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Proc. nº. 184/03
1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A. interpôs recurso nos autos de contra-ordenação a correr no Tribunal Judicial de Loulé, recurso que foi julgado procedente, não lhe tendo sido aplicada a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias por ser entendimento daquele tribunal que a norma constante do artigo 2º do Despacho do Ministro da Administração Interna nº. 521/98, in Diário da República, II Série, de 9 de Janeiro, é inconstitucional por violação dos artigos 18º, 32º,
205º e 168º, nº. 1, alínea d) da Constituição da República Portuguesa, recusando a respectiva aplicação.
Desta decisão recorreu o Ministério Público ao abrigo do. artigo 70º, nº. 1, alínea a) da Lei do Tribunal Constitucional; admitido o recurso, apresentou o Exmº. Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal as competentes alegações, onde formulou as seguintes conclusões:
“1º - A reserva de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de sistema punitivo e de processo contra-ordenacional apenas abrange o respectivo regime geral.
2º - A Lei de autorização legislativa nº 97/97, de 23 de Agosto, ao abrigo da qual o Governo alterou o Código da Estrada, através do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, nada inova relativamente à atribuição de competência às autoridades administrativas para aplicar sanções contra-ordenacionais.
3º - Não se inclui no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a definição das entidades administrativas com competência para sancionarem determinadas categorias de infracções contra-ordenacionais, designadamente as estradais.
4º - A sanção acessória de inibição temporária de conduzir estabelecida no Código da Estrada não tem natureza criminal, estando assegurados aos arguidos incluindo nos casos de pagamento voluntário da coima, os direitos de audiência e defesa, com respeito pelo princípio do contraditório.
5º - Termos em que, na ausência de violação de normas ou princípios constitucionais, deverá proceder o presente recurso.”
Notificado o arguido para contra-alegar, querendo, nada disse no prazo assinalado para o efeito.
Cumpre apreciar e decidir.
2 – Decidiu-se na sentença recorrida:
“(...) não ser aplicável o disposto no artº 2º do despacho do Ministro da Administração Interna nº 521/98, por violação dos artºs 18º, 32º, 205º e 168º, nº 1, al. d) da Constituição da República Portuguesa e, com isso, por falta de competência da DGV e Governo Civil para aplicar a sanção acessória prevista no artº 139º do CE, absolver o arguido”.
Trata-se de decisão idêntica à que veio a ser apreciada no Acórdão n.º 237/03 de
14 de Maio de 2003, onde, a propósito da delimitação do objecto do recurso e das questões a resolver, se disse:
'A sentença recorrida afastou a norma do n.º 2 do Despacho n.º
521/98 citado, em primeiro lugar, por entender que a sanção acessória de inibição de conduzir reveste natureza criminal, o que implica que a sua aplicação compete, em exclusivo, aos tribunais e, em segundo lugar, porque a Lei n.º 97/97, de 23 de Agosto, não autoriza o governo a atribuir competência à Director-Geral de Viação e aos Governos Civis para a aplicação da referida sanção. A argumentação da sentença recorrida não é, assim, dirigida a questionar a constitucionalidade da norma do ponto 2 do Despacho n.º 521/98 na parte em que atribui competência para a aplicação de coimas ao Director-Geral de Viação e aos Governadores Civis, mas apenas na parte em que do mesmo ponto 2 se pode retirar a competência destas entidades para a aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, prevista no artigo 139º do Código da Estrada. Não poderiam as coisas, aliás, ser de outro modo, quando é certo que ora recorrido pagou voluntariamente a coima e apenas questionou, no recurso de impugnação que interpôs, a aplicação, no caso, da sanção acessória.
....................................................................................................................
O objecto do presente recurso consiste, assim, na norma do n.º 2 do Despacho n.º 521/98, publicado no Diário da República, II Série, n.º 7, de 9 de Janeiro de 1998, cujo texto é o seguinte:
“Considerando o disposto no artigo 152º, n.º 1, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, e no artigo 34º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 432/82, de 27 de Outubro, revisto pelo Decreto-Lei n.º
244/95, de 14 de Setembro:
Determino:
...
2 – A decisão sobre a aplicação das sanções por infracção às disposições do Código da Estrada compete às seguintes entidades: a) Ao governador civil do distrito em que foi cometida a infracção, se se tratar de contra-ordenação muito grave, e em todos os casos em que tenha sido apresentada defesa, nos termos do n.º 3 do artigo 155º do Código da Estrada; b) Ao director geral de viação, nos casos restantes.”
Estão, pois, colocadas duas questões de constitucionalidade, referidas à norma do n.º 2 do Despacho n.º 521/98, interpretada e aplicada no sentido de atribuir competência ao Director-Geral de Viação e aos Governadores Civis para aplicarem a sanção acessória da inibição de conduzir, prevista no artigo 139º do Código da Estrada. A primeira traduz-se em saber se tal norma integra o regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo, a que se refere o artigo 165º, n.º 1, alínea d), da Constituição e se, nessa medida, se deverá considerar organicamente inconstitucional, uma vez que a Lei n.º 97/97, de 23 de Agosto, não autoriza o Governo a atribuir competência às entidades supra mencionadas para a aplicação da referida sanção. A segunda consiste em saber se a mesma norma, interpretada no sentido indicado, viola o disposto nos artigos 32º e 205º da Constituição, por se tratar de uma sanção de natureza criminal, cuja aplicação competiria, em exclusivo, aos Tribunais.
.............................................................................................
'
Acolhe-se integralmente este entendimento, pelo que as questões a resolver no presente recurso são as que se deixaram enunciadas no trecho do Acórdão n.º
237/03 que se acabou de transcrever.
3 - Sobre tais questões escreveu-se no mesmo aresto:
'5. A questão de saber se a determinação da autoridade administrativa competente para punir um ilícito de mera ordenação social integra o regime geral de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo, a que se refere o artigo 165º, n.º 1, alínea d), da Constituição, mereceu já, por diversas vezes, uma resposta negativa por parte deste Tribunal. Assim, como se afirmou no Acórdão n.º 174/2003 (inédito), é “o próprio regime geral das contra-ordenações que remete para a lei que prevê as contra-ordenações em especial a indicação das entidades a quem compete a aplicação das correspondentes coimas; e é essa norma, apenas, que integra aquele regime geral”
(no mesmo sentido, cfr., ainda os Acórdãos n.ºs 50/2003 e 62/2003, ambos inéditos). Por outras palavras, é apenas a opção de atribuir às autoridades administrativas, em geral, tal competência que integra o regime geral a que alude o artigo 165º, n.º 1, alínea d), da Constituição. Uma vez tomada essa opção, expressa nos artigos 33º e 34º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, e pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, ao abrigo das correspondentes autorizações legislativas, a determinação da autoridade administrativa concretamente competente, em cada caso, para a aplicação das coimas é feita nos termos aí previstos.
O artigo 33º do Decreto-Lei n.º 433/82 prescreve que o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas incumbem às autoridades administrativas. Por seu turno, o artigo seguinte estabelece as regras que determinam a competência em razão da matéria das mesmas autoridades administrativas. De acordo com essas regras, tal competência pertencerá às autoridades indicadas pela lei que prevê e sanciona as contra-ordenações; no seu silêncio, serão competentes os serviços designados pelo membro do Governo responsável pela tutela dos interesses que a contra-ordenação visa defender ou promover. Por
último, o mesmo artigo 34º permite que os dirigentes dos serviços aos quais tenha sido atribuída a competência a deleguem, nos termos gerais, nos dirigentes de grau hierarquicamente inferior.
Parece evidente que a norma do n.º 2 do Despacho n.º 521/98 se conforma com o disposto no artigo 34º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, pelo que a mesma não é passível de censura à luz do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição. O facto de a Lei n.º 97/97, de 23 de Agosto, nada dispor sobre a competência do Director-Geral de Viação e dos Governadores Civis para a aplicação das coimas previstas no Código da Estrada é irrelevante, uma vez que essa questão se deve resolver, “no silêncio da lei”, nos termos previstos no artigo 34º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82.
6. Assente, nos termos expostos, que a norma do n.º 2 do Despacho n.º 521/98, respeita a regra de competência contida no artigo 34º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82 e, nessa medida, não infringe a reserva do regime geral das contra-ordenações para a competência legislativa da Assembleia da República, resta apurar se tem autonomia, em relação a essa questão, o problema de saber se a competência dos governos civis e da Director-Geral de Viação, assim determinada, se estende também à aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, prevista no artigo 139º do Código da Estrada. Ora importa desde já afirmar que na argumentação que permite sustentar a conformidade constitucional da norma do n.º 2 do Despacho n.º 521/98, na medida em que atribui competência aos governadores civis e ao director geral de Viação para a aplicação das sanções por infracção às disposições do Código da Estrada, não há que distinguir entre coimas e sanções acessórias.
A argumentação em contrário apresentada na sentença recorrida parece basear-se na substancial afinidade entre o regime da sanção acessória de inibição de conduzir, prevista no artigo 139º do Código da Estrada, e o regime da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, a que se refere o artigo 69º do Código Penal. Tal afinidade permitiria “considerar que a sanção em causa, aplicada após o pagamento voluntário da coima respectiva, e muito embora inscrita no Código da Estrada, tem natureza penal e não deve estar subtraída ao princípio da judicialidade”. A mesma argumentação apoia-se ainda no Acórdão n.º 337/86 deste Tribunal (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8º, pp. 277 e ss.), o qual declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 32º, n.ºs 1, 3 e 5, da Constituição, da norma do artigo 61º, n.º 4, do Código da Estrada, na versão em vigor à data da respectiva prolação, na parte em que atribuía competência ao Director-Geral de Viação para aplicar a medida de inibição da faculdade de conduzir ao condutor que, tendo cometido uma transgressão estradal, paga voluntariamente a multa.
Ora, um dos fundamentos dessa decisão deste Tribunal foi precisamente a comparação entre as garantias de defesa do arguido de uma contravenção estradal a que correspondesse também a inibição da faculdade de conduzir, com as garantias de defesa do autor de uma contra-ordenação. No quadro normativo então em vigor, no caso em que a uma contravenção estradal correspondesse também inibição da faculdade de conduzir e houvesse pagamento voluntário da multa, esta medida seria aplicada pela Director-Geral de Viação. Da decisão do director geral aplicando tal medida, havia recurso hierárquico para o Secretário de Estado dos Transportes e Comunicações, e da decisão deste
último cabia recurso contencioso, de mera legalidade, para o Supremo Tribunal Administrativo. Diferentemente, como se afirma no Acórdão citado, o autor de uma contra-ordenação “tem sempre a possibilidade de ver os factos de que é acusado serem discutidos – e decididos – numa audiência de julgamento por um juiz e com observância da regra do contraditório, de aí comparecer, ser ouvido e, querendo, assistido por um defensor (v. artigos 64º, 66º e 67º do citado Decreto-Lei n.º
433/82). Isto é coisa que não acontece com aquele, sempre que pague voluntariamente a multa devida pela transgressão”. Ora, no quadro normativo actualmente em vigor as coisas não se passam já assim, como resulta dos artigos 150º e seguintes do Código da Estrada, não se estabelecendo já qualquer diferenciação quanto às regras processuais para a impugnação de uma sanção acessória de inibição de conduzir entre as situações em que a coima tenha sido paga voluntariamente e aquelas em que não se proceda a tal pagamento. Em ambos os casos são aplicáveis as regras do processo das contra-ordenações, estabelecidas no Decreto-Lei n.º 433/82, com as adaptações constantes do Código da Estrada. Deste modo, a verdade é que dos fundamentos apontados pelo Acórdão n.º 337/86 para o julgamento de inconstitucionalidade podem, agora, quando muito, extrair-se argumentos para afastar a inconstitucionalidade apontada pela sentença recorrida.
Tal afastamento, aliás, também decorre logicamente da opção legislativa de atribuir competência às autoridades administrativas para o processamento das contra-ordenações e aplicação de coimas, opção essa que o Tribunal Constitucional, por exemplo no seu Acórdão n.º 158/92 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., pp. 713 e seguintes) considerou já, desde que esteja garantido, naturalmente, o direito de impugnação judicial das decisões de autoridades administrativas que hajam aplicado coimas, isenta de censura constitucional, atendendo à diferença dos princípios jurídico-constitucionais que regem a legislação penal, por um lado, e aqueles a que se submetem as contra-ordenações, por outro.
Por último, importará aqui referir que a conclusão alcançada em nada
é prejudicada pela circunstância de a mesma medida, em substância, de inibição de conduzir revestir em alguns casos natureza criminal e em outros não poder ser já caracterizada desse modo. É que na verdade a natureza criminal ou não da medida de inibição de conduzir decorre da sua acessoriedade em relação a uma pena criminal ou a uma contra-ordenação (pressupondo esta mesma distinção, cfr. os Acórdãos n.º 149/00 e 44/02, publicados no Diário da República, II Série, de
9 de Outubro de 2000 e de 29 de Outubro de 2002, respectivamente)'
Adere-se inteiramente a esta fundamentação, sem necessidade de outras considerações.
5 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, concede-se provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformulada de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 15 de Julho de 2003
Artur Maurício Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida