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Processo nº 256/01
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 777, foi proferida a seguinte decisão sumária:
1. T... e F... recorreram para o Tribunal Constitucional (por requerimento de fls.770-771), ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Março de 2001 (de fls. 748 e segs.), pretendendo '[v]er aplicada a inconstitucionalidade dos artºs 433º e 410º, nºs 2 e 3, ambos do Código de Processo Penal, na interpretação feita pelo S.T.J., na medida em que determina que o recurso para o Supremo visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, violando as garantias de defesa do artº 32º, nº 1 da C.R.P.'.
Tendo sido condenados por acórdão do Tribunal Colectivo do Círculo Judicial de Faro nas penas de 5 e 6 anos de prisão, respectivamente, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo
1º do artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, os arguidos recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento, designadamente, em erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal), e, implicitamente, na existência de contradição entre factos dados como provados, ou entre estes e os dados como não provados.
O Supremo Tribunal de Justiça, porém, entendendo que o conhecimento dos recursos cabia à 2ª instância, por se questionar matéria de facto, enviou-os para o Tribunal da Relação de Évora, que por acórdão de 7 de Novembro de 2000
(de fls. 644 e segs.), os julgou improcedentes, e confirmou, nessa parte, o acórdão recorrido.
2. Inconformados, os arguidos T... e F... recorreram então para o Supremo Tribunal de Justiça. Fundamentaram os recursos, em síntese, na existência de erro notório na apreciação da prova, em violação do disposto no artigo 410º, nº
2, al. c) do Código Processo Penal (v. designadamente as conclusões 5ª, 6ª, 10ª e 20ª), na pretensão de atenuação especial da pena, com suspensão da sua execução, e na inconstitucionalidade material de determinadas normas do Código de Processo Penal. Quanto a este último ponto, entendem os recorrentes que o 'sistema de recurso perfilhado pelo CPP impede quanto aos limites cognitivos que se proceda a um reexame da matéria de facto pelo Tribunal da Relação', não se permitindo assim
'a aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição (...)'. Deste modo, afirmam que o 'artº 430º, do CPP conjugado com o artº. 410º, nº 2 do mesmo diploma, na medida em que limita aqueles poderes de cognição do Tribunal da Relação, não garante o direito ao recurso em matéria de facto, infringindo os mais básicos e elementares garantias de defesa consagrados no artº 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (...), consequentemente o artº 430º, nº 1 está ferido de inconstitucionalidade material'. Concluem, todavia, do seguinte modo:
'35º
Que com o actual sistema de recursos consagrados nos artºs 433º e
410º, nºs 2 e 3, ambos do CPP, os poderes de cognição do STJ limitam-se a matéria de direito, uma espécie de 'revista ampliada'.
36º
Está vedada, por esta via, qualquer reapreciação crítica da matéria de facto.
37º
Não há assim recurso em matéria de facto.
38º
Tais normas consagradas naqueles dois preceitos – artºs 433º e 410º, nºs 2 e 3 – infringem o duplo grau de jurisdição consagrados no artigo 32º, nº 1 da CRP.'
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de que agora vêm recorrer os arguidos, pronunciou-se, quanto à invocação de erro notório na apreciação da prova, nos seguintes termos:
'Todavia, como esta questão já foi directa e expressamente resolvida pelo Tribunal da Relação no acórdão recorrido, não pode este Supremo Tribunal voltar a apreciá-la, enquanto questão meramente de facto.
Por um lado o nosso ordenamento jurídico não consente três graus de jurisdição no domínio da matéria de facto.
Por outro, como resulta do comando legal do artigo 434º do Código de Processo Penal, o recurso para este Supremo Tribunal visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, demais quando a matéria de facto foi expressamente decidida pelo Tribunal da Relação, porque impugnada directamente.
Este Supremo Tribunal apenas poderá apreciar se se verificou violação dos dispositivos e poderes legais de que a Relação dispõe e pode utilizar, ou por os não ter utilizado ou porque, através desse uso, possibilitou a existência de erro grosseiro na apreciação da prova – e isto porque ainda se está no domínio do exame de direito'.
Em conformidade com este entendimento, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça ponderou a matéria de facto dada como provada e entendeu que o Tribunal da Relação não violou 'qualquer dos dispositivos e poderes legais de que dispunha e podia utilizar, tendo, antes, feito bom uso destes dispositivos e poderes por forma a concluir-se pela inexistência de qualquer erro notório na apreciação da prova'.
Pelo que toca à medida da pena, o Supremo Tribunal de Justiça julgou parcialmente procedente a pretensão dos recorrentes, condenando os arguidos T... e F... nas penas de 3 e 4 anos de prisão respectivamente.
Por último, quanto à questão de inconstitucionalidade, afirmou o acórdão ora recorrido, designadamente, o seguinte:
'Com a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores e do Tribunal Constitucional, entende-se serem os preceitos invocados conformes à Constituição.
De um lado, garantem estes preceitos – os artigos 430º e 410º, nº 2, em conjugação com os comandos dos artigos 412º e 431º, todos os artigos do Código de Processo Penal – uma ampla controvérsia e discussão no domínio da matéria de facto quando impugnada por via de recurso, deste modo acatando o preceito constitucional do artigo 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, na sua redacção actual, após a última revisão – ao dispor que 'o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso', aceitando mesmo o seu alcance de um duplo grau de jurisdição.
De outro, possibilitam aqueles preceitos, ainda em razão desta garantia constitucional, a renovação da prova, com o consequente reenvio do processo, com uma nova composição do Tribunal, para uma correcta e justa decisão em matéria de facto Ainda, visam aqueles preceitos, sem constrangimentos que os tornem imperativos, e nesta perspectiva teleológica deves ser considerados e accionados, a demanda da verdade história para uma boa realização da justiça. Deste modo e tal como vem decidindo a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores e o Tribunal Constitucional, não estão as normas dos artigos 433º e
410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, feridas de inconstitucionalidade material.'
3. Como se referiu anteriormente, os recorrentes visam o julgamento de
'inconstitucionalidade dos artºs 433º e 410º, nºs 2 e 3, ambos do Código de Processo Penal, na interpretação feita pelo S.T.J., na medida em que determina que o recurso para o Supremo visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, violando as garantias de defesa do artº 32º, nº 1 da C.R.P.'. São do seguinte teor as disposições impugnadas do Código de Processo Penal
(revisto pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto):
'Artigo 433º Outros casos de recurso Recorre-se ainda para o Supremo Tribunal de Justiça noutros casos que a lei especialmente preveja.
Artigo 410º Fundamentos do recurso
1....
2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c. Erro notório na apreciação da prova.
3. O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.'
4. Resulta da lei, e tem sido uniformemente afirmado por este Tribunal, que o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 se destina à apreciação da conformidade constitucional de normas efectivamente aplicadas na decisão recorrida, em termos tais que um eventual julgamento possa projectar-se utilmente no sentido da decisão recorrida.
O problema de constitucionalidade suscitada pelos recorrentes assenta na violação do direito ao recurso em matéria de facto e do princípio do duplo grau de jurisdição também em matéria de facto. Todavia, os recorrentes ora referem a inconstitucionalidade ao 'artº 430º do CPP conjugado com o artº. 410º, nº 2 do mesmo diploma', situando a questão no âmbito do recurso para o Tribunal da Relação (neste sentido, v. o texto da motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a fls. 712-718; cf. ainda o trecho já transcrito do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça), ora imputam a violação da Lei Fundamental aos artigos 433º e 410º, nºs 2 e 3 do mesmo Código, referindo-se ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e impugnando a limitação dos poderes decisórios deste Tribunal (assim, as conclusões nºs 35º a 39º da motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a fls. 728-729, bem como o já citado requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional).
Cabe ao recorrente delimitar o objecto do recurso para o Tribunal Constitucional no respectivo requerimento de interposição. Assim, é em função de tal delimitação que deve este Tribunal pronunciar-se sobre a respectiva admissibilidade, e, sendo o recurso de admitir, sobre a sua procedência.
5. Sucede que a questão de constitucionalidade normativa delimitada no citado requerimento de interposição de recurso assenta num equívoco: o de que, no sistema de recursos resultante da recente revisão do Código de Processo Penal, o Supremo Tribunal de Justiça deveria conhecer de matéria de facto, sob pena de violação do direito fundamental ao recurso em matéria de facto, e do princípio do duplo grau de jurisdição na mesma matéria. Tal equívoco é evidente, já que a competência para conhecer dos recursos das decisões proferidas em primeira instância cabe à Relação (artigo 427º), salvo, na parte que ora releva, 'dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito' (alínea d) do artigo 432º). Ora 'as relações conhecem de facto e de direito' (nº 1 do artigo
428º), o que leva a que possa ser modificada a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto 'se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base' (alínea a) do artigo 431º), 'se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do artigo 412º, nº
3' (alínea b) do artigo 431º), ou 'se tiver havido renovação da prova' (alínea c) do mesmo artigo), cujas condições estão previstas no artigo 430º. O carácter manifesto de tal equívoco resulta ainda da circunstância de os recorrentes terem referido a inconstitucionalidade também ao artigo 433º do Código de Processo Penal. Na verdade, só com base no sistema de recursos anterior à Reforma de 1998 – em que dos acórdãos finais do tribunal colectivo se recorria directamente para o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 432º, alínea c)
– podia discutir-se a limitação dos poderes desse Tribunal em matéria de facto
(artigo 433º, na sua redacção original, conjugado com o artigo 410º), como via para confrontar tais poderes com o sentido e alcance do princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto. Na sua actual redacção, o artigo 433º, que antes se transcreveu, nada tem que ver com o caso dos autos. Resulta do exposto, por um lado, que os recorrentes não vêm questionar, no recurso para o Tribunal Constitucional, os poderes do Tribunal da Relação em matéria de facto, razão bastante para que não possa tal questão ser agora apreciada. Por outro lado, se o que está em causa é a limitação dos poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de facto, questão invocada nas conclusões da motivação do recurso para aquele Tribunal e no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, então deveria ter sido impugnada a constitucionalidade do artigo 434º, que é a disposição que hoje rege, em conjugação com os nºs 2 e 3 do artigo 410º, tais poderes de cognição. Um entendimento rigoroso dos pressupostos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional levaria, por isso, à impossibilidade do conhecimento do recurso, por não ter sido adequadamente suscitada a questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada. Em qualquer caso, ainda que se releve, à conta de um lapso de escrita, a invocação da inconstitucionalidade do artigo 433º, em lugar do artigo 434º (que dispõe que, 'sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nºs 2 e 3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito'), nem por isso a questão de violação da Constituição faria sentido, nos termos que a colocam os recorrentes, como já se deixa perceber pelo que fica dito. É que a apreciação de uma eventual inconstitucionalidade por infracção do direito ao recurso em matéria de facto pressuporia impugnar as normas que, no actual sistema, visam assegurar tal recurso – as normas relativas ao recurso para a Relação em matéria de facto –, já que não decorre obviamente da Constituição um direito ao triplo grau de jurisdição, ou ao duplo recurso. Deste modo, afigura-se manifestamente infundada a questão de inconstitucionalidade suscitada pelos recorrentes (ainda que referida às disposições conjugadas dos artigos 434º e 410º, nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal revisto). Acresce que a jurisprudência deste Tribunal sempre considerou (embora sem unanimidade) que não violavam o direito ao recurso as normas que, na versão inicial do Código de Processo Penal, limitavam os poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça, num sistema em que se recorria directamente para esse Tribunal dos acórdãos finais do tribunal colectivo, mesmo quando se visasse o reexame da matéria de facto (cfr. acórdão nº 573/98, aprovado em Plenário, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 41º, 133 e segs.). Por evidente maioria de razão, num sistema em que tais decisões são recorríveis para a Relação (que conhece de facto e de direito), quando não visam exclusivamente o reexame da matéria de direito, tem de se entender que tais normas não violam o mencionado direito ao recurso.
6. Nestes termos, estão reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, por ser manifestamente infundada a questão de inconstitucionalidade suscitada.
Assim, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que toca à questão de constitucionalidade. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 6 ucs por cada um.
2. Inconformados, T... e F... reclamaram para a conferência, sustentando que não deveria ter sido proferida uma decisão sumária, porque esta forma de decidir
'deve ser circunscrita aos casos em que esteja suportada pela jurisprudência', sob pena de se limitarem os direitos dos recorrentes. Para além disso, discordam do sentido da decisão porque consideram que 'quer no sistema anterior quer no actual o direito de recurso em matéria de facto não tem aplicação plena' e que não é possível afirmar que 'o nosso ordenamento jurídico realize o ditame constitucional que consagra o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto'. Assim, os 'poderes do Tribunal da Relação em matéria de facto são limitados – artº 430º, nº 1 do Código de Processo Penal', e os do Supremo Tribunal de Justiça também, pois se resumem 'aos casos previstos no artº 410º, nºs 2 e 3 do CPP'. E conclui que a sua reclamação deve ser atendida e que 'deve ser declara a inconstitucionalidade dos artºs 434º e 410º, nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal'. Respondendo à reclamação, o Ministério Público veio dizer que não tem sentido pretender que a Constituição consagre qualquer direito a um triplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto e que, portanto, se verificavam, no caso, os pressupostos necessários para o julgamento do recurso de constitucionalidade através de decisão sumária, 'face à clara insubsistência e total desrazoabilidade da tese dos recorrentes'.
3. E, na verdade, a reclamação não pode ser deferida. Com efeito, sendo manifestamente infundado o recurso – pelas razões constantes da decisão reclamada, atrás transcrita e que se não repetem –, o nº 1 do artigo
78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, prevê que o mesmo possa ser julgado pela via utilizada, a da decisão sumária. Os recorrentes, aliás, não contestam que seja manifestamente infundado o seu recurso, uma vez que apenas afirmam que das garantias constitucionais de defesa em processo penal (nº 1 do artigo 32º da Constituição) decorre a exigência de um duplo grau de jurisdição, mas não de um triplo grau, como seria necessário para que pudesse ser viável. Apenas se acrescenta agora que os limites impostos ao tribunal da relação constantes do nº 1 do artigo 430º do Código de Processo Penal se referem, apenas, à renovação da prova, e não à limitação dos seus poderes de cognição da matéria de facto em geral, como parecem afirmar os reclamantes. Assim, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão sumária. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs por cada um.
Lisboa, 11 de Maio de 2001 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida