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Proc. nº 288/2003
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que figuram como recorrente A. e como recorridos o Ministério Público e B., foi proferida Decisão Sumária, no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, em virtude de a questão de constitucionalidade não ter sido suscitada durante o processo e de a dimensão normativa impugnada não ter sido aplicada pela decisão recorrida (cf. fls. 194 e ss.). A. vem agora deduzir reclamação, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, concluindo o seguinte:
1.ª A dimensão normativa sindicada neste recurso foi aplicada pelo STJ no seu acórdão recorrido, tal como o havia sido pelo Tribunal da Relação do Porto no acórdão de que o assistente recorreu para o STJ, pois (i) se o STJ concluiu que estaríamos não no domínio de uma reserva mental de natureza civil e não perante um artifício fraudulento típico do crime de burla (ii) foi porque relevou as normas incriminatórias em análise neste recurso - o artigo 313° do Código Penal de 1982 e o artigo 217° do que lhe sucedeu [conjugado com o artigo 224° do CCv]
- numa dimensão concreta que legitima tal conclusão: o que está em causa neste recurso é o acto do legislador ao ter editado tais normas jurídicas com tal dimensão concreta.
2.ª O reclamante cumpriu de acordo com o ónus a que estava adstrito em função do estatuído na alínea b) do n.º 1 do artigo 70° da Lei n.º 28/82, de 15.11, pois que preveniu a questão da constitucionalidade «durante o processo», concretamente na conclusão 10ª da motivação do recurso que interpôs do acórdão condenatório prolatado pela primeira instância.
3.ª O reclamante não tendo recorrido de tal acórdão, pois que foi por ele absolvido - e faltava-lhe, assim, interesse em agir - não podia reiterar tal questão.
4.ª O reclamante também não o podia fazer na resposta que ofereceu ao recurso que o assistente - desacompanhado do MP - interpôs de tal recurso, pois que nas conclusões de tal recurso o assistente (i) não só não abordou a dimensão normativa concreta da norma jurídica em causa, nomeadamente o artigo 313° do Código Penal de 1982 e o artigo 217° do que lhe sucedeu [conjugado com o artigo
224° do CCv] (ii) como, em decorrência lógica disso mesmo, não consignou como questão integradora do objecto do recurso, o problema da desconformidade daquelas normas jurídicas concretas, naquela concreta dimensão normativa, com a Lei Fundamental.
5.ª Suscitada que estava a questão da inconstitucionalidade durante o processo, mormente no recurso interposto pelo reclamante para o Tribunal da Relação, ela estava configurada e havia sido, aliás resolvida - em sentido desfavorável- por este Tribunal, pelo que era uma questão relevante de que o STJ tinha aliás conhecimento, pois que a recusa de aplicação de normas inconstitucionais é um dever oficioso dos tribunais [artigo 204° da CRP] e não decorre de arguição pelas partes.
6.ª O artigo 70°, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15.11, na dimensão normativa concreta que está a ser aplicada pela decisão sumária, é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 32°, n.º 1 e 280°, n.º 1 , alínea b) ambos da Constituição.
7.ª Nestes termos, não existe qualquer obstáculo processual que precluda o prosseguimento do recurso; para que possa ser julgada a sua substância e restituídas as normas incriminatórias à sua dimensão normativa compatível com a Constituição.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação. B. pronunciou-se igualmente no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar.
2. Na Decisão Sumária sob reclamação considerou-se não ter havido expressa equiparação da reserva mental civilista ao artifício fraudulento característico da burla. O reclamante sustenta, porém, que a dimensão normativa impugnada coincide com a dimensão normativa aplicada pela decisão recorrida, transcrevendo passagens do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, onde se apela, citando Almeida Costa, ao critério da boa fé objectiva, para proceder à distinção entre a reserva mental e o artifício fraudulento. Ora, o acórdão recorrido refere, de facto, o critério da “boa fé objectiva”, quando procura distinguir a reserva mental civilista do artifício fraudulento característico da burla. O reclamante parece encontrar neste ponto o fundamento do seu entendimento, segundo o qual o tribunal a quo equiparou a reserva mental ao artifício fraudulento (ou fez abranger aquela por este). Contudo, na lógica da decisão recorrida a referência a esse critério, à qual se segue a invocação de doutrina e de vária jurisprudência, leva à conclusão expressa de que, in casu, não se trata de mera reserva mental civilista (como se realçou na Decisão Sumária reclamada). Ao contrário do que sustenta o reclamante, não procedeu o Supremo Tribunal de Justiça à equiparação explícita (como se referiu) da reserva mental civilista ao artifício fraudulento, pelo que não procedem as considerações do reclamante.
3. Na Decisão Sumária reclamada considerou-se, porém, outro fundamento para o não conhecimento do objecto do recurso. Esse fundamento foi a não suscitação perante o tribunal a quo da questão de constitucionalidade normativa que se pretende ver apreciada, como exige o artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional. O reclamante, quanto a tal questão, refere que, nas contra-alegações no âmbito do recurso interposto pelo assistente, não tinha de suscitar tal questão, uma vez que a mesma não tinha sido suscitada nas conclusões das alegações de recurso pelo assistente. Ora, nas alegações do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o assistente pugnou expressamente pela condenação do arguido pela prática do crime de burla
(pelo qual este veio a ser condenado pelo Supremo Tribunal de Justiça), sustentando um entendimento ao qual subjaz precisamente a dimensão normativa que o reclamante considera ser inconstitucional (cf. fls. 1901 e ss., nomeadamente
1903, onde se afirma: “essa intenção, que civilisticamente tem o nome de reserva mental, e penalmente se chama dolo”). O ora reclamante foi, portanto, confrontado com a questão que pretende ver apreciada (e que havia suscitado perante o Tribunal da Relação do Porto), podendo, e nessa medida devendo, suscitar as questões de constitucionalidade que considerasse pertinentes no âmbito do recurso interposto pelo assistente para o Supremo Tribunal de Justiça. O reclamante afirma que não tinha interesse em agir, uma vez que o assistente não havia colocado a questão. É manifesto que o assistente é que não tinha interesse em suscitar a inconstitucionalidade da interpretação normativa que lhe era favorável (e que ele pretendia ver aplicada). O reclamante sustenta, ainda, a inconstitucionalidade do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, na medida em que exigiria
“reiteradas prevenções durante o processo da questão de constitucionalidade”. Contudo, a norma que expressamente fundamenta a exigência da suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida é a do artigo 72º, nº 2, da mesma Lei, que o prevê explicitamente desde a redacção da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, pelo que as considerações desenvolvidas (que se revelam improcedentes, pois nenhum preceito constitucional proíbe a imposição do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal a quo, imposição que visa permitir ao tribunal recorrido pronunciar-se sobre a questão) são inúteis, pois não se referem à norma que fundamentou a decisão. Assim, mesmo admitindo que a dimensão normativa que o reclamante pretende ver apreciada tenha sido aplicada pela decisão recorrida (o que, como se demonstrou, o tribunal a quo não assumiu, tendo mesmo expressamente afirmado o contrário), é manifesto que a questão de constitucionalidade não foi suscitada durante o processo de modo adequado, tendo sido “abandonada” pelo recorrente e não submetida a apreciação do tribunal recorrido, pelo que não se verificam os pressupostos processuais do recurso interposto.
4. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 18 de Junho de 2003 Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos