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Processo nº 258/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - os presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, instaurados ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que são recorrente A e recorrido o Secretário de Estado da Administração Educativa, foi proferida, em 23 de Maio último, decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A daquele diploma legal, que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
2. - Aí se escreveu:
'1. - A, identificada nos autos, requereu, no Tribunal Central Administrativo, a suspensão da eficácia do despacho do Secretário de Estado da Administração Educativa, de 23 de Julho de 2001, que deu como findo o seu destacamento para o exercício de funções docentes no ensino de português na Suíça, com efeitos a partir de 30 de Agosto de 2001. Invocou a requerente como fundamentos da sua pretensão, em síntese, que o seu regresso imediato a Portugal, na data prevista, lhe causará prejuízos de difícil reparação, em virtude de ficar impedida de cumprir com uma série de compromissos assumidos, designadamente o contrato de arrendamento celebrado com o proprietário da casa que habita na Suíça, não podendo cumprir com o prazo de aviso prévio de rescisão do referido contrato, tendo de pagar as rendas respeitantes a este período que é de 3 meses, e de o seu regresso naquela data implicar ainda o regresso da sua filha, que é aluna do ensino secundário e já está matriculada para frequentar o último ano deste grau de ensino na Suíça, com o consequente atraso no início das aulas e a instabilidade emocional inerente a essa mudança para Portugal, incompatível com a frequência do último ano do ensino secundário. A entidade requerida respondeu, pugnando pelo indeferimento da pretensão da requerente, salientando que não são invocados quaisquer danos de difícil reparação, sendo que os danos referentes ao incumprimento do contrato de arrendamento não têm aquela qualidade porque são facilmente contabilizáveis, e os incómodos inerentes à transferência para Portugal são meramente conjecturais, e que a suspensão do acto causará à requerida danos de difícil reparação, uma vez que a requerente já foi substituída, desde o início do ano lectivo, na Suíça.
2. - O Tribunal Central Administrativo, por acórdão de 1 de Outubro de 2001, indeferiu o pedido de suspensão de eficácia requerido, entendendo que '[...] a suspensão do acto suspendendo, com a inerente transferência da filha da requerente para uma escola secundária portuguesa e o incumprimento do contrato de arrendamento não constituem prejuízos insusceptíveis por natureza de reparação, ou de provável difícil reparação'. Inconformada, a requerente interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, tendo nas conclusões das alegações aduzido as suas razões de discordância com o decidido e invocado a problemática da inconstitucionalidade nos seguintes termos:
'17ª - O sentido da douta sentença recorrida é inconstitucional, na medida em
que segue a orientação geral do Tribunal Central Administrativo, que dá
provimento a pedidos de suspensão da eficácia de actos administrativos, quando
os actos criam alterações transitórias na esfera jurídica do requerente e
indefere os pedidos de suspensão da eficácia dos actos administrativos quando
estes alteram definitivamente a esfera jurídica do requerente.
18ª - O art.º 76º da LPTA não faz qualquer distinção entre actos que produzem
alterações transitórias e actos que produzem alterações definitivas.
19ª - Pelo que tal orientação viola o princípio do estado de direito
democrático, consagrado no art.º 2° da CRP, nomeadamente no que respeita ao
subprincípio da protecção da confiança.
20ª - Em boa verdade, tal orientação acaba por gorar as legítimas expectativas
e direitos dos cidadãos, ao restringir a aplicação do art.º. 76° da LPTA
apenas aos actos que produzem alterações transitórias na esfera jurídica dos
recorrentes'.
A entidade recorrida pronunciou-se pela manutenção do julgado. Por acórdão de 17 de Dezembro de 2001, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu negar provimento ao recurso, mantendo o acórdão recorrido.
3. - Notificada deste aresto veio a requerente dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, invocando que: 'O acórdão recorrido interpreta restritivamente a norma contida no artigo 76º da LPTA., de modo a que a referida norma só tenha aplicação nos actos administrativos que criam alterações transitórias na esfera jurídica dos particulares. Tornando-a inoperante relativamente aos actos administrativos que criam alterações definitivas na esfera dos particulares'. Esta interpretação, entende a recorrente, 'é violadora do princípio do estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição, nomeadamente no que respeita ao subprincípio da protecção da confiança'.
4. - Entende-se ser de proferir decisão sumária, de acordo com o disposto no n.º
1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, por não verificação dos pressupostos necessários de admissibilidade deste tipo de recurso.
5.- Na verdade, o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para que possa ser admitido e conhecer-se do seu objecto, implica a congregação de vários pressupostos, entre os quais a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, considerada esta norma na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação, mediatizada pela decisão recorrida. No exercício deste controlo normativo escapa à competência cogniscitiva do Tribunal Constitucional - de acordo com o nosso ordenamento jurídico - qualquer forma de fiscalização sempre que a questão de constitucionalidade seja dirigida
à decisão judicial, em si mesma considerada. Assim, competindo ao recorrente o ónus de suscitação, deverá este cumpri-lo, referenciando-o normativamente, desse modo pondo em causa, por alegada violação de preceito ou de princípio constitucional, o critério jurídico utilizado na decisão ao aplicar a norma jurídica questionada. E, nesta medida, quando, nomeadamente, se discuta uma dimensão interpretativa, deverá fazê-lo não só atempadamente mas de forma clara e perceptível, em termos de o Tribunal recorrido saber que tem essa questão para resolver e não subsistam dúvidas quanto ao sentido da mesma - até porque, frequentemente, não se revela tarefa fácil traçar com nitidez a linha de demarcação entre a interpretação discutida e a decisão qua tale, cuja reapreciação não pode, nesta sede, ser reaberta.
6. - A recorrente aludiu à problemática da constitucionalidade nas suas alegações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos já referidos, começando por salientar na conclusão 17ª que: 'O sentido da douta sentença recorrida é inconstitucional, na medida em que segue a orientação geral do Tribunal Central Administrativo, que dá provimento a pedidos de suspensão da eficácia de actos administrativos, quando os actos criam alterações transitórias na esfera jurídica do requerente e indefere os pedidos de suspensão da eficácia dos actos administrativos quando estes alteram definitivamente a esfera jurídica do requerente', imputando, por conseguinte, o vício de inconstitucionalidade à decisão recorrida, em si mesma considerada. Porém, nas conclusões 18ª a 20ª, acaba por referenciar esta orientação com a aplicação da norma do artigo 76º da LPTA. Mesmo admitindo que, deste modo, foi adequadamente suscitada uma questão de constitucionalidade normativa, não pode conhecer-se do recurso em virtude de a decisão recorrida não ter aplicado a norma do artigo 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA) com a interpretação invocada pela recorrente, como se passa a justificar sumariamente.
7. - No acórdão de 1 de Outubro de 2001, o Tribunal Central Administrativo indeferiu a providência, julgando como não verificado o requisito previsto na alínea a) do nº1 do artigo 76º da LPTA, por ter concluído que os factos apurados não constituíam prejuízos insusceptíveis por natureza de reparação, ou de provável difícil reparação. O Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 17 de Dezembro de 2001, que negou provimento ao recurso, fundamentou-se no seguinte:
'2. O direito. O acórdão recorrido, depois de enunciar os requisitos previstos no art.º. 76° n°
1 da LPTA com vista à suspensão da eficácia de um acto administrativo, adiantou que 'a exigência destes requisitos é cumulativa, pelo que basta que um deles se não verifique, para que não possa ser decretada a suspensão pedida'. Face a esse entendimento, corrente na jurisprudência deste STA, chegado à conclusão de que não se verificava, no caso concreto, o requisito previsto na alínea a) do n° 1 do art.º. 76° da LPTA, não carecia o acórdão recorrido de indagar da verificação dos que estão previstos nas als. b) e c) da mesma norma, porquanto a falta de um dos aludidos requisitos obstava ao deferimento do pedido. Daí que o acórdão recorrido não se tenha pronunciado sobre os requisitos previstos nas duas últimas alíneas citadas, contra o entendido pela recorrente. Improcedem, assim, as 1ª e 2ª conclusões da sua alegação. Alega a recorrente que o acórdão recorrido contém contradição insanável que resulta de concluir que para haver prejuízo de difícil reparação, tal prejuízo não pode ser quantificável; logo, os prejuízos resultantes do incumprimento do contrato de arrendamento, por serem quantificáveis, não são de difícil reparação
( conclusões 5ª, 7ª e 8ª). Estas conclusões improcedem. Na verdade, o que se entendeu no acórdão recorrido, foi que os prejuízos invocados pela recorrente como resultantes do incumprimento do contrato de arrendamento na Suíça eram facilmente quantificáveis, não podendo considerar-se como prejuízos dificilmente reparáveis. O acórdão movimentou-se, neste ponto, face à matéria de facto carreada aos autos pela ora recorrente, que se limitou a aludir a que o seu regresso imediato a Portugal a impedirá de cumprir o contrato de arrendamento de habitação que celebrou na Suíça, designadamente o aviso prévio, o que a iria penalizar com o pagamento das rendas até cumprimento do aviso prévio de 3 meses. O assim alegado só permitia concluir, como se fez no acórdão recorrido, tratar-se de prejuízo facilmente reparável. Só assim não seria se a ora recorrente tivesse alegado factos concretos e reveladores de um real dano resultante da execução do acto, tais como, ser aquela penalização de elevado valor do qual não dispunha, que aquela a iria impedir de poder prover ao seu sustento e de sua filha ou obstaria à sua deslocação para Portugal, por não ter meios económicos para tanto disponíveis, caso em que o tribunal teria de valorar tal situação, podendo até concluir tratar-se de prejuízo de difícil reparação, dando-o como integrado na previsão da al. a) do n° 1 do art.º 76° da LPTA. Esta tem sido a jurisprudência deste STA, a que a ora recorrente alude, sem que a factualidade por ela invocada esteja de acordo com a sua pretensão de a ver aplicada ao caso vertente. Alega também a recorrente que o acórdão andou mal quando concluiu que a transferência imediata da filha da recorrente para Portugal gera prejuízo não quantificável, mas que se trata de dano moral que não merece a tutela do direito. De novo se dirá que o tribunal teve de ajuizar em face dos elementos factuais alegados pela ora recorrente no seu requerimento inicial, sendo certo que avaliou bem tais elementos e teve de concluir que os mesmos não envolviam prejuízo de difícil reparação. Com efeito, a ora recorrente alegou simplesmente que a sua filha estava matriculada no último ano do ensino secundário, que a sua transferência para Portugal lhe poderá acarretar dificuldades de adaptação em nova escola, seja ao sistema de ensino, seja aos professores e aos colegas, criando-lhe instabilidade emocional. Estes são factos que poderão ou não vir a verificar-se, e poderão produzir algum dano não patrimonial, valorável, mas não integrador do requisito previsto na alínea a) do n° 1 do art.º. 76° da LPTA, porquanto o falado prejuízo não patrimonial, provavelmente decorrente da execução do acto, só será fundamento da requerida suspensão da respectiva eficácia no caso de alcançar um grau de gravidade ou intensidade que o tornem merecedor da tutela do direito, como se alcança da norma do art.º. 496° n° 1 do C. Civil Na verdade, para que isso pudesse acontecer, teriam de ser invocados factos cuja verificação se tivesse como provável, e deles resultassem prováveis consequências graves, enunciadas pela requerente, ou em regra previsíveis. E, como vimos, não foi isso que aconteceu, pelo que também nesta parte o acórdão recorrido merece a nossa concordância. Assim, improcedem as conclusões 6ª, 7ª e 9ª a 15ª. Alega ainda a recorrente que o acórdão é inconstitucional ao seguir uma orientação que dá provimento a pedidos de suspensão de eficácia quando os actos suspendendos criam alterações transitórias na esfera jurídica do requerente, e os indefere quando alteram definitivamente essa mesma esfera jurídica. Não vemos onde resulte, nem a recorrente o diz, aplicada no caso tal 'teoria'. Na verdade, analisado o acórdão, não encontramos qualquer elemento do qual possa inferir-se semelhante entendimento. Assim, contrariamente ao afirmado pela recorrente, o acórdão recorrido não viola qualquer princípio constitucionalmente consagrado, designadamente no art.º. 2° da CRP. Improcedem, deste modo, as restantes conclusões.'
8. - Ora, como resulta claro da decisão recorrida, esta não sufragou a interpretação restritiva da norma contida no artigo 76º da LPTA, no sentido de a mesma só ser aplicável aos actos administrativos que criam alterações transitórias na esfera jurídica dos particulares, tornando-a inoperante relativamente aos actos administrativos que criam alterações definitivas na esfera daqueles, como pretende a recorrente. O fundamento para o indeferimento da providência, sublinha-se, foi a não verificação do requisito previsto na alínea a) do nº1 do artigo 76º da LPTA, por se ter concluído que os danos respeitantes ao incumprimento do contrato de arrendamento eram facilmente quantificáveis, não sendo, por isso de difícil reparação, e que os danos referentes à deslocação para Portugal da filha da requerente, poderiam ou não vir a verificar-se e a produzir algum dano não patrimonial valorável, mas não integravam o requisito previsto naquele preceito, por não alcançarem um grau de gravidade ou intensidade que os tornem merecedores da tutela do direito. Assim, não tendo a decisão recorrida feito aplicação da norma com a interpretação dada pela recorrente, não pode conhecer-se do objecto do recurso.
9. - Em face do exposto, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 unidades de conta.'
3. - Notificada, reclamou a recorrente para a conferência, de acordo com o disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pedindo que a decisão proferida seja substituída por outra que ordene o prosseguimento da tramitação do recurso até final.
No seu entender, a interpretação restritiva da norma contida no artigo 76º da LPTA faz com que os actos que produzem alterações definitivas quase nunca são suspensos, enquanto os que produzem alterações provisórias são, em regra, suspensos, não existindo, contudo nada na lei que permita uma maior exigência probatória nuns casos do que noutros. Sempre em sua tese, a norma da alínea a) do nº 1 do citado artigo 76º não exige a prova de quaisquer prejuízos mas apenas a verificação da probabilidade da sua existência.
A entidade recorrida, notificada, nada disse.
Cumpre decidir.
4. - Não obstante o seu inconformismo, o certo é que a recorrente, ao reclamar, nada adiantou ao seu anterior posicionamento, não sendo o actual meio processual utilizado mais do que um expediente de reapreciação do anteriormente decidido, agora colegialmente, pela conferência da Secção.
No entanto, não se vislumbram motivos para alterar o sentido da decisão sumária.
Com efeito, e como na oportunidade se escreveu, mesmo concedendo ter ocorrido uma adequada suscitação de questão de constitucionalidade normativa – o que nem sequer é líquido, como se expôs – sempre haveria que atender ao facto de a questionada norma não ter sido aplicada com o sentido que a recorrente e ora reclamante insiste em atribuir-lhe. O fundamento para o indeferimento da providência foi, como então se sublinhou, 'a não verificação do requisito previsto na alínea a) do nº1 do artigo 76º da LPTA, por se ter concluído que os danos respeitantes ao incumprimento do contrato de arrendamento eram facilmente quantificáveis, não sendo, por isso de difícil reparação, e que os danos referentes à deslocação para Portugal da filha da requerente, poderiam ou não vir a verificar-se e a produzir algum dano não patrimonial valorável, mas não integravam o requisito previsto naquele preceito, por não alcançarem um grau de gravidade ou intensidade que os tornem merecedores da tutela do direito'.
5. - Em face do exposto, indefere-se a reclamação, mantendo-se a decisão sumária, que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta. Lisboa, 4 de Julho de 2002- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida