e não demonstrem ser a medida de coacção de prisão preventiva inadequada e desproporcional à prevenção do supra aludido perigo. Tendo em conta o modo de cometimento do crime indiciado e a real existência do apontado perigo, que importa afastar, sob pena de a confiança dos cidadãos no exercício da actividade punitiva por parte do Estado poder vir a desaparecer, na medida em que a segurança é um dos valores fundamentais da vida em sociedade num Estado que constitucionalmente se assume como de direito democrático, é forçoso concluir que se evidencia imprópria, no caso sub judice, a aplicação de outra medida de coacção que não a prisão preventiva, falecendo, por isso, toda a argumentação do recorrente em sentido contrário. Por conseguinte, impõe-se afirmar que se encontram preenchidos os pressupostos dos Arts. 202°, n.º 1, alínea a) e 204°, alínea c) do C.P.Penal e, assim, não merece censura a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao recorrente, até porque se revelam manifestamente insuficientes quaisquer outras medidas de coacção, maxime as requeridas. Deste modo, a decisão recorrida respeitou os princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade, da subsidiaridade e da precaridade, não tendo sido violados os preceitos indicados, ou quaisquer outros, de natureza processual penal e/ou constitucional. Assim sendo, não restam dúvidas de que o recurso interposto só pode ser julgado improcedente.
[...].”
5. A. interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70°, n° 1, alínea b), da LTC, para apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 204º, alínea c), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que “o «perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas» decorrente do «modo de cometimento do crime indiciado» se reportar ao comportamento pretérito do arguido e à reacção que a sua prática pode gerar na comunidade, e não que esse «perigo» tem necessariamente de se reportar a um comportamento futuro do arguido”, por violação do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, “uma vez que atribui às medidas de coacção em geral, e à prisão preventiva em particular, finalidades próprias das penas e não finalidades estritamente processuais como exige o art. 191º do Código de Processo Penal” (requerimento de fls. 96).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 97.
6. Nas alegações que produziu perante o Tribunal Constitucional (fls.
102 e seguintes), concluiu assim o recorrente:
“A - Ao aplicar a Prisão Preventiva com o fundamento na existência do pressuposto do art. 204° al. c) do C.P.P. andou mal o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa. B - Por um lado porque entendeu que o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade pública se presume em função da natureza do crime em causa. C - Abstendo-se assim de o demonstrar no caso concreto. D - Por outro entendeu que, em abstracto, a não aplicação aos crimes de trafico de estupefacientes da prisão preventiva cria na sociedade um sentimento de impunidade e põe em causa a segurança dos cidadãos no exercício do poder punitivo do Estado.
E - Com esse entendimento tornou no caso concreto a prisão preventiva uma verdadeira pena antecipada por conta da pena que eventualmente possa vir a ser aplicada ao ora recorrente. F - O venerando Tribunal da Relação não esperou pela realização de um julgamento justo, contraditório e respeitador das garantias de defesa constitucionalmente consagradas para considerar o arguido culpado e aplicar-lhe uma pena antecipadamente e a descontar na pena que, na sua opinião, irá ser aplicada. G - Donde, salvo melhor opinião, esse perigo aflorado no acórdão recorrido tem necessariamente de se reportar a um comportamento futuro do arguido e não ao seu comportamento pretérito, pelo crime perpetrado, e à reacção que a sua prática pode, em concreto, gerar na comunidade. H - Assim ao aplicar no caso concreto a medida de prisão preventiva o Venerando Tribunal da Relação violou o Principio da Inocência do Arguido previsto no art.
32° n.º 2 da C.R.P.
[...].”
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional contra-alegou (fls. 117 e seguintes), tendo concluído do seguinte modo:
“1º - Não constitui questão de constitucionalidade normativa, sindicável pelo Tribunal Constitucional, o que se traduz em pretender controverter, num recurso de fiscalização concreta, a correcção, suficiência e concludência da fundamentação de facto e de direito, acolhida pelos tribunais judiciais, na concretização e densificação da cláusula geral contida no artigo 204°, alínea c
), do Código de Processo Penal.
2º - O acórdão proferido pela Relação, ao configurar-se como estritamente confirmatório das decisões tomadas em 1ª instância, tem de ser interpretado como acolhendo o teor do despacho originariamente proferido em sede de aplicação de medidas de coacção – em que se faz expresso apelo ao perigo de continuação da actividade criminosa – interpretando-se, deste modo, o invocado risco de perturbação da ordem e tranquilidade públicas em conexão com tal «perigo concreto», expressamente invocado em tal decisão.
3º - Implicando tal circunstância que a norma impugnada não foi, afinal, aplicada com o sentido inconstitucional, especificado pelo recorrente, de se ligar tal perigo de perturbação exclusivamente a factos e comportamentos
«passados» do arguido – não se conhecendo, deste modo, do recurso.”
6. Por despacho de fls. 122, foi determinada a notificação do recorrente para se pronunciar sobre a questão prévia de não conhecimento do objecto do recurso suscitada pelo Ministério Público.
O recorrente respondeu através do requerimento de fls. 124:
“Na verdade, não se nega que no despacho que decretou a prisão preventiva ao recorrente se escreveu também «em concreto o perigo de continuação da actividade criminosa». Mas também não é menos certo que tem que se interpretar que esse pressuposto foi abandonado pelo acórdão recorrido, na medida em que em nenhum passo do mesmo é referido. Somos mesmo levados a dizer que o acórdão recorrido confirmou a medida coactiva, mas não a integralidade dos seus fundamentos. Por isso o acórdão recorrido «só» escreve «tendo em conta o modo de cometimento do crime indiciado e a real existência do apontado perigo», – ou seja, «o manifesto perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas» – e não já a possibilidade do aludido perigo concreto da continuação da actividade criminosa. Em todo o caso, é curiosa a interpretação dada no parecer do M.P. no sentido de fazer a conexão ao perigo concreto da continuação da actividade criminosa, com o invocado risco de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, quando o despacho que afinal serve de fundamento a este acervo interpretativo não o diz. Isto é, refere efectivamente «... concreto perigo de continuação da actividade criminosa, ponderando que ‘os autos dão conta de que tal actividade decorreu pelo menos durante alguns meses, assumindo-se ambos os arguidos como consumidores de haxixe’ e ‘do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, ponderando’ a natureza e circunstâncias deste ilícito, gerador de forte alarme social». Ora, é precisamente este último segmento interpretativo seguido e aplicado pelo acórdão recorrido que é objecto do presente recurso. Por outro lado, mesmo admitindo a alegada «conexão», não invalida, antes reforça o conhecimento da suscitada interpretação inconstitucional da norma do art. 204° al. c) do C.P.P., porquanto, na procedência do recurso, teria que existir uma reformulação da interpretação operada no acórdão recorrido e, consequentemente, revistos os fundamentos que levaram à aplicação da medida de prisão preventiva. Termos em que na improcedência da questão prévia, deverão os autos seguir os ulteriores termos.
[...].”
Cumpre apreciar.
II
7. Tal como delimitado no respectivo requerimento de interposição, o presente recurso tem como objecto um certo entendimento da norma contida no artigo 204º, alínea c), do Código de Processo Penal.
Essa norma, integrada nas disposições relativas às “medidas de coacção e de garantia patrimonial”, diz respeito às “condições de aplicação das medidas” e dispõe como segue:
“Artigo 204º
(Requisitos gerais) Nenhuma medida de coacção prevista no capítulo anterior, à excepção da que se contém no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar:
[...] c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.”
O recorrente questiona uma determinada interpretação desta norma: segundo ele, a norma seria inconstitucional quando interpretada no sentido de que “o «perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas» decorrente do
«modo de cometimento do crime indiciado» se reportar ao comportamento pretérito do arguido e à reacção que a sua prática pode gerar na comunidade, e não que esse «perigo» tem necessariamente de se reportar a um comportamento futuro do arguido”, por violação do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, “uma vez que atribui
às medidas de coacção em geral, e à prisão preventiva em particular, finalidades próprias das penas e não finalidades estritamente processuais como exige o art.
191º do Código de Processo Penal” (supra, 5.).
Nas alegações apresentadas neste Tribunal, o recorrente afirma, em síntese, que “no caso concreto o juízo de perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas parte de um pressuposto que nada tem a ver com o caso concreto mas sim com a natureza do crime indiciado” quando, em sua opinião,
“esse perigo aflorado no acórdão recorrido tem necessariamente de se reportar a um comportamento futuro do arguido e não ao seu comportamento pretérito, pelo crime perpetrado e à reacção que a sua prática pode, em concreto, gerar na comunidade” (supra, 6.).
8. O recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade interposto com fundamento na alínea b) do n° 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional tem como objecto normas ou interpretações normativas efectivamente adoptadas, como ratio decidendi, na decisão recorrida, não obstante a acusação de inconstitucionalidade que lhes foi feita durante o processo.
Assim, em primeiro lugar, não cabe na competência do Tribunal Constitucional sindicar a correcção e adequação do julgamento efectuado pelos tribunais judiciais quanto ao preenchimento da cláusula geral constante do artigo 204º, alínea c), do Código de Processo Penal, nem apreciar os fundamentos de facto e de direito contidos na decisão recorrida. Não pode portanto este Tribunal pronunciar-se sobre se “ao aplicar no caso concreto a medida de prisão preventiva com o fundamento na existência do pressuposto do art. 204° al. c) do C.P.P. andou mal o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa” e se “violou o Principio da Inocência do Arguido previsto no art. 32° n.º 2 da C.R.P.”
(conclusões A. e H. das alegações apresentadas no recurso de constitucionalidade, supra, 6.).
Tendo em conta os poderes que lhe são atribuídos pela Constituição e pela lei, ao Tribunal Constitucional apenas compete verificar se na concretização de tal cláusula geral foi utilizado algum critério normativo em desconformidade com normas ou princípios constitucionais.
O recorrente considera que é incompatível com o princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa reportar o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas “ao comportamento pretérito do arguido e à reacção que a sua prática pode gerar na comunidade”, e não “a um comportamento futuro do arguido”. Por outras palavras, o recorrente questiona do ponto de vista da sua constitucionalidade um critério que relacione o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas exclusivamente com factos e comportamentos passados do arguido.
Importa portanto averiguar se este critério foi acolhido na decisão recorrida.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional sustenta, nas suas alegações, que “a norma impugnada não foi
[...] aplicada com o sentido inconstitucional, especificado pelo recorrente, de se ligar tal perigo de perturbação exclusivamente a factos e comportamentos
«passados» do arguido”.
A verdade é que a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa – na medida em que considerou que “não merece censura a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao recorrente”, que “a decisão recorrida respeitou os princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade, da subsidiaridade e da precaridade, não tendo sido violados os preceitos indicados, ou quaisquer outros, de natureza processual penal e/ou constitucional”, julgando consequentemente improcedente o recurso que lhe havia sido submetido – confirmou os fundamentos do despacho que manteve a prisão preventiva do arguido, sendo certo que tal despacho remeteu para as razões invocadas na decisão proferida
“aquando do primeiro interrogatório do arguido”.
Ora, no despacho proferido “aquando do primeiro interrogatório do arguido”, o juiz do Tribunal da Comarca de Vila Franca de Xira entendeu existir
“em concreto o perigo de continuação da actividade criminosa”, acrescentando que
“também pela natureza e circunstâncias deste ilícito, gerador de forte alarme social, se vislumbra a verificação do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas” (supra, 1.).
O critério normativo acolhido neste primeiro despacho – confirmado no despacho que reapreciou a medida de coacção aplicada ao recorrente e, posteriormente, no acórdão do Tribunal da Relação aqui recorrido – integra portanto, não apenas a perturbação da ordem e tranquilidade públicas associada à natureza e circunstâncias do crime, mas também a perturbação da ordem e tranquilidade públicas associada ao perigo de continuação da actividade criminosa, logo, associada ao comportamento futuro do arguido.
Conclui-se portanto que tem razão o Ministério Público ao sustentar que “o critério normativo acolhido [na decisão recorrida] não foi o especificado pelo recorrente, já que englobou igualmente a ponderação do risco de continuação da actividade criminosa, também ele englobado na previsão normativa do invocado artigo 204º, alínea c), do Código de Processo Penal”.
Não tendo a norma questionada no presente processo sido aplicada no acórdão recorrido com o sentido inconstitucional identificado pelo recorrente, não pode o Tribunal Constitucional conhecer do recurso.
9. De todo o modo, ainda que se admitisse a autonomização, na previsão normativa do artigo 204º, alínea c), do Código de Processo Penal, de duas situações distintas – a situação de estrita perturbação da ordem e tranquilidade públicas e a situação de continuação da actividade criminosa –, nem assim este Tribunal poderia conhecer do objecto do recurso.
Com efeito, atenta a função instrumental reconhecida ao recurso de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional só deve conhecer das questões de constitucionalidade normativa quando a decisão a proferir possa influir utilmente no julgamento da questão de mérito discutida no processo (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal, n.º 257/92, Diário da República, II, n.º 141, de 18 de Junho de 1993, p. 6448 ss, p. 6452, e n.º 440/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol., p. 319 ss, p. 326).
Ora, no caso dos autos, qualquer que fosse a posição que o Tribunal Constitucional viesse a adoptar sobre a conformidade constitucional da interpretação normativa impugnada pelo recorrente, sempre se manteria o sentido da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, uma vez que ela assentou igualmente no perigo concreto de continuação da actividade criminosa do arguido.
10. Nestes termos, não tendo a norma impugnada no presente recurso sido aplicada na decisão recorrida com o sentido inconstitucional identificado pelo recorrente, e considerando o carácter instrumental do recurso de constitucionalidade, não pode o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso.
Julga-se, assim, procedente a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
III
11. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 (dez) unidades de conta.
Lisboa, 20 de Abril de 2004
Maria Helena Brito Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida