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Processo n.º 21/03
2ª Secção Relator -Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.Por sentença de 9 de Fevereiro de 2001, do Tribunal Judicial da Comarca de
-------------, A., melhor identificado nos autos, foi condenado como autor material de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido nos artigos
137º, n.º 1, e 15º, alínea b), do Código Penal, na pena de quinze meses de prisão e na sanção acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de sete meses, suspensas pelo período de três anos. A mesma decisão julgou prescrita a contra-ordenação prevista e punida no artigo 18º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
Recorreram o Ministério Público, da decisão de arquivamento proferida a propósito da contra-ordenação e da suspensão da execução da sanção acessória de proibição de conduzir, e o arguido, da condenação.
Por acórdão de 28 de Maio de 2002, do Tribunal da Relação de Évora, foi dado provimento ao recurso do Ministério Público, sendo o arguido condenado pela referida contra-ordenação na coima de € 124,70, e sendo revogada a sentença recorrida nessa parte e na que determinou a suspensão da sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo prazo de sete meses.
Foi igualmente dado provimento ao recurso do arguido sobre a matéria de facto, mas apenas na medida em que se alterou o ponto de embate no veículo conduzido pelo arguido: em vez da “parte frontal direita” deu-se como provado que aquele ocorreu “na parte lateral direita junta ao guarda-lamas e espelho direito”.
Este último veio arguir a nulidade do acórdão, invocando, além da alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 109/01, de 24 de Dezembro, que alterou o regime da prescrição contra-ordenacional, que se teria verificado
“uma alteração substancial dos factos que foram tomados em conta pelo Tribunal para efeitos de condenação, o que constitui violação do artigo 359º do C.P.P., sendo que a interpretação desta norma feita pelo Acórdão é inconstitucional por violação do artigo 32º, n.º 1, da C.R.P.”
E o arguido acrescentou ainda que
“O douto Acórdão proferido, ao não enunciar toda a matéria de facto a enquadrar juridicamente, e ao omitir a fundamentação da condenação, que não se reconduz a uma adjectivação mais ou menos abundante (‘manifesta’, etc.), violou o artigo
374º, n.º 2, do C.P.P. e o princípio constitucional já citado constante do artigo 32º, n.º 1, da C.R.P.”
Cerca de um mês depois, o arguido veio pedir a revogação da pena acessória de conduzir veículos motorizados, pois
“face à nova redacção da Lei 77/2001, ao crime em causa nos autos não corresponde a sanção acessória prevista no artigo 69º do C. Penal.”
Sobre este requerimento pronunciou-se o Ministério Público, invocando o trânsito em julgado da decisão.
Por acórdão de 12 de Novembro de 2002, o Tribunal da Relação de Évora considerou: que a decisão sobre a não prescrição da contra-ordenação, a ser alterada, implicaria modificação essencial não admitida pelo artigo 380º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, sobre a correcção da decisão; que as nulidades invocadas, por não terem sido arguidas nos termos prescritos na alínea a) do n.º 3 do artigo 120º do Código de Processo Penal, estavam já sanadas quando foram invocadas; e que, quanto ao último requerimento apresentado, se encontrava esgotado o poder jurisdicional do Tribunal da Relação de Évora.
2.Inconformado, o arguido veio apresentar o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, para ver apreciada a conformidade constitucional das normas dos artigos 359º, 374º, n.º
2, e 380º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, e ainda a norma do
“artigo 669º, alínea a), do Código de Processo Civil.”
No Tribunal Constitucional, foi proferido o seguinte despacho em 13 de Março de
2003:
“Embora com dúvidas, para alegações, ficando desde já suscitada, para os devidos efeitos, a questão prévia do eventual não conhecimento do recurso por:
- não estar em questão um problema de constitucionalidade normativa, quanto à qualificação como ‘alteração substancial dos factos’, sendo, aliás, que a dimensão normativa em causa, segundo o recorrente, no artigo 359º do Código de Processo Penal, não foi devidamente enunciada;
- estar em causa um juízo de conformidade da decisão com a norma, e não de conformidade constitucional desta, quanto ao artigo 374º, n.º 2, do mesmo Código;
- a questão de constitucionalidade não ter sido suscitada perante o tribunal a quo, quanto às restantes normas impugnadas.”
O arguido encerrou assim as suas alegações:
“1. O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora declarou que não ocorreu prescrição do procedimento contra-ordenacional e condenou o ora recorrente na coima de € 124,70, revogando a douta sentença.
2. Posteriormente à subida do recurso para o Tribunal da Relação de Évora, pela Lei n.º 109/01, de 24 de Dezembro, o artigo 28º do Regime Geral das Contra-ordenações passou a ter um n.º 3, no qual se estatuiu que ‘a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão tiver decorrido o prazo normal acrescido de metade’.
3. Ora, nos termos do artigo 2º, n.º 4, do Código Penal e artigo 29º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, havendo sucessão de disposições penais, aplicam-se retroactivamente as de conteúdo mais favorável ao arguido.
4. Embora tenha sido invocado pelo recorrente o artigo 669º, alínea a), do Código Processo Civil, os doutos julgadores não aplicaram esta norma que lhes conferia poderes para corrigir o acórdão, por entenderem, implicitamente, que ou não era aplicável ou não lhes concedia poderes para tal correcção.
5. E entenderam que, nos termos do artigo 380º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal não podiam corrigir o Acórdão.
6. Esta norma, artigo 380º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, com essa interpretação, é inconstitucional, bem como é inconstitucional a interpretação do artigo 669º, alínea a), do Código de Processo Civil, na interpretação que entende que não permite a reforma do acórdão, por violação do artigo 29º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
7. Nessas interpretações, deve ser declarada a inconstitucionalidade do artigo
380º, n.º 1, alínea b), do C. Processo Penal e artigo 669º, alínea a), do C. Processo Civil.
8. Na acusação e pronúncia constava que a ciclista se havia desviado para a esquerda, e este facto não foi dado como provado.
9. A resposta negativa a esse facto, que era favorável ao recorrente, implica uma alteração substancial dos factos, porque sem esses factos a defesa do arguido seria diferente.
10. Isso não poderia ser considerado sem a adopção do formalismo necessário imposto por Lei.
11. Não foi esse o entendimento do Tribunal da Relação de Évora.
12. Verificou-se, assim, no entendimento do recorrente, uma alteração substancial dos factos que foram tomados em conta pelo Tribunal para efeitos de condenação, o que constitui violação do artigo 359º do Código Processo Penal, sendo que a interpretação dessa norma feita pelo acórdão é inconstitucional por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
13. Nessa interpretação dada pelo Tribunal da Relação de Évora, o artigo 359º do Código Processo Penal é inconstitucional por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e é essa inconstitucionalidade que deve ser declarada.
14. O douto acórdão, apesar de ter alterado um ponto de facto fundamental e que tinha justificado a condenação na 1ª Instância, não enunciou ele próprio toda a matéria de facto que baseava o acórdão a não ser por remissão, como fez, para a sentença de 1ª instância.
15. Quanto a enquadramento jurídico da matéria de facto, o douto acórdão dedicou-lhe sete linhas no capítulo oito dizendo quase manifesto que o arguido não pode ser absolvido face à matéria de facto provada supra descrita em IV porque não existe qualquer caso de persistência de dúvida inultrapassável no espírito do tribunal em relação aos factos provados.
16. O douto acórdão, ao não enunciar toda a matéria de facto, a enquadrar juridicamente, e ao omitir a fundamentação de condenação, que não se reconduz a uma adjectivação mais ou menos abundante (‘manifesta’, etc.), violou o art.
374º, n.º 2, do Código Processo Penal e o princípio constitucional já citado constante do artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
17. Deve ser declarada a inconstitucionalidade do art. 374º, n.º 2, na interpretação que o Tribunal da Relação de Évora fez de tal forma que permite omitir a enunciação de toda a matéria de facto a enquadrar juridicamente e omitir a fundamentação da condenação, por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
18. Entre a decisão da 1ª Instância e o douto acórdão, o artigo 69º do Código Penal sofreu alteração pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, cuja alínea a) agora consagra:
‘1. É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre 3 meses e 3 anos quem for punido: a) Por crime previsto nos artigos 291º ou 292º.’
19. O legislador esclareceu as dúvidas quanto ao crime mais discutido (artigo
292º do Código Penal) no que toca à aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, referenciando agora expressamente o artigo
292º, mais excluiu todos os outros, ou seja, aqueles que eram cometidos com grave violação das regras de trânsito rodoviário, de que era exemplo, entre outros, o crime em causa nos autos.
20. Perante dois quadros normativos conflituantes no tempo, há que aplicar o que for mais favorável ao arguido – em Direito Penal é princípio constitucional a aplicação retroactiva da Lei [sic] – que é o da redacção da Lei n.º 77/2001.
21. Face à nova redacção da Lei n.º 77/2001, ao crime em causa nos autos não corresponde a sanção acessória prevista no artigo 69º do Código Penal.
22. Também aqui o Tribunal da Relação de Évora entendeu esgotado o seu poder jurisdicional, por tal, no seu entender, importar violação do disposto no artigo
380º, n.º 1, alínea b), do Código Processo Penal, e implicitamente, por não ser aplicável ao caso o artigo 669º, alínea a), do Código Processo Civil.
23. A interpretação explícita e implícita dos artigos 380º, n.º 1, alínea b), do Código Processo Penal e 669º, alínea a), do Código Processo Civil é inconstitucional por violação do artigo 29º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, devendo ser declarada tal inconstitucionalidade. Nestes termos Deve julgar-se procedente o recurso e:
1. Declarar-se inconstitucionais os artigos 380º, n.º 1, alínea b), do C. P. Penal e artigo 669º, alínea a), do C. P. Civil, na interpretação que entende que tais normas não permitem a reforma de Acórdãos ou Sentenças, por violação do artigo 29º, n.º 4, da C.R.P. (conclusões 6 e 21).
2. Declarar-se a inconstitucionalidade do artigo 359º do C.P.P. na interpretação que entende não constituir alteração substancial dos factos constantes da acusação e pronúncia e dar-se como não provado factos nelas constantes que são favoráveis ao recorrente sem a prévia adopção do formalismo imposto por tal artigo, por violação do artigo 32º, n.º 1, da C.R.P.
3. Declarar-se a inconstitucionalidade do artigo 374º, n.º 2, do C. P. Penal, na interpretação que entende que é permitido omitir em Acórdão ou Sentença a enunciação de toda a matéria de facto a enquadrar juridicamente e omitir a fundamentação da condenação, por violação do artigo 32º, n.º 1, da C.R.P.
4. Declaradas tais inconstitucionalidades, devem baixar os autos ao Tribunal da Relação de Évora para proferir acórdão em conformidade [com] as declarações de inconstitucionalidade.”
Por sua vez, as contra-alegações do Ministério Público junto deste Tribunal concluíram assim:
“Não se verificam os pressupostos do recurso de constitucionalidade interposto, já que – para além de o recorrente não ter suscitado, durante o processo, em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa – se verifica que as normas questionadas não foram aplicadas com o sentido, alegadamente inconstitucional, por ele invocado.'
Cumpre decidir.
II. Fundamentos
3.Importa começar por tratar da questão prévia suscitada, relativa à possibilidade de conhecimento do presente recurso. Este vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, sendo necessário, para se poder conhecer de tal recurso, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e de que a norma impugnada tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido, que a inconstitucionalidade desta norma, ou dimensão normativa, tenha sido suscitada durante o processo. Por outro lado, como se sabe, no direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no Diário da República [DR], II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, p. 821), com exclusão dos actos de outra natureza (políticos, administrativos, ou judiciais, em si mesmos).
No presente caso, das quatro normas impugnadas pelo recorrente, duas foram-no pela primeira vez no requerimento de reforma/arguição de nulidades da decisão de
28 de Maio de 2002, do Tribunal da Relação de Évora, e outras duas só foram impugnadas no requerimento do recurso de constitucionalidade.
Começando por estas últimas, escreveu então o recorrente.
“Embora tenha sido invocado pelo recorrente o artigo 669º, alínea a), do Código
[de] Processo Civil, os doutos julgadores não aplicaram esta norma que lhes conferia poderes para corrigir o acórdão, por entenderem, implicitamente, que ou não era aplicável ou não lhes concedia poderes para tal correcção. E entenderam que, nos termos do artigo 380º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal não podiam corrigir o acórdão. Esta norma, artigo 380º, n.º 1, alínea b), do Código [de] Processo Penal, com essa interpretação, é inconstitucional, bem como é inconstitucional a interpretação do artigo 669º, alínea a), do Código de Processo Civil, na interpretação que entende que não permite a reforma do acórdão, por violação do artigo 29º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.”
Pode começar-se por notar, como notou o Ministério Público nas suas contra-alegações, que
“não pode obviamente considerar-se a decisão proferida pela Relação acerca do
âmbito da reforma da sentença em processo penal uma decisão-surpresa, de conteúdo insólito ou imprevisível, com o qual o recorrente não pudesse razoavelmente contar. Na verdade, a interpretação seguida pela Relação coincide com a estrita aplicação literal da norma do artigo 380º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.”
Ora, reconhecendo o recorrente que a norma – quase sempre referida como – do
“artigo 669º, alínea a)”, do Código de Processo Civil, não foi aplicada (cfr. ff. 359 e 363 dos autos), e não se tendo o Tribunal da Relação de Évora desviado do que está previsto na norma do artigo 380º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, é claro que não se pode conhecer da conformidade constitucional daquela norma do Código de Processo Civil.
Mas também não pode tomar-se conhecimento desta norma do Código de Processo Penal, porque a questão da sua eventual inconstitucionalidade não foi de todo suscitada durante o processo, isto é, perante o tribunal a quo – mas só no requerimento de recurso –, como haveria de ter sido face ao tipo de recurso interposto (cfr., v.g., Acórdãos n.ºs 90/85, 352/94 e 192/00, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 11 de Julho de 1985, de 6 de Setembro de
1994 e de 30 de Outubro de 2000). E porque, por outro lado, como se deixou dito, não se tratava de um daqueles casos “anómalos” ou “excepcionais” em que se pudesse dispensar o recorrente do ónus de “adopção da estratégia processual adequada” à suscitação da questão de constitucionalidade, fazendo-o perante o tribunal recorrido (cfr., v.g., Acórdãos n.ºs 61/92, 595/96, 479/89 e 489/94 publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 18 de Agosto de 1992, 22 de Julho de 1996, 24 de Abril de 1992 e 16 de Dezembro de 1994).
Pronunciando-se sobre esta questão prévia nas suas alegações, na sequência do despacho do relator, escreveu o recorrente:
“A questão da inconstitucionalidade era inesperada, sendo, sempre recorrível, foi suscitada aquando do pedido de reforma, que foi recusado.” Tal deve-se, porém, manifestamente, a lapso: nessa peça foi invocado, de facto, o “artigo 669º, n.º 2, alínea a)” do Código de Processo Civil – que o recorrente reconhece não ter sido aplicado. Mas não se impugnou a constitucionalidade do artigo 380º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal. Só no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade – momento já não idóneo para tal –, é que essa impugnação foi efectuada. Porque o tribunal recorrido não se pronunciou – nem tinha de se pronunciar, visto que a questão lhe não foi suscitada– sobre a constitucionalidade desta norma não pode agora o Tribunal Constitucional reapreciar, em recurso, juízo algum.
4.Restam, pois, as duas normas que foram impugnadas logo no requerimento de arguição da nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28 de Maio de
2002.
Quanto à norma do artigo 359º do Código de Processo Penal, era nesse requerimento dita “inconstitucional por violação do artigo 32º, n.º 1, da C.R.P.”, por se ter verificado, segundo o recorrente, “uma alteração substancial dos factos que foram tomados em conta pelo tribunal para efeitos de condenação, o que constitui violação do artigo 359º do C.P.P.”.
Todavia, a mais de poder duvidar-se que tenha havido qualquer alteração substancial dos factos, nos termos em que esta se define na alínea f) do n.º 1 do artigo 1º do Código de Processo Penal – “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis” –, cumpre notar que a única alteração da factualidade estabelecida que se operou entre a decisão da 1ª instância e a da 2ª instância foi quanto ao ponto de embate da vítima com o carro, e, aliás, no sentido sempre pugnado pela defesa – “Da participação do acidente consta que o embate ocorreu exactamente com a parte referido [sic] pelo arguido, ou seja, a colisão ocorreu entre o lado direito do veículo de passageiros e o velocípede”, escrevia-se nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Évora (fls. 150 dos autos) –, não sendo perceptível como é que o provimento do recurso do arguido, nesta parte, pudesse implicar a inconstitucionalidade da norma do artigo 359º do Código de Processo Penal.
Assim, e também porque a dimensão normativa dessa norma – aliás, simultaneamente, dita desrespeitada pela decisão e desconforme com a Constituição – não foi devidamente especificada antes do termo das conclusões das alegações do recurso de constitucionalidade (designadamente, perante o tribunal recorrido, onde o recorrente – a fls. 331 dos autos – apenas impugnou
“a interpretação desta norma feita pelo Acórdão”, sem a tornar perceptível), não pode também conhecer-se do recurso quanto a ela, como se advertiu no despacho proferido neste Tribunal.
Quanto à norma do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal – que também foi indicada como norma violada, quer no recurso para o Tribunal da Relação de
Évora, quer no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade – também só no final das conclusões das alegações do recurso de constitucionalidade veio a ver definido pelo recorrente o sentido supostamente inconstitucional. Até esse momento, é evidente que o que se pediu sempre a este Tribunal foi um juízo sobre o modo como o tribunal recorrido operou a fundamentação da decisão. De qualquer forma, considerando este sentido por
último atribuído à norma – em momento já não idóneo para o efeito –, e ultrapassada a impossibilidade de apreciar simplesmente o modo como os outros Tribunais aplicam o direito infraconstitucional, torna-se claro que esse sentido não foi aplicado pelo tribunal recorrido. E, por outro lado, sempre seria inútil conhecer de tal questão. Na verdade, como notou, nas suas contra-alegações, o Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal:
“é manifesto que o – aliás, extensamente fundamentado – acórdão recorrido não realizou a interpretação normativa especificada pelo recorrente, traduzida em atribuir à norma constante do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal sentido consistente em permitir ao tribunal a omissão de especificação da matéria de facto e de fundamentação da condenação. Acresce que tal questão sempre estaria precludida, face ao teor do decidido a fls. 341, segundo o qual a eventual e hipotética nulidade sempre estaria sanada, face ao previsto no artigo 120º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal: ou seja, concorrendo um fundamento alternativo, autónomo relativamente à questão da pretensa nulidade invocada, sempre seria inútil o recurso de fiscalização concreta, com o objecto que lhe atribui o recorrente.'
Não pode, pois, tomar-se conhecimento do presente recurso quanto a nenhuma das normas impugnadas. III. Decisão Com os fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do presente recurso e condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 10 (dez) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Novembro de 2003
Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos