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Processo n.º 492/02
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. e B. foram acusados pelo Ministério Público, no Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos, da autoria material de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, e da contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 48/96, de 15 de Maio, porquanto, tendo sido notificados pessoalmente, em 27 de Janeiro de 1999, dos despachos proferidos, em 4 de Setembro de 1998 e 10 de Dezembro de 1998, pelo Vice-Governador Civil do Porto, que determinaram o encerramento às 24 horas de estabelecimento de café pertencente a sociedade de que o primeiro arguido é sócio gerente, sendo o segundo arguido gerente do estabelecimento, sob pena de, não o fazendo, incorrerem na prática de crime de desobediência, os arguidos continuaram a encerrar o estabelecimento em causa para além da hora fixada, tendo perfeito conhecimento de que estavam a contrariar uma ordem que lhes havia sido dada por autoridade administrativa competente.
Na contestação, os arguidos – para além de impugnarem a existência de “ordem legítima”, elemento constitutivo do crime de desobediência, uma vez que interpuseram recurso contencioso de anulação do acto de redução do horário de funcionamento do estabelecimento em causa, recurso que veio a ser provido por sentença de 3 de Fevereiro de 2000 do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, e de negarem a existência de dolo – referiram, no artigo 22.º dessa peça processual:
“Do que se vem a afirmar retira-se uma impossibilidade jurídica e de facto de os arguidos serem condenados pelo crime de desobediência; contudo, se tal vier a suceder, o que apenas se admite no campo das meras hipóteses, desde já se afirma que tal improvável decisão violaria o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa na medida em que implicaria a derrogação de importantes garantias de defesa – conforme prescreve o n.º 1 – dado que faria tábua rasa da atitude dos arguidos, consubstanciada na interposição de recurso contencioso de anulação, de considerar ilegítima a ordem proferida pelo Vice-Governador Civil do Distrito do Porto, bem como a violação do disposto no n.º 2 do mesmo preceito constitucional, dado que configuraria a condenação do arguido sem que estivessem esgotados todos os meios de defesa ao seu alcance.”
Por sentença de 7 de Dezembro de 2000 do Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos foram os arguidos absolvidos da acusação da prática da contra-ordenação (por não se haver provado que o estabelecimento estivesse aberto para além das 02h00), foi o arguido B. absolvido da acusação da prática de crime de desobediência (por não se haver provado que fosse gerente do estabelecimento), e foi o arguido A. condenado, como autor material de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 45 dias de multa à taxa diária de 1200$00.
Esta condenação foi assim fundamentada:
“4. O Direito: Comete o crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.°, n.° 1, alínea b), do Código Penal «quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, ....se ... na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação».
São elementos do crime, por um lado, a existência de uma ordem formal e substancialmente legal ou legítima e, por outro, é necessário que a mesma dimane de autoridade ou funcionário competente.
A este propósito o Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão de 28 de Março de 1984 (Colectânea de Jurisprudência, ano IX, tomo 2, pág. 70), decidiu que o crime em apreço tem como requisitos: «...a ordem ou mandado legítimo, regularmente comunicado, emanado de autoridade competente, falta à sua obediência e intenção de desobedecer».
É o interesse administrativo do Estado em garantir a obediência aos mandados legítimos da autoridade em matéria de serviço e ordem pública que se pretende proteger.
No caso presente apurou-se que por despachos proferidos em 4 de Setembro de 1998 e 10 de Dezembro de 1998, pelo Vice-Governador Civil do Porto, foi determinado o encerramento às 24 horas do estabelecimento de café denominado «-------------------», sito na Rua ----------------, ---------,
------------, pertencente à firma «C.», da qual é sócio gerente o arguido A..
Este arguido foi notificado pessoalmente de tal decisão, em 27 de Janeiro de 1999, com a advertência de que deveria proceder ao encerramento do estabelecimento às 24 horas, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática do crime de desobediência.
Não obstante, o arguido A. continuou a encerrar o aludido estabelecimento para além da hora fixada, ou seja, das 24 horas.
Tinha perfeito conhecimento de que estava a contrariar uma ordem que lhe havia sido dada por autoridade administrativa competente. Ora, sendo assim, é manifesto que o arguido cometeu o crime de que vem acusado.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, não colhe o argumento invocado pelo arguido em contestação.
Vejamos porquê.
O arguido veio dizer que não praticou um crime de desobediência como constava na acusação uma vez que considerou a ordem emanada pelo Vice-Governador Civil do Distrito do Porto como «ilegítima».
Acrescentou que tal ordem foi impugnada no Tribunal Administrativo do Porto, através da interposição de um recurso contencioso de anulação do acto, que foi julgado procedente em primeira instância, embora ainda não tenha transitado em julgado.
No caso presente, existe uma ordem, regularmente comunicada, emanada de uma autoridade ou funcionário competente. Trata-se de um acto praticado no desempenho de uma actividade pública de administração.
Como refere Maia Gonçalves, em anotação a este artigo (no seu Código Penal Anotado), não é possível a eliminação deste crime, além do mais, porque isso poderia desarmar a Administração Pública. E mais adiante escreve:
«....admitir, sem restrições, o direito de desobedecer, seria permitir a anarquia na Administração e um fácil acesso a abusos, como a desobediência a ordens ilegais...».
Ora tal sucederia se os particulares pudessem desobedecer às ordens da Administração apenas porque não concordam com elas: cairíamos num caos, pondo em perigo o Estado de Direito que caracteriza o nosso sistema político.
O arguido tem todo o direito de não concordar com uma ordem de uma entidade administrativa, mas o que tem a fazer é tão-só recorrer da mesma, usando os meios legais que o Estado de Direito lhe põe ao dispor. A não ser assim, porque razão o arguido impugnou a ordem aqui em causa no Tribunal administrativo? Na sua tese não seria necessário; bastar-lhe-ia não cumprir a ordem e manter o seu estabelecimento aberto para além da hora que foi determinada.
Não podemos esquecer que a Administração goza do chamado privilégio de execução prévia. Escreve o Prof. Marcelo Caetano a este propósito, definindo o conceito de privilégio de execução prévia (cf. Manual de Direito Administrativo, vol. I, Almedina), que os órgãos administrativos têm autoridade para tornar certos e incontestáveis, para efeitos de execução, os direitos das pessoas colectivas de direito público, dispensando assim a fase declaratória que para os particulares reveste comummente a forma jurisdicional. E acrescenta:
«impugnados contenciosamente ou não, os actos executórios ficam desde logo sendo obrigatórios, salvo se tiverem sido suspensos. O seu conteúdo impõe-se à observância dos particulares a quem respeite. No caso, porém, de se não verificar essa observância, cumpre então à Administração passar à execução material compulsória».
Aliás, nesse sentido, a localização sistemática do tipo legal em apreço aponta para a solução contrária à defendida pelo arguido: o crime de desobediência encontra-se incluído no título V do Livro II do Código Penal, o qual tem como epígrafe: «Dos crimes contra o Estado».
O facto de o Tribunal Administrativo ter em primeira instância anulado o acto não impede, a nosso ver, a consumação do crime.
Em primeiro lugar, é bom não esquecer que a decisão em causa foi muito posterior à conduta do arguido. Em segundo lugar, como refere o Prof. Marcelo Caetano, os actos executórios ficam desde logo sendo obrigatórios, quer sejam impugnados contenciosamente ou não.
Veja-se, por exemplo, o caso de um arguido que se encontrava a aguardar o seu julgamento em liberdade e que vê a sua situação ser alterada, ouvindo a ordem do tribunal no acto da leitura da sentença que o mesmo deve aguardar o trânsito em prisão preventiva; a pergunta que se faz é esta: se o arguido não concordar com a decisão de mérito, pode sair do tribunal alegando apenas que a mesma não é justa ou legitima? Ora, neste caso, o Tribunal superior pode em sede de recurso vir a anular a decisão do tribunal de primeira instância, podendo até vir o julgamento a ser anulado. No entanto, nem por isso o arguido deixará de ir preso preventivamente para o estabelecimento prisional.
Evidentemente que essa decisão provém de um órgão judicial, mas com as necessárias adaptações poderia ser aqui aplicada. Existe uma decisão com que não se concorda, mas que até ser anulada ou alterada tem de ser respeitada.
Do mesmo modo, o condutor de um veículo, que ouve a ordem de um agente da PSP para retirar o veículo de um determinado lugar, não pode deixar de cumprir a ordem porque eventualmente entende que ali é permitido parar ou estacionar por esta ou aquela razão.
Muitos outros exemplos poderiam ser adiantados que demonstram outras situações como a dos autos e que não justificam a defesa do arguido.
Uma última nota para referir que não se podem esquecer os interesses e direitos dos outros cidadãos, nomeadamente, os vizinhos do estabelecimento em causa.
A intervenção da Administração terá tido em vista o justo equilíbrio entre o direito do arguido a explorar aquele bar e os interesses dos vizinhos, nomeadamente ao descanso.
Permitir o não acatamento da ordem da Administração seria algo certamente mal compreendido pelos vizinhos, que dificilmente compreenderiam essa ineficácia das entidades administrativas.
Acresce que a conduta é dolosa. O arguido sabia que incorria na prática de um crime e mesmo assim decidiu abrir o seu estabelecimento para além da hora que estava autorizada.
Como decidiu também o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão de 23 de Janeiro de 1985, neste caso é possível a prova do dolo através das próprias regras da experiência comum da vida, daquilo que constitui o princípio da normalidade.”
O arguido condenado interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, tendo, na respectiva motivação – para além de insistir na tese da inexistência quer de ordem ou mandado legítimo quer de dolo –, sustentado a violação do princípio da mínima intervenção do direito penal, e, por último, aduzido que:
“30.° – Do que se vem a afirmar retira-se uma impossibilidade jurídica e de facto de o presente recurso não merecer provimento; contudo, se tal vier a suceder, o que apenas se admite no campo das meras hipóteses, desde já se afirma que tal improvável decisão violaria o artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa na medida em que implicaria a derrogação de importantes garantias de defesa – conforme prescreve o n.° l – dado que faria tábua rasa da atitude do arguido, consubstanciada na interposição de recurso contencioso de anulação, de considerar ilegítima a ordem proferida pelo Vice-Governador Civil do Distrito do Porto, bem como a violação do disposto no n.° 2 do mesmo preceito constitucional, dado que configuraria a condenação de arguido sem que estivessem esgotados todos os meios de defesa ao seu alcance.
31.° – O que seria violação do preceito constitucional de que todos os arguidos se presumem inocentes até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
32.° – Dado ter por base, tal hipotética decisão, uma decisão não legítima e que, pelo competente Tribunal, foi posta em causa, não podendo o arguido, sob pena de violação dos princípios supra referidos, ser condenado com base em decisão a que foi retirado o requisito da legalidade ou legitimidade.”
Com correspondência ao assim aduzido, lê-se na conclusão
12.ª dessa motivação:
“12.° – Sob pena de violação dos n.°s 1 e 2 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa, existe uma manifesta impossibilidade jurídica e factual de o presente recurso não merecer provimento dado ser impossível a condenação, pela prática do crime de desobediência, que tem por base uma decisão que foi qualificada como ilegal, não sendo legalmente possível a condenação com base em decisão administrativa a que parece, precisamente, faltar o requisito da legalidade.”
Este recurso foi rejeitado, por manifesta improcedência
(artigo 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3 de Abril de 2002, com a seguinte fundamentação jurídica:
“II – Quanto à invocada inexistência de mandado legítimo.
Os actos administrativos são executórios logo que eficazes (artigo
149.º, n.° 1, do Código do Procedimento Administrativo); e são eficazes desde a data da sua prática, salvo nos casos em que a lei ou os próprios actos lhes atribuam eficácia retroactiva ou diferida (artigo 127.°, n.° 1, do Código do Procedimento Administrativo); e os actos administrativos que constituam deveres ou encargos para os particulares e não estejam sujeitos a publicação começam a produzir efeitos a partir da sua notificação aos destinatários (artigo 132.°, n.° 1, do Código do Procedimento Administrativo), sendo obrigatórios mesmo que sejam objecto de impugnação contenciosa.
Ora, no caso dos autos, existe uma ordem legítima, regularmente comunicada e emanada de uma autoridade competente: não houve violação dos n.°s
1 e 2 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa.
III – Quanto à invocada inexistência de dolo.
A sentença recorrida considerou provado que o arguido «tinha perfeito conhecimento de que estava a contrariar uma ordem que lhe havia sido dada por autoridade administrativa competente» e que «agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei».
Perante tal matéria de facto, tem de concluir-se que o arguido agiu com dolo (artigo 14.°, n.° 1, do Código Penal).
IV – Quanto à invocada violação do princípio da mínima intervenção do direito penal.
O artigo 5.°, n.° 2, alínea b), do Decreto-Lei n.° 48/96, de 16 de Maio, sanciona com coima o funcionamento de estabelecimento comercial fora do horário estabelecido.
O artigo 348.°, n.° 1, do Código Penal sanciona como autor de um crime de desobediência quem faltar à obediência devida a ordem legítima, regularmente comunicada e emanada de autoridade competente.
Os interesses protegidos pelos citados ilícitos, contra-ordenacional e penal, são claramente distintos, pois.
Ora, no caso dos autos, o recorrente não obedeceu à decisão administrativa que ordenou a redução do horário de funcionamento comercial até
às 24 horas, ao abrigo dos artigos 20.° e 21.° do Regulamento Geral sobre Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 251/87, de 24 de Junho, com as alterações resultantes do Decreto-Lei n.° 292/89, de 2 de Setembro, e artigos 30.° e 48.° do Anexo ao Decreto-Lei n.° 316/95, de 28 de Novembro.
Nos termos do artigo 420.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, o recurso é rejeitado sempre que for manifesta a sua improcedência.
Pelo que precede, o recurso terá que ser rejeitado nos termos do artigo 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.”
Contra este acórdão interpôs o recorrente A. recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por
último, pela Lei n.° 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), mencionando no respectivo requerimento de interposição do recurso que:
“Para tal indica como norma cuja inconstitucionalidade pretende seja apreciada pelo Tribunal Constitucional o artigo 348.º, n.° 1, alínea b), do Código Penal, interpretado no sentido de que é possível a condenação por crime de desobediência simples na situação em que o acto administrativo não acatado pelo ora recorrente foi já objecto de primeira apreciação por parte do Tribunal Administrativo de Círculo do Porto, que, através de sentença, procedeu à anulação de tal acto, decisão que viria ser confirmada, ainda que por motivos diversos, através de Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, no Processo n.º 46 145, da 1.ª Secção, 3.ª Subsecção.
Considera o recorrente violado, com tal interpretação, o disposto no artigo 32.°, n.°s l e 2, da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que o recorrente já suscitara na altura da apresentação da contestação à acusação formulada, bem como na motivação apresentada para sustentar o recurso da decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos.”
Neste Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações, que culminam com a formulação das seguintes conclusões:
“A – A interpretação conferida no douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto à alínea b) do n.° 1 do artigo 348.° do Código Penal viola os n.°s l e 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que, ao confirmar a decisão proferida pelo Tribunal de Comarca de Matosinhos, acarreta como consequência o facto de permitir a condenação pela prática de crime de desobediência a uma ordem que foi anulada judicialmente, em 1.ª instância, pelo Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, decisão posteriormente confirmada, ainda que por motivos diversos, pelo Supremo Tribunal Administrativo. B – Violação que ocorre na medida em que, numa primeira perspectiva, ao decidir no sentido em que o fez, não assegurou ao alegante todas as garantias de defesa, dado que, conforme parece ser confirmado pela redacção da epígrafe do preceito constitucional em análise: «Garantias de processo criminal» – e não
«Garantias do processo criminal» –, as garantias que deverão assistir a qualquer arguido em processo criminal deverão ser todas aquelas que o ordenamento jurídico comporte, e não apenas aquelas que estejam consagradas no Código de Processo Penal. C – Sendo a sanção penal a mais gravosa existente no ordenamento jurídico e existindo uma clara desproporção de forças entre quem acusa – o Estado – e quem
é acusado – um particular –, todas e quaisquer garantias devem ser concedidas e devidamente ponderadas, o que não sucedeu na interpretação conferida no acórdão objecto de recurso à norma do Código Penal que prevê o crime pelo qual o alegante foi condenado. D – Garantias que podem encontrar a sua consagração em diplomas diversos do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar, não devendo o critério da sua localização sistemática fundamentar uma menor ponderação das mesmas. E – Ora, a interpretação da norma penal em apreço fez tábua rasa da garantia utilizada pelo alegante – a interposição do recurso contencioso de anulação – o que origina a bizarra situação de ter sido o alegante condenado pela prática de crime de desobediência simples quando a ordem inobservada já tinha sido judicialmente anulada, com efeitos retroactivos, como é unanimemente defendido pela generalidade da doutrina e da jurisprudência. F – Pelo que a obrigação consignada no n.° l do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa não foi observada na interpretação conferida pelo douto acórdão da Relação do Porto à alínea b) do n.° l do artigo 348.° do Código Penal. G – Interpretação que viola ainda o n.° 2 do mesmo preceito da Constituição da República Portuguesa, na medida em que a decisão em análise, limitando-se a valorar única e exclusivamente o facto de o arguido ora alegante não ter cumprido o acto administrativo proferido pelo Vice-Governador Civil do Distrito do Porto, não retirou as devidas consequências do facto de tal acto ter sido judicialmente anulado. H – Ao decidir e interpretar como fez, olhando apenas à vertente formal do comando constitucional supra mencionado, não considerou a existência de circunstâncias, de factos que alteram substancialmente a configuração e significado da não observância daquela ordem, pelo que é inconstitucional a alínea b) do n.° l do artigo 348.° do Código Penal na interpretação seguida pelo douto acórdão da Relação do Porto por violação do princípio da presunção de inocência dos arguidos, permitindo-se a condenação pelo crime de desobediência simples a uma ordem que foi judicialmente anulada, com efeitos retroactivos, e que não pode produzir quaisquer efeitos jurídicos, muito mesmo servir de base a uma condenação penal.”
O Ministério Público contra-alegou, suscitando a questão prévia de não conhecimento do recurso e concluindo:
“1.° – A ratio decidendi do acórdão recorrido assentou na invocação e aplicação ao caso dos autos das normas constantes dos artigos 127.°, n.° l, 132.°, n.° l, e 149.°, n.° 1, do Código do Procedimento Administrativo, enquanto prescrevem a imediata vinculatividade e executoriedade dos actos administrativos, após a respectiva notificação aos particulares afectados, sendo os mesmos obrigatórios para os seus destinatários, ainda que sejam objecto de impugnação contenciosa.
2.º – No requerimento de interposição do recurso – que delimita irremediavelmente o seu objecto, em consonância com o princípio dispositivo – o recorrente não curou, porém, de especificar tais normas, substituindo a sua indicação pela referenciação de concretas vicissitudes processuais (aliás, nem sequer ponderadas na decisão recorrida) e obviamente desprovidas de carácter normativo.
3.º – Termos em que não deverá sequer tomar-se conhecimento do recurso interposto.”
Notificado, o recorrente respondeu, propugnando o improvimento da questão prévia, sustentando que “o objecto do presente recurso nunca seria delimitado pelos artigos 127.º, n.° 1, 132.º, n.° 1, e 149.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, dado o recorrente não pretender pôr em causa a constitucionalidade das referidas normas ou uma sua concreta interpretação”, mas que, “pelo contrário, a questão que delimita o presente recurso está em saber se a interpretação conferida pelo acórdão recorrido à alínea b) do n.° 1 do artigo 348.° do Código Penal viola ou não os n.°s 1 e 2 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa, na medida em que permite a condenação pela prática de crime de desobediência simples quando o acto administrativo não acatado foi judicialmente anulado, através de decisão transitada em julgado”.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
A admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – que foi o interposto pelo recorrente – depende da suscitação “durante o processo” da inconstitucionalidade da(s) norma(s) aplicada(s) pela decisão recorrida e cuja conformidade constitucional o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, esclarecendo o n.º 2 do artigo 72.º da mesma Lei que tal recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve
“lapso manifesto” do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações.
Só assim não será nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Expostos estes critérios, impõe-se concluir pela inadmissibilidade do conhecimento do presente recurso, por o recorrente não ter suscitado, durante o processo, por forma adequada, qualquer questão de constitucionalidade normativa, fosse ela concernente ao artigo 348.º do Código Penal ou aos artigos 127.º, n.º 1, 132.º, n.º 1, e 149.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo.
No requerimento de interposição do presente recurso, o recorrente referiu que suscitara a questão da inconstitucionalidade da impugnada interpretação do artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal, quer na contestação à acusação formulada, quer na motivação do recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos.
No entanto, na passagem pertinente daquela contestação, atrás transcrita, o recorrente imputa a violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição directamente à própria decisão judicial que eventualmente o viesse a condenar por crime de desobediência, quando refere que “se tal vier a acontecer, o que apenas se admite no campo das meras hipóteses, desde já se afirma que tal improvável decisão violaria o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa” (sublinhado acrescentado).
E a mesma formulação foi reproduzida na motivação do recurso penal interposto, nomeadamente no seu n.º 30.º, a que corresponde a conclusão 12.ª, atrás transcritos. Isto é: continuou o recorrente a imputar a violação da Constituição à decisão judicial condenatória, em si mesma considerada, ou a vicissitudes processuais relacionadas com a impugnação contenciosa do acto administrativo desacatado.
Em suma: nunca, antes de proferido o acórdão ora recorrido, foi colocada ao Tribunal da Relação do Porto, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, a questão da inconstitucionalidade da impugnada interpretação do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, sendo certo que a interpretação acolhida nesse acórdão não se pode rotular de inesperada, pois foi meramente confirmativa da já adoptada na 1.ª instância.
Impõe-se, assim, a conclusão de que, por falta do apontado requisito de suscitação adequada de uma inconstitucionalidade normativa antes de proferida a decisão recorrida (suscitação que só foi feita, extemporaneamente, no requerimento de interposição do presente recurso e nas respectivas alegações), não há que conhecer do objecto do recurso.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
8 (oito) unidades de conta.
Lisboa, 1 de Julho de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Benjamim Silva Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos