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Processo n.º 93/02
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional
I. Relatório Em 16 de Abril de 2002 foi proferida nos presentes autos decisão sumária de não conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto pela Companhia de Seguros M..., S.A. do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Setembro de 2001, que negara provimento ao recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, pelo qual fora revogada a sentença da 15ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, que considerara procedente recurso da decisão do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, por delegação do seu presidente, de recusa de registo das marcas 'O...' e 'W...'. Esse recurso de constitucionalidade visava a apreciação da inconstitucionalidade das normas das alíneas d) do n.º 1 do artigo 25º, m) do n.º 1 do artigo 189º e b) e c) do n.º 1 do artigo 193º do Código da Propriedade Industrial, nos segmentos normativos identificados pela recorrente e na interpretação acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça, e a decisão sumária de não conhecimento desse recurso sustentou-se nos seguintes fundamentos:
«4. Pressupostos específicos do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional são, designadamente, além do esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam –que aqui não está em causa – a suscitação, durante o processo, de uma inconstitucionalidade normativa e a aplicação da norma impugnada pela decisão recorrida como ratio decidendi – cfr., entre outros, os Acórdãos n.º 192/92, 593/95 e 294/99, publicados, respectivamente no Diário da República [DR], II Série, de 18 de Agosto de 1992, de 13 de Março de 1996 e de 15 de Julho de 1999. O requisito da suscitação da inconstitucionalidade durante o processo – como se decidiu, v. g., no Acórdão n.º 352/94 (DR, II série, de 6 de Setembro de 1994) e se tem depois repetido em jurisprudência constante – deve entender-se, 'não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)', mas 'num sentido funcional', de tal modo 'que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão', ou seja, e salvo casos excepcionais, 'antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita', por ser este o sentido que é exigido pelo facto de a intervenção do Tribunal Constitucional se efectuar em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter apreciado (ver, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, DR, II, de 10 de Janeiro de 1995 e ainda o Acórdão n.º 155/95, in DR, II, de 20 de Junho de
1995). Ora, a única eventual suscitação de uma questão de constitucionalidade ocorrida durante o processo perante o tribunal a quo teve lugar nas alegações do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, importando, pois, verificar em que medida é que o objecto do recurso que a recorrente veio a interpor para o Tribunal Constitucional encontrou aí expressão. O que naquelas alegações a recorrente escreveu foi o seguinte:
'(...)
92. Mas sucede que temos, ainda (!), felizmente para uns, infelizmente para outros, o ‘problema’ da Constituição da República Portuguesa e do direito.
93. O princípio da igualdade, consignado no artigo 13º da Constituição, jamais permitiria um resultado jurisdicional decisório extraído de uma interpretação e aplicação do artigo 193º do CPI que declarasse não aplicáveis, ou aplicáveis com um sentido especial e diferente às marcas assinalando serviços de telecomunicações, telemarketing e publicidade, os comandos da alínea c) do n.º 1 dessa disposição do CPI.
94. Mas o douto acórdão recorrido não parece ter cometido aquela ofensa ao princípio da igualdade, directamente aplicável ‘ex vi’ do artigo 18º da Constituição.
95. Sucede que o douto acórdão recorrido, erroneamente, julgou aplicável ao caso a alínea c) do n.º 1 do artigo 193º do CPI, quando tal normativo, devidamente interpretado, não resulta preenchido, não sendo portanto desencadeável, in causa, a respectiva estatuição.' E as conclusões 14ª a 17ª reproduziram, ponto por ponto, o que acabou de se transcrever. Nenhum outro passo das alegações (ou das conclusões) aborda qualquer outra questão de desconformidade constitucional. Sendo assim, a aferição da constitucionalidade das normas das alíneas d) do n.º
1 do artigo 25º e m) do n.º 1 do artigo 189º do Código da Propriedade Industrial pode ser liminar e definitivamente excluída: elas foram enunciadas e impugnadas na sua constitucionalidade pela primeira vez no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, sendo certo que só é admissível que a questão de inconstitucionalidade seja suscitada depois de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido sobre a matéria a que essa questão respeita em hipóteses de todo em todo anómalas e excepcionais, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de suscitar tal questão até esse momento (cfr., vg, Acórdãos n.º 62/85, 90/85, 166/92 e 155/95, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 31 de Maio de 1985, de 11 de Junho de 1985, de 18 de Agosto de 1992 e de 20 de Junho de 1995) – o que não foi o caso.
5. Restariam, portanto, as alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 193º do Código da Propriedade Industrial. Porém, como resulta logo da transcrição efectuada, também em relação a essas os passos referidos são omissos na suscitação da questão de constitucionalidade 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer', como se diz no artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, e se vem explicando em numerosos arestos deste Tribunal (cfr., a mais de alguns dos acórdãos já citados, os Acórdãos n.º 269/94, 367/94 e 418/98, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 18 de Junho de 1994, de 20 de Julho de 1998 e de 7 de Setembro de 1994). Na verdade, da simples leitura dos passos transcritos retira-se que, por um lado, se invocou (§ 93) a violação do princípio da igualdade – não propriamente pela norma, mas por um 'resultado jurisdicional decisório extraído de uma' certa interpretação e aplicação do artigo 193º do CPI –, mas, por outro lado, se exonerou expressamente o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa da sua ofensa
(§ 94), imputando-se-lhe antes uma errada aplicação do direito (§ 95). Acresce que, como resulta dos mesmos passos, se referiu apenas a alínea c) do n.º 1 do artigo 193º do Código da Propriedade Industrial, referindo que a decisão judicial violaria o princípio da igualdade se aquela norma não fosse aplicável (ou fosse aplicável com um sentido especial – § 93), mas, por outro lado, sustentando-se que ela foi considerada aplicável (§ 95). O que se tem de concluir, pois, é que não se suscitou de modo processualmente adequado (em termos de o tribunal a quo ficar a saber que ela lhe tinha sido posta) uma questão de inconstitucionalidade normativa desta alínea c) do n.º 1 do artigo 193º do Código da Propriedade Industrial, durante o processo – entendida esta expressão não no referido 'sentido formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância), mas num sentido funcional (...) – tal que (salvo, porventura, na referida situação excepcional) essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão', como se escreveu no já citado Acórdão n.º 90/95.
6. No requerimento de interposição de recurso, e para dar cumprimento ao disposto na parte final do n.º 2 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional – que, justamente, visa permitir um mais expedito controlo do referido requisito – , invocou a recorrente que a questão da inconstitucionalidade das normas aplicadas ao caso voltou a ser lembrada 'no seu requerimento de aclaração do douto Acórdão do STJ que lhe indeferiu a arguição de nulidade do Acórdão principal.' Todavia, a mais de o pedido de aclaração não ser já meio idóneo e atempado para suscitar a questão da inconstitucionalidade (cfr., entre muitos outros, incluindo alguns já citados, os Acórdãos n.º 439/91,40/92, 61/92 e 1124/96, publicados, respectivamente no DR, II Série, de 24 de Abril de 1992, de 20 de Maio de 1992, de 18 de Agosto de 1992 e de 6 de Fevereiro de 1997) – sendo, portanto, irrelevante para dar como preenchido o requisito da suscitação atempada da questão – certo é que a alegada invocação da inconstitucionalidade não foi, sequer nesse momento, referida a norma alguma, como se comprova da passagem relevante:
'19. A recorrente tem legítimo interesse em obter a presente aclaração, até por dela depender uma sua correcta compreensão das normas efectivamente aplicadas e da interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça fez de tais normas, por forma a formular juízo sobre os direitos que lhes assistem, designadamente em sede de eventual recurso de constitucionalidade.
20. Efectivamente, torna-se necessário saber, por exemplo, com precisão, se o Supremo Tribunal de Justiça fundamentou a sua decisão com base no entendimento de que as noções legais de confundabilidade, imitação de marca e concorrência desleal, se não aferem pelos mercados reais em que os titulares das marcas operam; ou se entende o contrário, mas com a excepção de uma das marcas em confronto assinalar serviços do mercado da publicidade, marketing e telemarketing o que, no entender da recorrente, pode conduzir à inconstitucionalidade das normas aplicadas, como a recorrente refere explicitamente nas suas conclusões do recurso de revista (cfr. concretamente a conclusão 15ª).' Ora, constitui jurisprudência constante e uniforme deste Tribunal, apoiada na Constituição e na lei, que a fiscalização de constitucionalidade tem apenas como objecto normas jurídicas, pelo que também sempre seria irrelevante, do ponto de vista do controlo da constitucionalidade, o 'entendimento' do tribunal a quo , enquanto este não decorresse de uma certa interpretação normativa, que aí não foi referida. Recorde-se, a este propósito, que quando se suscita uma questão de constitucionalidade referida a um certo entendimento ou interpretação de uma norma, impende sobre o recorrente o ónus de enunciar ou indicar claramente tal interpretação, impugnando-a por inconstitucionalidade. Como se escreveu no Acórdão n.º 178/95 (DR, II Série, de 21 de Junho de 1995), impunha-se que a recorrente tivesse indicado
'(...) o segmento de cada norma, a dimensão normativa de cada preceito – o sentido ou interpretação, em suma – que eles têm por violador da Constituição. De facto, tendo a questão da constitucionalidade de ser suscitada de forma clara e perceptível (cf., entre outros, o Acórdão n.º 269/94, in DR, 2ª Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a lei fundamental.' Conclui-se, portanto, que nas alegações do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e no pedido de aclaração da decisão deste – momentos indicados pela recorrente como aqueles em que teria suscitado as questões de constitucionalidade que pretendeu trazer a este tribunal –, a recorrente não suscitou adequadamente, perante o tribunal a quo, qualquer questão de constitucionalidade normativa.
7. Dir-se-á, por último – o que, porém, só por si já bastaria também para firmar a impossibilidade de se tomar conhecimento do recurso –, que o próprio sentido que a recorrente refere às alíneas b) e c) do artigo 193º do Código da Propriedade Industrial, e cuja aplicação imputa à decisão recorrida – 'desde que uma marca registada se destine a assinalar produtos ou serviços do mercado da publicidade, ter-se-á por preenchido o conceito normativo de imitação, se se pretender registar outra marca, gráfica, figurativa ou foneticamente semelhante, destinada a assinalar produtos ou serviços de qualquer mercado, incluindo o da actividade seguradora' –, não foi objecto de aplicação pela decisão recorrida. Na verdade, o que nesta se entendeu foi que, para se poder verificar tal imitação ou usurpação, é necessário 'que as marcas em conflito sejam destinadas a assinalar produtos ou serviços idênticos ou de afinidade manifesta', e que esse era 'o cerne da problemática' (f. 267), tendo-se depois entendido – em juízo que é insindicável por este Tribunal, por não ser um juízo de interpretação normativa – que 'em concreto, as marcas em causa (com semelhança gráfica e fonética evidentes) têm em vista a informação e promoção através, designadamente, de telefone, televisão e rádio. Por outro lado, ambas abrangem o ramo seguros.' Entendeu-se, pois – em juízo que, repete-se, este Tribunal, limitado como está ao controlo da constitucionalidade de normas, não pode sindicar –, que as marcas em causa visavam 'assinalar produtos ou serviços idênticos ou de afinidade manifesta'. Também porque ao Tribunal Constitucional não cabe sindicar o modo como os restantes tribunais aplicam o direito infra-constitucional, e, menos ainda, meras operações de qualificação jurídica de factos relevantes para aplicação desse direito, logo falharia o requisito consistente na existência de uma verdadeira inconstitucionalidade normativa, que este Tribunal pudesse apreciar.» Inconformada, a recorrente veio deduzir reclamação para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, dizendo, designadamente, o seguinte:
'(...)
4. A questão da inconstitucionalidade das normas aplicadas ao caso, com o referido sentido, foi, cautelarmente, suscitada pela recorrente nas suas alegações de recurso do douto Acórdão da Relação de Lisboa para o Supremo Tribunal de Justiça. A recorrente voltou a lembrar a suscitada questão da inconstitucionalidade no seu requerimento de aclaração do douto Acórdão do STJ que lhe indeferiu a arguição de nulidades do Acórdão principal. No aludido requerimento de aclaração a recorrente pretendeu conhecer o preciso sentido da aplicação normativa adoptada pelo STJ, face ao teor do indeferimento da arguição de nulidades, do qual resultava que, afinal, nenhum dos factos provados nos autos – relativos, por um lado, aos diferentes mercados em que operam as sociedades titulares das marcas em confronto, e, por outro lado, às diferentes classes de produtos e serviços que as mesmas marcas se destinam a assinalar – haviam servido de suporte à decisão.
5. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada pela recorrente após o douto acórdão da Relação, por até então nada nos autos indiciar que as normas em causa pudessem vir a ser aplicadas com o aludido sentido, tido por inconstitucional.
(...) Ora, sucede que o Supremo Tribunal de Justiça veio mesmo a adoptar o sentido normativo tido pela recorrente como inconstitucional. Confirmando o douto Acórdão da Relação, o STJ afirmou que ‘o cerne da problemática’ era o disposto no artigo 193º, n.º 1, do CPI (cf. págs. 11 do Acórdão do STJ). E defendeu um certo sentido dos conceitos normativos de semelhança e afinidade, afirmando que ‘a questão da semelhança ou afinidade não tem tido entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência’ e que ‘a análise’ comporta ‘alguma dose de subjectividade’ (págs. 12).
(...) Afastando, pois, o STJ a relevância, para decidir, quer das diferentes actividades das sociedades titulares das marcas em confronto, quer da diferença de Classes de produtos e serviços em que tais marcas estavam inscritas, e invocando ‘alguma dose de subjectividade’, o STJ sustentou a sua decisão com base, o por um lado, nos factos de as marcas em confronto serem gráfica e foneticamente semelhantes, e de a marca registada se destinar a assinalar produtos e serviços de publicidade, o e, por outro lado, com base no acima referido sentido normativo, tido por inconstitucional. Só assim, de resto, pôde o STJ concluir, designadamente que ambas as marcas abrangem o ramo seguros, uma vez que a actividade seguradora pode ser objecto de publicidade e a publicidade pode recair sobre seguros. Tal conclusão – em manifesta oposição com a realidade fáctica adquirida nos autos – tem, como efeito, natureza normativa, derivando do sentido de que o STJ deu, designadamente aos conceitos legais de 'imitação' (artigo 193º, CPI),
'produtos ou serviços idênticos ou de afinidade manifesta' (artigo 193º, 1, b), CPI), e 'erro ou confusão' (artigos 189º, 1, m), e 193º, 1, c) ambos do CPI). O próprio STJ, aliás, afirmou que as conclusões em que assenta a sua decisão não emergem, nem da diferença de Classes de Produtos e Serviços das marcas em confronto (publicidade, quanto à marca da sociedade recorrida; seguros, quanto
às marcas da recorrente), nem da diferença existente entre as actividades das sociedades titulares dessas marcas (actividade publicitária e actividade seguradora) - cfr. Acórdão principal, à luz do Acórdão sobre a arguição de nulidades, cuja aclaração foi indeferida).
6. Salvo o devido respeito, a douta decisão reclamada ajuiza erroneamente quando entende que não está em causa uma verdadeira inconstitucionalidade normativa, mas sim o modo como os restantes tribunais aplicaram o direito infra-constitucional e qualificaram juridicamente os factos. Na verdade, os Tribunais judiciais, ao entenderem que as marcas em causa visa,
'assinalar produtos ou serviços idênticos ou de afinidade manifesta', não tiveram em conta os factos da causa, não construíram tal juízo a partir dos factos, mas sim apesar dos factos, como o STJ, aliás, deixou claro. Assim, é forçoso concluir que só uma aplicação das normas legais em causa com o sentido tido por inconstitucional acima aludido sustenta as decisões da Relação e do Supremo. O Tribunal Constitucional é, pois, competente para conhecer do objecto do recurso e deve exercer essa competência.' Cumpre decidir II. Fundamentos A presente reclamação não abala os fundamentos em que se sustentou a decisão sumária de não conhecimento de recurso, desde logo, quanto às normas das alíneas d) do n.º 1 do artigo 25º e m) do n.º 1 do artigo 189º do Código da Propriedade Industrial. Como se notou nessa decisão, tais normas foram enunciadas e impugnadas na sua constitucionalidade pela primeira vez no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, não tendo, pois, sido suscitada a sua inconstitucionalidade perante o tribunal a quo. Também quanto às alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 193º do Código da Propriedade Industrial, igualmente indicadas no requerimento de recurso, a reclamação não chega a pôr em causa a falta de suscitação da sua inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido antes do esgotamento do seu poder jurisdicional. Na verdade, como se disse na decisão reclamada, invocou perante o tribunal a quo a violação do princípio da igualdade, não propriamente pela norma, mas por um
'resultado jurisdicional decisório extraído de uma' certa interpretação e aplicação do artigo 193º do CPI (§ 93 das alegações, idêntica à conclusão 15ª dessas alegações), mas, por outro lado, exonerou-se expressamente o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa então sob recurso da sua ofensa (§ 94 – idêntica à conclusão 16ª), imputando-se-lhe antes uma errada aplicação do direito (§ 95 – idêntica à conclusão 17ª). E, como se referiu também na decisão reclamada,
'acresce que, como resulta dos mesmos passos, se referiu apenas a alínea c) do n.º 1 do artigo 193º do Código da Propriedade Industrial, referindo que a decisão judicial violaria o princípio da igualdade se aquela norma não fosse aplicável (ou fosse aplicável com um sentido especial – § 93), mas, por outro lado, sustentando-se que ela foi [erradamente] considerada aplicável (§ 95).' Há que concluir, portanto, que não se suscitou de modo processualmente adequado, em termos de o tribunal a quo ficar a saber que ela lhe tinha sido posta, uma questão de inconstitucionalidade normativa desta alínea c) do n.º 1 do artigo
193º do Código da Propriedade Industrial, durante o processo, ou seja, antes de esgotado o seu poder jurisdicional, em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão. Considerando esta última exigência de invocação durante o processo, de nada adianta, aliás, que a questão de constitucionalidade tenha sido referida ainda no requerimento de aclaração da decisão recorrida, pois nesse momento o poder jurisdicional do tribunal recorrida para conhecer da questão já se havia esgotado – e isto sendo certo, porém, que, mesmo neste momento, a alegada invocação da inconstitucionalidade não foi referida a norma alguma. Logo, por este fundamento, a decisão sumária de não conhecimento do recurso deveria ser confirmada. Entende a reclamante, por outro lado, que 'está em causa uma verdadeira inconstitucionalidade normativa' – da interpretação segundo a qual 'desde que uma marca registada se destine a assinalar produtos ou serviços do mercado de publicidade, ter-se-á por preenchido o conceito normativo de imitação, se se pretender registar outra marca, gráfica, figurativa ou foneticamente semelhante, destinada a assinalar produtos ou serviços de qualquer mercado, incluindo o da actividade seguradora' –, e não apenas 'o modo como os restantes tribunais aplicaram o direito infra-constitucional e qualificaram juridicamente os factos', pois 'os Tribunais judiciais, ao entenderem que as marcas em causa visa[m], ‘assinalar produtos ou serviços idênticos ou de afinidade manifesta’, não tiveram em conta os factos da causa, não construíram tal juízo a partir dos factos, mas sim apesar dos factos', como o STJ, aliás, teria deixado claro. Ora, importa frisar que o eventual desrespeito, que se pudesse detectar na decisão , pela recorrida matéria de facto provada na causa não poderia ser controlado no presente recurso de constitucionalidade, que tem por objecto apenas a apreciação da conformidade constitucional das normas do Código da Propriedade Industrial referidas no requerimento de recurso. Desconsiderando, agora, o primeiro fundamento da decisão reclamada, e admitindo que as questões de constitucionalidade tivessem sido suscitadas adequadamente durante o processo, só poderia, pois, estar em causa apurar se as normas referidas pela reclamante foram aplicadas na decisão recorrida como ratio decidendi, nesse preciso sentido. Ora, mesmo admitindo que a interpretação impugnada fosse a enunciada no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (mas não antes), não pode deixar de concordar-se com a decisão sumária reclamada, quanto à análise dos fundamentos da decisão recorrida. Na verdade, lê-se na parte relevante do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorrido:
«(...) Para que se possa falar de imitação ou usurpação, necessário se torna ainda que as marcas em conflito sejam destinadas a assinalar produtos ou serviços idênticos ou de afinidade manifesta, nos termos do já mencionado artigo 193º n.º1.
É este o cerne da problemática. As marcas que se pretende registar destinam-se a assinalar produtos da classe
36, 'seguros'. A marca 'T...', de que é titular a recorrida, destina-se a assinalar produtos e serviços da classe 35, 'promoção de produtos por telefone, promoção de produtos em televisão, rádio, imprensa e promoção de vendas para terceiros'. Saliente-se, antes de mais, que a diferente inscrição ou classificação dos produtos e serviços não é obstáculo, só por si, a que sejam considerados semelhantes. A tabela anexa ao Código da Propriedade Industrial, com a classificação por produtos ou serviço, tem por fim facilitar o processo de registo de marcas e não traçar limites ao conceito de usurpação de marca. A questão da semelhança ou afinidade não tem tido entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência. A análise não é susceptível de ser enquadrada em estereótipos, tendo que ser feita face ao caso concreto e comportando por isso alguma dose de subjectividade. A considerar um aspecto fundamental. Escreve o Dr. Carlos Olavo em 'Propriedade Industrial', pág. 59: 'Para que haja possibilidade de confusão sobre a origem dos produtos ou serviços, há que ter em atenção diversos factores, nomeadamente a natureza e o tipo de necessidades que os produtos ou serviços visam satisfazer e os circuitos de distribuição desses produtos ou serviços. Desta sorte, a doutrina tem considerado que o público atribuirá a mesma origem a produtos ou serviços de natureza ou utilidade próxima e que sejam habitualmente distribuídos através dos mesmos circuitos'. Em concreto, as marcas em causa (com semelhança gráfica e fonética evidentes) têm em vista a informação e promoção através, designadamente, de telefone, televisão e rádio. Por outro lado, ambas abrangem o ramo seguros. Diga-se, a propósito, como nota, que não cabe aqui apreciar se a marca da recorrida foi ou não correctamente registada. Afigura-se-nos por isso que o utilizador ou consumidor dos serviços seja induzido em erro ou confusão quanto à origem das marcas, existindo com clareza e o risco de associação.» Ou seja: o tribunal recorrido entende, em juízo insindicável por este Tribunal, que em concreto, 'as marcas em causa (com semelhança gráfica e fonética evidentes) têm em vista a informação e promoção através, designadamente, de telefone, televisão e rádio'. Por outro lado, entende, de modo igualmente insindicável, que ambas abrangem o ramo seguros, pelo que visavam 'assinalar produtos ou serviços idênticos ou de afinidade manifesta'. O que é dizer que, bem ou mal sob o ponto de vista da matéria de facto provada
(o que também não cabe apreciar no presente recurso), o tribunal a quo se não baseou na natureza específica de uma das marcas (atinente ao mercado publicitário), como pretendido pela reclamante, mas antes na conexão de ambas com o ramo dos seguros – afirmando-o claramente ('Por outro lado, ambas abrangem o ramo seguros') – e na intencionalidade de ambas (a 'informação e promoção através, designadamente, de telefone, televisão e rádio'). Tal juízo, que diz respeito à qualificação jurídica dos factos relevantes para aplicação do direito infra-constitucional, e não à definição de um determinado critério normativo, não é, porém – repete-se – sindicável pelo Tribunal Constitucional, ao qual não cabe controlar o modo como os restantes tribunais efectuam tais operações de qualificação. Pelo que, também por esta razão, a presente reclamação não pode ser atendida. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se desatender a presente reclamação e confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso, bem como condenar o recorrente em custas, com 15 (Julho) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 3 de Julho de
2002 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa