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Proc. n.º 182/02 Acórdão nº 316/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. e outros, demandados pelo Ministério Público na qualidade de Presidente e Vereadores da Câmara Municipal de ------------, em processo de julgamento de responsabilidade financeira (JRF), interpuseram recurso para o Plenário da 3ª Secção do Tribunal de Contas da sentença proferida em 1ª Instância na 3ª Secção do mesmo Tribunal de Contas (sentença n.º 5/2001, proc. n.º 9/JRF/99, de 14 de Fevereiro de 2001), que, nos termos conjugados do n.º 5 do artigo 111º, do n.º 1 do artigo 59º, do artigo 63º e do n.º 2 do artigo 64º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, os condenou solidariamente como co-autores de “infracções financeiras de pagamentos indevidos” a reporem nos cofres da Câmara Municipal de ---------- a importância global de 4.300.00$00, correspondente a pagamentos indevidos efectuados na gerência de 1996, acrescida de juros legais a partir do trânsito em julgado da sentença.
Nas alegações que então apresentaram, formularam, entre outras, as seguintes conclusões:
“a) Os recorrentes procederam aos pagamentos dos autos com o objectivo de assegurar a eficácia na prossecução das atribuições do município, valorizando a contenção em volume dos recursos humanos necessários, com a inerente economia dos gastos;
b) Fazendo-o convictos de que agiam legalmente, quer face ao disposto no Decreto-Lei n.º 110-A/81, de 14 de Maio (inconstitucional, aliás, por emitido sem autorização parlamentar – necessária face à então vigente al. m) do art. 167º da CRP – e inconstitucional ainda no tocante ao seu art. 8º, n.º 1 e elenco das excepções constantes do art. 6º, n.º 3, na medida em que, conjugadamente, limitam a retribuição do trabalho a modalidades que desatendem as imposições constitucionais constantes do então art. 53º da mesma CRP – sendo que, seguramente por lapso, a douta sentença recorrida se pronuncia sobre tal matéria com base em redacções da CRP resultantes de revisões posteriores);
c) Quer face ao Decreto-Lei n.º 57-C/84, de 20 de Fevereiro (que enferma dos mesmos vícios de inconstitucionalidade que o referido Decreto-Lei n.º 110-A/81), quer face ao Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, quer, por
último, face ao Decreto-Lei n.º 353-A/89, de 16 de Outubro, pelas razões que mais desenvolvidamente se indicaram no corpo das alegações;
d) Em qualquer caso, os recorrentes não agiram com culpa, nem sequer na forma de negligência;
e) E, da atribuição dos referidos subsídios, não resultou dano para o município mas, ao invés, dela «decorreu a possibilidade de assegurar necessidades básicas das populações», com «economia de gastos» e «notória minimização de custos»;
f) Ainda que assim não se entendesse, face às circunstâncias em que os pagamentos dos autos foram efectuados deveria a responsabilidade dos ora recorrentes ser relevada nos termos do art. 64º, n.º 2 da Lei 98/97, de 26 de Agosto;
g) Decidindo em desconformidade, a douta sentença recorrida violou as disposições legais referidas e ainda as pela mesma invocadas designadamente o art. 59º, n.º 1 da citada Lei n.º 98/97.
[...].”
O Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal de Contas pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso e da confirmação da sentença recorrida, tendo assim concluído as suas alegações (fls. 12 e seguintes):
“1. Os demandados atribuíram os subsídios remuneratórios em causa com conhecimento das dúvidas e conclusões dos pareceres e outras informações técnico-jurídicos elaboradas pelos Serviços.
2. Aliás, sempre que tinham dúvidas sobre a legalidade dos procedimentos solicitavam aos Serviços esse tipo de pareceres e informações.
3. A sua conduta, ao manterem e determinarem o pagamento destes subsídios, é, por isso, culposa, na forma negligente.
4. As normas dos decretos-leis apontadas nas conclusões do recurso não enfermam de qualquer inconstitucionalidade e, ainda que tal sucedesse, o que não se concede, enquanto não for declarada essa inconstitucionalidade, têm de ser cumpridas e respeitadas.
5. A conduta dos demandados, culposa na forma negligente, e as circunstâncias em que actuaram foram devidamente valoradas na douta sentença, de forma justa e equilibrada, tanto que viram as respectivas responsabilidades reduzidas, nos termos do art. 64º, n.º 2 da Lei n.º 98/97, de 28/8.
6. Assim a douta sentença não violou quaisquer normas legais, nomeadamente as apontadas nas conclusões do recurso.
[...].”
2. Por acórdão de 21 de Novembro de 2001 (acórdão n.º 11/2001 – 3ª Secção, fls.
31 a 61), o Plenário da 3ª Secção do Tribunal de Contas negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Sobre a alegada inconstitucionalidade orgânica, disse nesse acórdão o Tribunal de Contas:
“[...] A C.R.P, na versão vigente em 1981 (versão original de 1976) estipulava, no artº
167º-m), que era da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre o «Regime e âmbito da função pública e responsabilidade civil da Administração». Após a revisão constitucional de 1982, as matérias sobre as «Responsabilidade civil na Administração e Bases do regime e âmbito da função pública» passaram a integrar o elenco das matérias de reserva relativa da Assembleia da República – artº 168º- n.º 1-t) e u). Aparentemente, a revisão operada em 1982 teria flexibilizado a intervenção legislativa do Governo, pois expressamente se consignava que estávamos em matéria de reserva relativa da Assembleia; mas, de facto, nenhuma alteração relevante se verificou, porque, na versão originária da C.R.P., o artº 168º - n.º 1 já permitia que a Assembleia da República autorizasse o Governo a fazer decretos-lei sobre matérias das sua exclusiva competência. Temos, assim, que os Dec.-Lei 110-A/81 e 57-C/84 serão organicamente inconstitucionais se se entender que versam matéria relativa ao regime e âmbito da função pública e responsabilidade civil da Administração. Já referimos que ambos os diplomas se debruçam sobre o regime remuneratório do funcionalismo público, com a publicação das tabelas de vencimentos e normas relativas a gratificações, pensões e remunerações acessórias. Não estamos, pois, no âmbito das bases do regime da função pública e da responsabilidade civil da Administração, matéria de acrescida dignidade, própria das que se integram na esfera da competência da Assembleia. Na Constituição Anotada à versão original, Gomes Canotilho e Vital Moreira, referem, a propósito da alínea m) do artº 167º que se deve ter em atenção os artigos 21º, 270º e 271º da Constituição e que aquela alínea «abrange não só regime jurídico específico da função pública, mas também o âmbito da sua aplicação». E, na verdade, o artº 21º estabelece os princípios constitucionais sobre a responsabilidade civil do Estado, enquanto que no artº 271º se consagram princípios relativos à responsabilidade civil, criminal e disciplinar dos funcionários e dos agentes do Estado, e no artº 270º se estabelecem regras fundamentais a que deve obedecer o regime de função pública, tais como a da sujeição exclusiva dos funcionários e agentes ao interesse público, garantias de defesa em processo, proibição de acumulações.
- São estas, seguramente, as áreas de legislação que se integram na previsão constitucional de reserva da Assembleia, sendo as concretas tabelas de vencimentos e disposições afins de cariz remuneratório estranhas à reserva constitucional.
- O que nos leva a concluir que os Dec. Leis 110-A/81 e 57-C/84 não fixam o regime, o âmbito da função pública e, muito menos, a responsabilidade civil da Administração. Logo, não sofrem da invocada inconstitucionalidade orgânica.”
Quanto à eventual violação do artigo 53º da Constituição (na sua versão original), decidiu-se:
“[...] O artº 53º, na versão original da Constituição, enuncia os direitos fundamentais de todos os trabalhadores, como o direito à retribuição, idêntica a trabalho idêntico, à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, à prestação do trabalho em condições de higiene e segurança, ao repouso, lazer, limites máximos de trabalho diário, descanso semanal, férias. O artº 60º da Constituição, na versão de 1982, reproduz o teor do artº 53º da anterior versão e acrescenta o direito à assistência material em situações de desemprego involuntário, bem como incorpora, no seu n.º 2, a substância do artº
54º da versão original. Estamos perante enunciados de direitos que a lei deverá consagrar, designadamente no âmbito das relações laborais, e que, em nada são afectados com o conteúdo dos artigos 6º e 8º do Dec-Lei n.º 110-A/81, reiterados nos artº 7º e
19º - n.º 2 do Dec-Lei n.º 54-C/84. Na verdade, a proibição da criação, aumento, ou extensão das remunerações acessórias, a exigência de um prazo mínimo de um ano para nova actualização das gratificações, que aqueles artigos normatizam, são, de todo, compatíveis com os princípios constitucionais de igualdade, não discriminação, do direito à retribuição: estamos a falar de suplementos, gratificações, de políticas de restrição de abusos e de correcções a «situações de privilégio abusivo e de formas transviadas de acréscimos de vencimento».
- Ou seja: As normas sindicadas pelos Recorrentes não são inconstitucionais, sendo, aliás, pertinente, relembrar que, pese embora os vinte anos decorridos desde a respectiva publicação, não se conhece qualquer decisão que tenha considerado inconstitucionais tais diplomas. E que não resulta minimamente indiciado nos autos que os Recorrentes, enquanto responsáveis pelas decisões de atribuição dos subsídios, alguma vez tenham suscitado a eventual inconstitucionalidade dos mesmos. Acresce que, enquanto as normas não forem consideradas inconstitucionais, a Administração não pode deixar de as cumprir.
[...].”
A. e outros ainda arguiram a nulidade do referido acórdão (fls. 68 e seguinte), tendo o Ministério Público sustentado que a arguição de nulidade devia ser indeferida (fls. 72 e seguinte). Por acórdão de fls. 82 e seguintes, decidiu-se indeferir o pedido apresentado pelos recorrentes.
3. A. e outros interpuseram então recurso para o Tribunal Constitucional do referido acórdão de 21 de Novembro de 2001, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo “ver apreciada a inconstitucionalidade de: a) DL n.º 110-A/81, de 14 de Maio, no seu todo por um lado e, por outro, o seu art. 8º, n.º 1 e elenco das excepções constantes do seu art. 6º, n.º 3; b) DL n.º 57-C/84, de 20 de Fevereiro, no seu todo por um lado e, por outro lado, o seu art. 9º”, por violação dos “artigos 167º, alínea n) e
53º da Constituição, na redacção então vigente” (fls. 90 e v.º e 98 e seguinte).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 91 e 108 e v.º.
Na sequência do despacho de aperfeiçoamento de fls. 102 e 113, vieram os recorrentes apresentar a resposta de fls. 114, em que reiteraram pretender “ver apreciada a inconstitucionalidade:
– do Decreto-Lei n.º 110-A/81, de 14 de Maio, no seu todo por um lado e, por outro, o seu art. 8º, n.º 1 e elenco das excepções constantes do seu art. 6º, n.º 3;
– do Decreto-Lei n.º 57-C/84, de 20 de Fevereiro, no seu todo por um lado e, por outro lado, o seu art. 9º”.
4. Nas alegações (fls. 116 e seguintes), formularam os recorrentes as seguintes conclusões:
“a) O DL 110-A/81, além do mais, introduz princípios genéricos uniformizadores do estatuto remuneratório dos funcionários e agentes; b) o DL 57-C/84, de 20 de Fevereiro, dispõe sobre a mesma matéria, em parte mantendo preceitos do DL 110-A/81; c) o regime da função pública [art. 167°, al. m)] e as bases do regime da função pública [art. 161°, n.º 1, al. u)] nas redacções da CRP vigentes à data da publicação daqueles diplomas legais constituíam reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República; d) tais diplomas legais não foram precedidos de autorização legislativa; padecem, por isso, de inconstitucionalidade orgânica; e) o douto acórdão recorrido decidiu que os subsídios de disponibilidade, esforço e insalubridade não podiam ser pagos já que o art. 8°, n.° 1 do DL
110-A/81 proibiu e o DL 57-C/84 manteve a proibição de tais pagamentos; f) interpretadas dessa forma tais normas violam o preceito constitucional originariamente constante do art. 53°, al. a) e, depois (após a Revisão de
1982), do art. 60°, n.° 1, al. a) da CRP e, em consequência, padecem de inconstitucionalidade material.”
Nas contra-alegações de fls. 123 e seguintes, concluiu, por sua vez, o Ministério Público:
“1 – Na versão originária da Constituição, o âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, atinente à matéria do regime da função pública, apenas abarcava a definição dos aspectos essenciais e estruturantes da relação de emprego público – correspondendo tal conceito, no essencial, ao que veio a ser explicitamente consagrado após a revisão constitucional de 1982: as
«bases» do regime da função pública.
2 – Não se enquadra em tal conceito a concreta e casuística tipificação das remunerações acessórias legalmente permitidas, pelo que não padecem as normas questionadas pelos recorrentes da invocada inconstitucionalidade orgânica.
3 – Não é lícito à Administração a verificação e suprimento de alegada situação de inconstitucionalidade por ela mesma verificada – através da prolação de uma
«decisão aditiva» que, com fundamento no princípio «a trabalho igual, salário igual», amplie o âmbito das remunerações acessórias legalmente tipificadas.
4 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
5. Nos termos do artigo 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil, foi notificado às partes o parecer em que a relatora admitia que o Tribunal Constitucional viesse a não tomar conhecimento do recurso, pelas seguintes razões:
“No presente recurso, os recorrentes pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 110-A/81, de 14 de Maio, «no seu todo por um lado e, por outro, o seu art. 8º, n.º 1 e elenco das excepções constantes do seu art. 6º, n.º 3», e do Decreto-Lei n.º 57-C/84, de 20 de Fevereiro, «no seu todo por um lado e, por outro lado, o seu art. 9º», por violação dos «artigos 167º, alínea n) e 53º da Constituição, na redacção então vigente». Sendo o presente recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, no seu âmbito apenas podem ser apreciadas as normas cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo e que tenham sido concreta e efectivamente aplicadas na decisão recorrida. Os recorrentes suscitaram, desde logo, a questão da inconstitucionalidade quer do Decreto-Lei n.º 110-A/81, de 14 de Maio, quer do Decreto-Lei n.º 57-C/84, de
20 de Fevereiro, «no seu todo», ou seja, referindo-se assim à totalidade das normas que compõem esses diplomas. No entanto, a decisão recorrida não aplicou a totalidade das normas integrantes desses diplomas legais, os quais dispõem sobre os vencimentos dos funcionários e agentes da função pública. Objecto do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade são apenas as normas constantes do artigo 8º, n.º 1, e do artigo 6º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 110-A/81, de 14 de Maio, e a norma constante do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 57-C/84, de 20 de Fevereiro, por serem as únicas normas efectivamente aplicadas na decisão recorrida. As normas em causa têm o seguinte teor:
Decreto-Lei n.º 110-A/81
Artigo 6º
1. [...]
2. [...]
3. A actualização de gratificações por despacho não poderá ocorrer antes de um ano sobre a data da sua última fixação nem exceder a média ponderada do aumento anual de vencimentos. Artigo 8º
1. É proibida a criação, aumento ou extensão de remunerações acessórias, nomeadamente ao pessoal dos serviços e unidades orgânicas que sejam criados ou integrados, mantendo quadros de pessoal diferenciados e hierarquia própria, em departamentos em cujo âmbito as mesmas venham sendo praticadas.
Decreto-Lei n.º 57-C/84
Artigo 9º
São reduzidas no quantitativo correspondente a 30% do aumento dos vencimentos fixados neste diploma todas as remunerações acessórias não previstas em lei, decreto-lei ou decreto regulamentar, independentemente das formas que revistam e dos motivos que determinaram a sua concessão ou das rubricas orçamentais por onde serão processadas.
As questões de constitucionalidade suscitadas nestes autos – reportadas às normas que constituem o objecto do presente recurso, nos termos da delimitação que acaba de se fazer – foram já submetidas ao julgamento do Tribunal Constitucional, no âmbito do processo n.º 183/02, em que igualmente eram recorrentes os ora recorrentes. No acórdão proferido nesse processo (acórdão n.º 137/03, de 18 de Março, ainda inédito), o Tribunal decidiu não tomar conhecimento do recurso, por inutilidade. Disse então o Tribunal, remetendo para a exposição lavrada pelo relator do processo:
«[...] Finalmente, o processo no âmbito do qual foi proferida a decisão recorrida é um processo para julgamento de responsabilidade financeira, nos termos do disposto no artigo 58º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas), cujo n.º 3 explicita que ‘o processo de julgamento da responsabilidade financeira visa tornar efectivas as responsabilidades financeiras emergentes de factos evidenciados em relatórios de auditoria elaborados fora do processo de verificação externa de contas’. Mais concretamente, no caso, tratava-se da denominada responsabilidade financeira reintegratória, prevista no artigo 59º da mesma Lei, que se reporta aos ‘casos de alcance, desvio de dinheiros ou valores públicos e ainda de pagamentos indevidos’, sendo estes últimos nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, ‘para o efeito de reposição os pagamentos ilegais que causarem dano para o Estado ou entidade pública por não terem contraprestação efectiva’. Estas responsabilidades nascem, pois, do incumprimento das disposições legais vigentes por banda dos agentes administrativos em causa. E o processo destina-se, então, a apurar esse comportamento dos mesmos, por forma a concluir
– ou não – pela respectiva ilicitude; ou seja, apurar se era lícito aos agentes efectuar os pagamentos em causa, face à legislação vigente. Não se procura determinar se tais comportamentos – na forma dos pagamentos indevidamente efectuados – configuravam in casu uma situação de justiça material ou de correcção de qualquer desigualdade. Ou seja, não está em causa no presente processo – nem poderia estar, atenta a sua especial natureza – saber se os trabalhadores tinham ou não direito a receber uma determinada remuneração ou suplemento remuneratório, ou se essas remunerações acessórias tinham uma natureza correctiva de ‘desigualdades’ ou ‘injustiças’ materiais. Nem poderia ser esse o objecto deste especial tipo de processo de apuramento de responsabilidades financeiras.
É que, se se enveredasse por tal caminho, estar-se-ia então a atribuir aos agentes da Administração uma função, como diz o Ministério Público nas suas alegações, ‘correctiva’ ou fiscalizadora da própria constitucionalidade das normas que lhe compete aplicar. Uma tal decisão relativa à inconstitucionalidade material, por violação daquele artigo 59º da CRP, apenas poderia aproveitar aos trabalhadores em causa, em processo próprio por eles intentado. No presente processo, tal juízo seria de todo irrelevante para os recorrentes, que são os agentes da Administração, pois que em relação a eles não se coloca a questão de saber se tais pagamentos evidenciavam uma reposição da justiça ou igualdade material, mas apenas a questão de saber se podiam os mesmos actuar da forma que o fizeram, perante os preceitos legais em causa.
[...] O que leva à conclusão já formulada a propósito da inconstitucionalidade orgânica, que é a da inutilidade do presente recurso, dada a insusceptibilidade de a decisão a proferir no mesmo produzir qualquer efeito útil na decisão recorrida, alterando-a ou modificando-a. O que tanto basta para que se não deva conhecer do presente recurso, também nesta parte.
[...]».
E o Tribunal concluiu:
«[...] o facto de os presentes autos se reportarem a um processo destinado a apurar a ocorrência de uma actuação ilegítima, por parte dos mesmos recorrentes, conduz necessariamente, como se sustentou na exposição do relator, ao não conhecimento do presente recurso.
É que, com efeito, não cabia aos recorrentes, enquanto agentes ou titulares de órgãos da Administração Pública, proceder à desaplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade, para mais quando se não tratava de uma inconstitucionalidade evidente, pelo que o eventual julgamento de inconstitucionalidade das normas impugnadas não poderia consequenciar o afastamento da respectiva responsabilidade financeira.
Assinale-se, aliás, que se aos ora recorrentes não seria lícito desaplicar as normas em causa com base na sua inconstitucionalidade material, ainda menos seria que o fizessem com base na sua inconstitucionalidade orgânica. E, assim sendo, a irrelevância do julgamento da questão de inconstitucionalidade tanto vale para a inconstitucionalidade material como para a inconstitucionalidade orgânica.
[...]».
Assim, entende-se como plausível que o Tribunal Constitucional, pelos fundamentos constantes do mencionado acórdão n.º 137/03, venha a não tomar conhecimento do presente recurso, por inutilidade.”
6. Decorrido o prazo, as partes não responderam.
7. Nestes termos, e pelas razões constantes do parecer da relatora, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em oito (8) unidades de conta, por cada um deles.
Lisboa, 2 de Julho de 2003 Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Luís Nunes de Almeida