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Proc. n.º 36/04
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nestes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., este recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra da sentença que, mantendo a sanção imposta pela autoridade administrativa, lhe aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, suspensa na sua execução por 180 dias. Aquele Tribunal, acórdão de 26 de Novembro de 2003, recusou aplicar, com fundamento na sua inconstitucionalidade, o artigo 152º Código da Estrada, designadamente as normas constantes dos seus n.ºs 1, 7 e 8. Fundamentou assim esta decisão:
“[...] De tudo o que se inculca a ideia que nos merece adesão de que o art.º
152° C. Estrada, designadamente os seus n.ºs 1, 7 e 8, está ferido de inconstitucionalidade material, no segmento em que determina que a responsabilidade da contra-ordenação recai sobre quem for proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira, locatário por prazo superior a um ano ou sobre quem, em virtude de facto sujeito a registo, for possuidor do veículo, sendo instaurado contra ele o correspondente processo e no n° 7 que, se o proprietário não for possuidor do veículo ou se o tiver locado, deve proceder à identificação do possuidor ou do locatário, no prazo de 20 dias após ter sido notificado para o efeito, sob pena - n° 8 de ser sancionado com coima de € 360 a €1800. Destarte que, na inaplicação deste normativo, se acorde em revogar a decisão recorrida, absolvendo-se o arguido”
2. Desta decisão foi interposto pelo representante do Ministério Público junto daquele Tribunal, de acordo com o disposto no art. 70°, n.º1, alínea a) da Lei n.º 28/02, de 15 de Novembro, o presente recurso de constitucionalidade, para apreciação da conformidade com a Constituição da norma desaplicada, isto é, da
“constante do artigo 152° do Código da Estrada, designada mente os seus nos. 1,
7 e 8”.
3. Já neste Tribunal foi o Ministério Público, recorrente, notificado para alegar, o que fez, tendo procedido à delimitação do objecto do recurso nos seguintes termos:
“Vista a decisão recorrida e tendo em consideração os factos considerados provados, resulta que as normas dos n.ºs 7 e 8 do artigo 152º do Código da Estrada não eram convocáveis para a resolução da questão de mérito colocada no processo Em causa estava tão só a aplicação de uma medida de inibição de conduzir, face à gravidade de contra-ordenação praticada, no quadro do disposto no n.º 1 do citado artigo. O objecto do recurso tem, assim, que ser circunscrito à apreciação da constitucionalidade deste último preceito, quando interpretado no sentido [de a] responsabilidade recair sempre sobre o proprietário do veículo que consta do registo, quando resulta provado que foi uma terceira pessoa, que praticou a contra-ordenação em causa.”
E concluiu a sua alegação da seguinte forma:
“1 – A norma do n.º 1 do artigo 152º do Código da Estrada, quando interpretada no sentido [de a] responsabilidade contra-ordenacional recair sempre sobre o proprietário do veículo que consta do registo, quando resulta provado em audiência de julgamento que foi um terceiro o responsável pela matéria contra-ordenacional em causa, é inconstitucional, por violação do princípio da culpa, consagrado nos artigos 1º e 25º, n.º 1, da Constituição.
2 - Termos em que deveria ser confirmado o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida”.
4. Por parte do recorrido não foi apresentada qualquer alegação.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir
II. Fundamentação
5. Delimitação do objecto do recurso.
Conforme este Tribunal tem afirmado, o requerimento de interposição de recurso limita o respectivo objecto às normas nele indicadas (cfr. artigo 684º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o n.º 1 do artigo 75º-A desta Lei), sem prejuízo, no entanto, de esse objecto, assim delimitado, vir a ser restringido (mas não ampliado, modificado ou substituído por outro) nas conclusões das alegações (cfr. citado artigo 684º, n.º 3). O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, tinha inicialmente por objecto a apreciação da inconstitucionalidade da norma
“constante do artigo 152° do Código da Estrada, designadamente os seus nos. 1, 7 e 8”, a que o Tribunal da Relação de Coimbra recusou aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade. Face, porém, à delimitação efectuada pelo recorrente nas alegações, há que concluir que o recurso ficou limitado apenas à questão da constitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 152º, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida, a qual recusou a sua aplicação.
6. Da alegada inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 152º do Código da Estrada
6.1. É o seguinte o teor da norma em causa:
Artigo 152º
(Da responsabilidade)
1. Quando o agente da autoridade não puder identificar o autor da contra-ordenação, a responsabilidade recai sobre quem for proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira, locatário por prazo superior a um ano ou sobre quem, em virtude de facto sujeito a registo, for possuidor do veículo, sendo instaurado contra ele o correspondente processo.
[...]”
6.2. Nos autos, mostra-se provado que o arguido, ora recorrido, à data da infracção, não era proprietário do veículo cujo condutor desobedeceu a um sinal vermelho, por o ter já vendido, embora o mesmo ainda se encontrasse registado em seu nome. Mostra-se, igualmente, que o arguido, não era possuidor do veículo naquela data e que era outro, devidamente identificado, o condutor que cometeu a infracção em causa.
O tribunal a quo entendeu, contudo, na tese que fez vencimento no acórdão e que
é questionada no voto de vencido, que, não obstante não ser o arguido nem proprietário nem possuidor do veículo e não obstante estar provado que não foi ele que cometeu a contra-ordenação, a norma contida no artigo 152º, n.º 1, do Código da Estrada mesmo assim exigiria a sua punição, desde que o seu nome ainda constasse no registo como proprietário. Só assim não seria, porque tal norma, nessa interpretação, sendo inconstitucional, não poderia ser aplicada. Foi este o raciocínio utilizado:
“[...] Com nitidez se retira, da apurada factualidade que o recorrente não praticou qualquer acto integrador da contra-ordenação por que se viu sancionado. A pena foi-lhe imposta apenas com base na ficção legal de que o proprietário de um veículo é inelutavelmente o seu condutor, desde que não identifique outrem, como tal. A este respeito rege o art.º 152° n° 1 do CE que estabelece que quando o agente da autoridade não puder identificar o autor da contra-ordenação, a responsabilidade recai sobre quem for proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira, locatário por prazo superior a um ano ou sobre quem, em virtude de facto sujeito a registo, for possuidor do veículo, sendo instaurado contra ele o correspondente processo e no n° 7 que, se o proprietário não for possuidor do veículo ou se o tiver locado, deve proceder à identificação do possuidor ou do locatário, no prazo de 20 dias após ter sido notificado para o efeito, sob pena de ser sancionado com coima de € 360 a € 1800. Mas se apurado ficou que o proprietário da viatura em infracção contra-ordenacional, não era o seu condutor, arredada fica a actuação daquele, quer a título de acção, quer a título de negligência, porque actividade alguma exerceu.
É a lei que ficciona um comportamento, no caso contra-ordenacional, por parte do proprietário, num forçado pressuposto de que este continua e continuará a deter o veículo, enquanto não houver um novo registo. A responsabilidade recai sobre o proprietário, numa mera presunção de que se mantém essa propriedade. Ora, sendo de normalidade que essa presunção advenha da titularidade do registo, já, a nosso ver, se excede em razoabilidade e mesmo em termos de legalidade que dê a essa presunção a qualificativa de iniludível, inatacável, não admitindo prova em contrário: presunção 'juris et de jure '. Isto porque as presunções são meras ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir – art.ºs 349° e 350° n° 2 C. Civil. E estas ilações são, por via de regra, ilidíveis atento que, salvo casos excepcionais, previstos na lei, são presunções 'tantum juris'[1] ou dizendo de modo similar' o n° 2 do art.º 350° considera excepcionais as presunções 'juris et de jure”[2] Comprovado que ficou que era outra pessoa a condutora do veículo, no caso em apreço, razão não subsiste para que se mantenha de pé a presunção além estabelecida; foi feita a prova do contrário, afastando-se o facto que serve de base à presunção legal - registo em seu nome - e até do próprio facto presumido
- condução contra-ordenacional.[3] Assim que, na impugnada decisão condenatória, e no seguimento do que se vem dizendo, se haja feito uso ilegítimo de uma presunção que havia e foi ilidida, vertendo-se afinal, essa sancionação numa responsabilidade meramente objectiva, de todo inviável, por inadmissível, no domínio penal.
[...] Há, ainda, total ilogicidade entre a notificação/ordem recebida e a cominação da responsabilização pelo facto já praticado (por outrem). Em coerência silogística, entender-se-ia tão-só que a consequência da falta/omissão - não indicação dos elementos do verdadeiro condutor - fosse a de desobediência, que não a de responsabilização pelo uso da viatura. De tudo o que se inculca a ideia que nos merece adesão de que o art.º 152° C. Estrada, designadamente os seus n.ºs 1, 7 e 8, está ferido de inconstitucionalidade material [...]”.
Vejamos então.
6.3. Conforme tem sido reiteradamente afirmado, não cabe ao Tribunal Constitucional dirimir conflitos de interpretação de normas infraconstitucionais, nem determinar qual a melhor interpretação dessas normas
(melhor, no sentido de que a ela conduz mais directamente a observância estrita dos cânones hermenêuticos). Por outro lado, é certo que, existindo mais do que uma interpretação possível da norma em causa, deverá este Tribunal ponderar se não será de tomar como dado uma interpretação que, embora tida por menos boa ou até por inconstitucional, seja, todavia, a adoptada pelos tribunais. Mas, ainda que assim deva ser o procedimento natural, podendo o Tribunal interpretar conformemente à Constituição as normas de direito ordinário, cuja apreciação lhe seja suscitada nos recursos que para si sejam interpostos, impondo, designadamente, essa interpretação no processo, quando nela fundar o juízo de constitucionalidade que emitir (artigo 80º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional), não deve este Tribunal pronunciar juízos de inconstitucionalidade sobre interpretações normativas de todo em todo inaceitáveis (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 583/98, publicado no Diário da República, II Série, de 30 de Março de 1999).
De facto, como acontece no presente caso, não é aceitável concluir que uma norma como a do n.º 1 do artigo 152º do Código da Estrada, que estabelece a possibilidade de a responsabilidade contra-ordenacional, em determinadas circunstâncias, ser atribuída ao proprietário ou possuidor de um veículo, possa ser interpretada no sentido de abranger situações em que está provado nos autos não só que o arguido, à data da infracção, já não era proprietário ou possuidor do veículo - embora o seu nome constasse ainda do registo -, mas também que foi um terceiro, devidamente identificado, o infractor. Interpretar o mencionado artigo 152º, n.º 1, em termos de considerar responsável quem não é proprietário ou possuidor, apenas porque como tal consta do registo, quando está provado, ainda, que não foi esse o infractor, mas sim outro, devidamente identificado, é imputar a tal normativo um sentido desrazoável - um sentido que o intérprete só extrai, se desrespeitar, na interpretação, o dever de presumir que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas” (cfr. artigo 9º, n.º 3, do Código Civil).
Ora, como a norma em causa não comporta a interpretação feita pela decisão recorrida, no sentido de que está consagrada a responsabilidade contra-ordenacional de quem, não sendo nem proprietário nem possuidor do veículo, ainda conste no registo como tal, quando resulte provado nos autos que foi um terceiro, devidamente identificado, o responsável pela contra-ordenação em causa, mas admite a interpretação de que o que está em causa é uma mera presunção, sempre ilidível, de responsabilidade do efectivo proprietário ou possuidor, e este sentido é conforme à Constituição, já o n.º 1 do artigo 152º do Código da Estrada, não viola o princípio da culpa. Com efeito, como o Tribunal Constitucional tem decidido, nomeadamente na numerosa jurisprudência sobre a responsabilidade criminal de director de periódico (cfr., Acórdãos n.ºs
63/85, 447/87 e 135/92, publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., pág. 503, 10º vol., pág. 547 e 21º vol. pág. 541, e Acórdão 922/96, disponível na página Internet do Tribunal em http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm) e no Acórdão n° 252/92,
(publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22° vol., pág. 723), a existência de presunções, mesmo em direito penal, não é constitucionalmente inadmissível, desde que ilidíveis.
Ora, como se afirmou no Acórdão n.º 609/95, “entre uma interpretação que é conforme à Constituição e outra que com ela é incompatível, o intérprete (juiz incluído) deve preferir sempre o sentido que o texto constitucional suporta. Se o não fizer e desaplicar a norma legal com fundamento em inconstitucionalidade, no recurso que subir ao Tribunal Constitucional, deve este fixar o sentido da norma que é compatível com a Constituição, e mandar aplicar esta no processo com tal interpretação.” É este o sentido do artigo 80º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional (cfr., Acórdãos nºs 163/95, 198/95 e 609/95, publicados no Diário da República, II série, de 8 de Junho e 22 de Junho de 1995 e 19 de Março de
1996, respectivamente).
Em conclusão: o n.º 1 do artigo 152º do Código da Estrada deve ser interpretado no sentido de que se limita a estabelecer uma presunção ilidível de que o proprietário ou possuidor do veículo é o seu condutor, desde que não identifique outrem como tal. Assim interpretado, não padece o mencionado n.º 1 daquele artigo 152º de qualquer vício de inconstitucionalidade.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) interpretar, nos termos do disposto no artigo 80º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o n.º 1 do artigo 152º do Código da Estrada no sentido de que se limita a estabelecer uma presunção ilidível de que o proprietário ou possuidor do veículo é o seu condutor, desde que não identifique outrem como tal; b) conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida para que seja reformada em termos de aplicar n.º 1 do artigo 152º do Código da Estrada, com a interpretação que se indicou na alínea a).
Lisboa, 20 de Abril de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Luís Nunes de Almeida
[1] Mota Pinto in Teor. Ger., 3ª, 429
[2] R.Capelo de Sousa, Sucessões, 1ª, 229.
[3] AVarela in RLJ, 122º, 217/8.