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Proc. n.º 537/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Foi, a fls. 31 e seguintes, proferida decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A., pelos seguintes fundamentos:
“[...]
5. O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional (supra, 4.). Todavia, o objecto do presente recurso é diverso daquele que se encontra previsto neste preceito legal (a interpretar em articulação com o disposto no n.º 1 do artigo 75º-A, da Lei do Tribunal Constitucional), pois que o recorrente não pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional de certa norma (ou interpretação normativa) aplicada na decisão recorrida. Da leitura do requerimento de interposição do presente recurso decorre, antes, que o recorrente visa obter uma pronúncia do Tribunal Constitucional sobre a
«necessidade de interpretar a relação normativa entre os artigos 291º e 310º do Código de Processo Penal à luz do art. 32º, n.º 1, da Constituição, em face de uma situação como aquela que se verifica nos [...] autos». Em suma, o que se pretende no presente recurso é que o Tribunal Constitucional proceda a uma interpretação conforme com a Constituição de certos preceitos legais, assim dilucidando uma controvérsia sobre o seu sentido e âmbito de aplicação. Sendo este o objecto do presente recurso, verifica-se que não só não se encontra preenchida a previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional como também tal objecto não corresponde ao de qualquer das outras alíneas deste mesmo preceito. Trata-se, em síntese, de um recurso atípico, não previsto na nossa ordem jurídica e, como tal, extravasando o leque de competências do Tribunal Constitucional. Ora, não tendo o Tribunal Constitucional competência para conhecer do recurso, a regra geral aplicável aos casos de falta de preenchimento de pressupostos processuais determina o não conhecimento do objecto de tal recurso.
[...].”
2. Inconformado com a referida decisão sumária, dela vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, n.º s 3 a 5, da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 39 e seguintes), dizendo, em síntese, o seguinte:
“[...]
[...] aquilo que o recorrente aqui justamente pede à alta instância judicial especificamente competente para apreciar questões de constitucionalidade é que esta possa apreciar uma questão de inconstitucionalidade concreta que tem muito precisamente a ver com a (in)conformidade constitucional de uma certa e determinada interpretação normativa efectuada ou, hoc sensu, aplicada, na decisão recorrida. Essa concreta questão pode até não ser fácil de definir [...]. Mas não é essa dificuldade que se pode ou deve fazer voltar contra o recorrente. Ao contrário: o que não pode deixar de se rogar é a oportunidade para apresentar alegações explicativas das quais tal definição possa resultar mais clara. A questão tem a ver com o seguinte: a ratio legis subjacente à interdição de recurso decretada no artigo 310º do Código de Processo Penal não pode ser tornada automaticamente extensiva à necessária interpretação conforme à Constituição (e, designadamente, ao seu artigo 32º, número 1) do regime constante do número 1 do artigo 291º também do Código de Processo Penal. Trata-se de atender, concretamente, à necessidade de distinguir dois momentos processuais – o do decurso da instrução e o do encerramento da instrução – e de fazer incidir sobre tal distinção uma interpretação que não seja desconforme à Constituição.
[...]
[...] o recorrente não pode deixar de insistir no pedido de que lhe seja concedida essa possibilidade [produção de alegações] de formular claramente a sua dúvida [de constitucionalidade].
[...].”
3. Notificado desta reclamação, veio o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional dizer que a mesma era manifestamente infundada, bem como que “a argumentação deduzida pelo reclamante em nada abala os fundamentos da decisão reclamada, no que respeita à manifesta inverificação dos pressupostos da admissibilidade do recurso interposto” (fls. 45).
Cumpre apreciar.
II
4. Na decisão sumária ora reclamada (supra, 1.), considerou-se não ser possível conhecer do objecto do presente recurso, atendendo ao seu carácter atípico: o recorrente pretendia que o Tribunal Constitucional procedesse a uma interpretação conforme com a Constituição de certos preceitos legais, assim dilucidando uma controvérsia sobre o seu sentido e âmbito de aplicação, pedido esse que não se integrava na previsão de qualquer das alíneas do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional. Na verdade, o recorrente pedia a este Tribunal que se pronunciasse sobre “a relação normativa entre os artigos 291º e
310º do Código de Processo Penal à luz do art. 32º, n.º 1, da Constituição”.
Sendo esta a fundamentação da decisão sumária reclamada, é óbvio que a presente reclamação só poderia proceder se o reclamante demonstrasse que, contrariamente ao aí sustentado, não pedira a este Tribunal a resolução de uma controvérsia jurídica, mas a apreciação da conformidade constitucional de uma norma (ou interpretação normativa) que tivesse sido aplicada na decisão recorrida – ou, naturalmente, se demonstrasse (o que, na verdade, não se afigura possível) que um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade que tenha como objecto a dilucidação de uma controvérsia jurídica preenche a previsão de alguma das alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Sucede, porém, que da leitura da presente reclamação resulta que não só esta última demonstração não foi realizada, como também que o reclamante reitera a sua pretensão de que o Tribunal Constitucional resolva uma determinada dúvida ou controvérsia (aliás colocada em termos pouco claros), não tentando sequer identificar qualquer norma ou interpretação normativa cuja apreciação pudesse constituir o objecto do presente recurso.
Com efeito, quando o reclamante afirma que “a ratio legis subjacente à interdição de recurso decretada no artigo 310º do Código de Processo Penal não pode ser tornada automaticamente extensiva à necessária interpretação conforme à Constituição (e, designadamente, ao seu artigo 32º, número 1) do regime constante do número 1 do artigo 291º também do Código de Processo Penal” (supra,
2.), não está a identificar qualquer norma ou interpretação normativa aplicada na decisão recorrida e que, do seu ponto de vista, seja inconstitucional, mas a sugerir que o Tribunal Constitucional siga determinados critérios na interpretação de certo preceito legal, a fim de obter um determinado resultado interpretativo (que, bem vistas as coisas, não se alcança verdadeiramente qual seja).
Em suma, da leitura da presente reclamação sai reforçada a conclusão de que o ora reclamante não logrou submeter ao Tribunal Constitucional um idóneo objecto de recurso. E, como é evidente, a circunstância de o reclamante se reservar o direito de o fazer mais tarde (ou seja, no momento das alegações), não destrói tal conclusão. Aliás, cumpre não esquecer que o objecto do recurso se define no momento da sua interposição ou, eventualmente, em momento posterior, em resposta a despacho de aperfeiçoamento (cfr. artigo 75º-A, n.º s 1 e 5 a 7, da Lei do Tribunal Constitucional).
Não existem, pois, motivos para revogar a decisão sumária reclamada.
III
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária reclamada que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 11 de Novembro de 2003
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos