Imprimir acórdão
Procº nº 345/2002.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Em 3 de Junho de 2002 lavrou o relator decisão com o seguinte teor:-
'1. Pelo Tribunal de comarca de Vila Franca de Xira intentou a A., contra B, C e mulher, e D, acção, seguindo a forma de processo ordinário, solicitando, por um lado, que fosse declarada a ineficácia dos negócios jurídicos de compra e venda incidentes sobre dois lotes de terreno sitos na Quinta ....., freguesia da Póvoa de Santa Iria, com o consequente cancelamento dos registos de aquisição na Conservatória do Registo Predial e, por outro, a condenação solidária dos réus a pagarem-lhe uma determinada indemnização.
Tendo, por sentença proferida em 5 de Novembro de 1999, sido julgada improcedente a acção, da mesma apelou a autora para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 9 de Janeiro de 2001, negou provimento ao recurso, o que motivou a mesma autora a pedir revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
Na alegação que, então, produziu, os réus não suscitaram qualquer questão de desconformidade com a Lei Fundamental por banda de norma ou normas constantes do ordenamento jurídico infra-constitucional.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 19 de Dezembro de 2001, concedeu, em parte, a revista, declarando ineficaz quanto à autora uma das vendas, consequentemente ordenando o averbamento dessa ineficácia ao registo da transmissão e condenando os réus na indemnização peticionada, mas tão só relativamente ao capital de Esc. 36.000.000$00.
Notificado desse acórdão, vieram os réus arguir a sua nulidade, ‘bem como suscitar a inconstitucionalidade do mesmo, dizendo, a este último propósito:-
‘............................................................................................................................................................................................................................................
13- Ao interpretar o art. 722º nº 2, parte final, do Cód. de Proc. Civil, no sentido de que o STJ pode conhecer da matéria de facto fixada pelas instâncias, sem fundamentar devidamente a razão que leva a esse conhecimento, o acórdão reclamado viola frontalmente o art. 205 nº 1 da Constituição. Assim, essa norma legal, na interpretação agora dada é inconstitucional.
Mas, além de violar o art. 205º, essa mesma interpretação viola também o art. 2º da Constituição, na medida em que, é atentatória do Estado de direito e de um direito fundamental - o direito à igualdade - uma vez que ao arrogar-se poderes que não tem - o de conhecer indiscriminadamente da matéria de facto - gera a desordem e a instabilidade na ordem jurídica e coloca os recorridos em desigualdade perante todos aqueles que tendo estado na mesma situação viram esse Venerando Tribunal decidir dentro dos limites da Lei.
Também inconstitucional, e pelas mesmas razões é a interpretação dada no acórdão reclamado ao art. 394º do Cód. Civil, quando defende a tese e aplica-a em concreto, de que é possível a prova testemunhal contra o conteúdo de documentos autênticos, embora debaixo da capa de que essa prova testemunhal versa sobre ‘convenções ou instruções a latere’, o que não era o caso.
............................................................................................................................................................................................................................................’
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 5 de Março de 2002, indeferiu a arguição.
Lê-se nesse aresto:-
‘............................................................................................................................................................................................................................................ No acórdão ora arguido de nulo, este Tribunal não alterou a matéria de facto dada como provada nas instâncias: não considerou provados factos dados como não provados nas instâncias; não considerou não provados factos dados como provados nas instâncias. Antes deu a factos considerados provados o efeito que as instâncias não lhes reconheceu. E porquê? Porque as instâncias entenderam que aqueles factos (que consideraram provados) não se podiam provar por testemunhas (art. 394 do CC), razão por que os não consideraram como suporte da decisão de direito (art. 646, nº 4 do CPC). Este Tribunal, pelo contrário, entendeu que aqueles factos se podiam provar por testemunhas, motivos por que os considerou na decisão de direito. De facto, a fls. 497 encontra-se escrito: ‘Mal entendido e interpretado, pelas instâncias, o comando do art. 394 do CC, há que dar como assentes os factos constantes dos quesitos considerados provados, mas que as instâncias tiveram como sem efeito’. A razão ou fundamento do assim entendido encontra-se a fls. 20 a 25 do acórdão em causa (agora fls. 492 a 497 dos autos), pelo que é totalmente carecido de razão dizer-se que o acórdão não se encontra fundamentado. Portanto, não se fez prevalecer prova testemunhal sobre prova feita por documentos autênticos - mas sim, valorou-se a prova testemunhal feita para conhecer os motivos ou fins por que foram passadas as procurações. Sendo destituído de razão dizer-se inovadora (e, se o fosse, nem tal era proibido) a interpretação do art. 394 do CC, visto ser precisamente a que dela dão Pires de Lima e Antunes Varela. O fim ou motivo por que foram passadas as procurações pode provar-se por testemunhas, porque o fim ou o motivo não se encontram cobertos pela força probatória própria dos documentos autênticos. Por outro lado, a declaração de ineficácia está pedida na petição inicial, sendo uma das questões postas ao Tribunal, pelo que também é totalmente incorrecto dizer-se que o Tribunal decidiu o que se não pediu.
É certo que a ora Reclamante foi absolvida nas instâncias e perdeu em parte neste Supremo Tribunal. Mas, se disso discorda, recurso ordinário não cabe. E a discordância não justifica arguir a decisão de nula, por infundamentada. Depois, ‘suscita’ a Reclamante três inconstitucionalidades. Ora, as questões de inconstitucionalidade não podem ser objecto ou parte de uma arguição de nulidade, mas sim objecto de recurso. Não cabendo recurso ordinário da decisão proferida, nada mais nos cabe dizer a propósito.
............................................................................................................................................................................................................................................’
É deste acórdão, de que a quase totalidade se encontra transcrita, e do de 19 de Dezembro de 2001 que, pela ré, vem interposto recurso para o Tribunal Constitucional, dizendo:-
‘B, recorrida nos autos de recurso de revista supra mencionados, em que é recorrente A., vem interpor para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, com processo de fiscalização concreta - arts. 69º e segs. da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro - com os seguintes fundamentos:
1 - O presente recurso é interposto dos Acórdãos de 5/3/2002, a fls. , dos autos e de 19/12/2001, a fls. .
2 - A questão da inconstitucionalidade foi suscitada em requerimento entregue em 14 de Janeiro de 2002, a fls. , no qual se pediu a declaração de inconstitucionalidade do acórdão de 19/1/2001 que decidiu o recurso de revista.
3 - Este acórdão era insusceptível de recurso ordinário.
4 - Até à prolação deste acórdão a agora recorrente nunca havia levantado a questão de inconstitucionalidade por as decisões das instâncias lhe haverem sido favoráveis e conformes à Constituição.
5 - Os acórdãos recorridos violam os artigos 205º nº 1 e 2º da Constituição, o primeiro deles pela interpretação que faz do art. 722º nº 2 parte final, do Cód. de Proc. Civil no sentido de que pode conhecer livremente da matéria de facto sem fundamentar devidamente a razão de tal conhecimento, sendo que tal matéria é da competência das instâncias, e ainda pela interpretação que também faz do art. 394º do Cód. Civil em que prevalece a prova testemunhal sobre a prova por documentos autênticos, com fundamentação incipiente de que a prova testemunhal recaiu sobre ‘convenções ou instruções a latere’, o que não era manifestamente o caso.
A interpretação destas normas na forma que lhe é dada pelos acórdãos recorridos, por lhes esvaziar o conteúdo carece de séria e exaustiva fundamentação, o que não é o caso. Só essa exaustiva fundamentação era susceptível de evitar a incerteza e a desordem no comércio jurídico. Daí o imperativo constitucional da fundamentação das decisões judiciais, que os ditos acórdãos violaram.
Por razões próximas, os ditos acórdãos violaram o art. 2º da Constituição por atentarem contra um princípio fundamental do estado de direito
- o princípio da igualdade. A violação deste princípio traduziu-se na situação de desigualdade em que foi colocada a recorrente perante todos os que se encontraram em situação idêntica à sua, e viram o Supremo Tribunal de Justiça decidir dentro dos limites da lei.
Pelo exposto, deve o presente recurso [s]er admitido, com efeito suspensivo e a subir nos próprios autos’.
O recurso veio a ser admitido por despacho proferido em 19 de Março de 2002 pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça.
2. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula este Tribunal (cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro) e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da mesma lei, a vertente decisão, por intermédio da qual se não toma conhecimento do objecto da presente impugnação.
Realça-se, desde logo, que o requerimento de interposição de recurso não obedece à totalidade dos requisitos ínsitos nos números 1 e 2 do artº 75º-A do dito diploma, questão, porém, que seria ultrapassável caso viesse a ser formulado o convite a que se reporta o nº 6 daquele artigo e, na sua sequência, a ora recorrente viesse a indicar os requisitos em falta.
Todavia, mesmo a efectivarem-se, não só aquele convite, mas também a cabida indicação por banda da recorrente, ainda assim não poderia o Tribunal conhecer do objecto do recurso, pelo que o lançar mão de tal convite se perspectivaria como a realização de um acto inútil.
Na verdade, quer aquando do requerimento consubstanciador da arguição de nulidade, quer daquele por intermédio do qual foi interposto o presente recurso, fácil é descortinar que os vícios de desconformidade com a Lei Fundamental são assacados aos arestos agora desejados impugnar e não a norma ou normas que, como ratio juris, suportaram as decisões deles constantes.
Ora, como é sabido, objecto dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade são normas vertidas no ordenamento jurídico infra-constitucional e não outros actos do poder público tais como, verbi gratia, as decisões judiciais consideradas qua tale.
Por outro lado, e decisivamente, quer no acórdão de 19 de Dezembro de
2001, quer no de 5 de Março de 2002, o Supremo Tribunal de Justiça não levou minimamente a efeito, quer a aplicação de uma dimensão interpretativa do artº
722º, nº 2, do diploma adjectivo civil e segundo a qual ao mais elevado tribunal da ordem dos tribunais judiciais era permitido conhecer livremente da matéria de facto dada por assente pelas instâncias, não fundamentando a razão desse conhecimento, quer a aplicação de um sentido interpretativo do artº 394º do Código Civil de harmonia com o qual é possível a produção de prova testemunhal para infirmar o conteúdo probatório decorrente de documentos autênticos.
Para tanto, basta atentar no que foi escrito no acórdão de 5 de Março de 2002 e que acima se encontra transcrito.
Isso significa que, in casu, falece um dos requisitos do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa, justamente o que impõe a aplicação, na decisão intentada colocar sob a censura do Tribunal Constitucional, da norma (ou sentido normativo) cuja apreciação se pretende.
Termos em que se não toma conhecimento do objecto do recurso, condenando-se a recorrente nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em cinco unidades de conta'.
É da transcrita decisão que, pela B, vem, ao abrigo do nº 3 do artº
78º-A da Lei nº 28/82, deduzida a presente reclamação, estribando-se, em síntese, nas seguintes considerações:-
- que admite que houvesse 'alguma deficiência sua na forma como transmitiu a esse Venerando Tribunal a fundamentação da sua pretensão';
- todavia, entende que a parte final do nº 2 do artº 722º do Código de Processo Civil e o artº 394º do Código Civil, são inconstitucionais com 'com o sentido com que o Supremo Tribunal de Justiça os interpretou e aplicou', já que essa interpretação, para 'além dos efeitos nefastos sobre a própria decisão, pela sua imprevisibilidade, é, pelo precedente que cria, perfeitamente demolidora a médio e longo prazo, de todo o edifício jurídico português', e daí
'a sua inconstitucionalidade';
- o Supremo Tribunal de Justiça, no caso, não se encontrava perante uma qualquer das duas situações a que se reporta a parte final do nº 2 do aludido artº 722º e, não obstante, 'decidiu exactamente nos antípodas da Lei', invadindo 'a esfera de competências das instâncias, e, substituindo-se a elas conheceu da matéria de facto', sem que tivesse, nesse aspecto, efectuado qualquer fundamentação;
- quanto ao artº 394º do Código Civil, o acórdão tem apenas uma
'fundamentação meramente formal, porquanto do ponto de vista do conteúdo é totalmente falaciosa', escudada na 'escapatória das convenções ou instruções a latere'.
Termina a peça processual consubstanciadora da reclamação dizendo:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................
15 - Sem necessidade de maiores alongamentos, dir-se-á que o recurso interposto para esse Venerando Tribunal não visa, nem poderia visar, a obtenção de mais um grau de recurso, mas unicamente, e não é pouco, que seja evitada uma calamidade da qual a primeira vítima é a recorrente. Naturalmente, a recorrente não acredita minimamente que as teses do acórdão recorrido criem escola, e sabe que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça as repudiará logo que seja chamado a decidir sobre aquelas questões. No entanto, até tal acontecer, vigorará a anarquia, ou, caso, a reposição dos princípios seja imediata, ficará a recorrente como a única vítima, o que além de injusto é repugnante do ponto de vista do Estado de Direito.
Em conclusão, as interpretações dos arts. 722º nº 2, parte final do Cód. de Proc. Civil e do art. 394º do Cód. Civil feitas pelos acórdãos recorridos, violam os princípios mais básicos do Estado de Direito Democrático, além de violarem os arts. 205º nºs 1 e 2 da Constituição por falta ou iniquidade de fundamentação, além de violarem também o art. 2º do mesmo Diploma por violação do princípio da igualdade'.
Ouvida a recorrida A., não veio ela efectuar qualquer pronúncia sobre a deduzida reclamação.
Cumpre decidir.
2. É por demais óbvia a improcedência da vertente reclamação.
Na verdade, a reclamante não tenta, sequer, infirmar os motivos que, na decisão sub specie, conduziram ao não conhecimento do objecto do recurso e que, decisivamente, constam do sexto parágrafo do ponto 2. daquela decisão.
Como resulta do que acima se disse, o que agora a reclamante vem brandir é com uma postura em que manifesta profunda discordância com o decidido pelo acórdão lavrado no Supremo Tribunal de Justiça e que, na sua óptica, contraria os ensinamentos extraídos das jurisprudência e doutrina portuguesas, quer quanto à pseudo ultrapassagem, efectuada por aquele aresto, dos seus poderes cognitivos, quer quanto às circunstâncias em que podem ser infirmados factos que, de forma não substancial, se extraiam de documentos autênticos.
Só que, como resulta do exposto na decisão em reclamação, quer o artº 722º, nº 2, do Código de Processo Civil, quer o artº 394º do Código Civil não foram interpretados e aplicados pelo modo que, na perspectiva da reclamante, aquando do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, constituía o objecto da impugnação para este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade, pelo que se não pode, no caso sub iudicio, sustentar que houve, por parte do acórdão desejado recorrer, a aplicação de normativos cuja desconformidade com a Lei Fundamental foi equacionada.
Termos em que se indefere a reclamação, condenando-se a reclamante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 10 de Julho de 2002- Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa