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Proc. nº. 81/03
1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A. foi condenado em processo contra-ordenacional a pagar uma coima de 20 000 euros, por violação do disposto nos artigos 27º, nº. 1 e 33º, ponto 2 do Regulamento de Resíduos Sólidos e de Comportamentos Poluentes do Concelho do Machico.
Inconformado com tal decisão administrativa, o arguido dela recorreu para o Tribunal Judicial de Santa Cruz que, por sentença, recusou aplicar a norma regulamentar em causa, por a considerar organicamente inconstitucional e anulou a decisão impugnada.
O Ministério Público interpôs recurso obrigatório da decisão ao abrigo do artigo
70º, nº. 1 , alínea a) da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo que o Tribunal aprecie a constitucionalidade das referidas normas (artigos 27º alínea b) e 33º ponto 2 do citado Regulamento.
Admitido o recurso, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal apresentou alegações que concluiu como segue:
“1º - Não se insere no âmbito do regime geral do ilícito contra-ordenacional a tipificação das diferentes contra-ordenações, nenhum obstáculo se verificando no que respeita à sua previsão ou criação em diplomas legais, desprovidos de credencial parlamentar, ou regulamentar, mesmo de índole local – pelo que não é inconstitucional a norma do artigo 27º, alínea b) do Regulamento de Resíduos Sólidos da Câmara do Machico.
2º - Porém, já se inclui naquele regime geral a definição dos limites máximo e mínimo das coimas aplicáveis às contra-ordenações, não podendo exceder-se o que está previsto na respectiva lei-quadro, vigente à data do cometimento da infracção.
3º - Deste modo, a norma sancionatória constante do artigo 33º, nº 2, do referido regulamento será parcialmente inconstitucional, na medida em que a aplicação do montante máximo, ali estabelecido em função da quantidade de entulhos ilicitamente despejados, possa exceder o estabelecido na respectiva lei-quadro (no caso, o nº 2 do artigo 29º da Lei das Finanças Locais, a Lei nº.
42/98).
4º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, em consonância com o
âmbito da inconstitucionalidade referida nas antecedentes conclusões.”
Contra-alegou o arguido, concluindo:
“1) O Regulamento de Resíduos Sólidos da Câmara Municipal de Machico criou um novo tipo de ilícito contra-ordenacional – art. 27, al. b) do mencionado Regulamento – diverso dos regimes legais gerais, matéria da competência exclusiva da Assembleia da República, sem prejuízo de autorização ao Governo.
2) Estabeleceu um novo regime sancionatório desobedecendo à respectiva lei-quadro, nomeadamente no que concerne à definição dos limites máximos e mínimos das coimas aplicáveis às contra-ordenações.
3) Deste modo, as normas dos arts. 27 al. b) e 33, n.º 2 do Regulamento Camarário encontram-se feridas de inconstitucionalidade orgânica, por violarem o art. 168, nº. 1, al. d) da Constituição da República Portuguesa bem como o estabelecido na respectiva lei-quadro (no caso o n.º 1 do art. 17 do D. Lei nº. 433/82 de 27.10). Termos em que deverá improceder o presente recurso, em virtude da inconstitucionalidade da norma regulamentar aplicada, mantendo-se a decisão do Tribunal a quo.”
Cumpre apreciar e decidir.
2 – Constitui objecto do presente recurso a questão de constitucionalidade das normas dos artigos 27º, alínea b) e do ponto 2 do artigo 33º do Regulamento de Resíduos Sólidos e de Comportamentos Poluentes do Concelho do Machico, enquanto tipificam como contra-ordenação o despejo de entulhos de construção civil ou de terras sem licença municipal e punem esta conduta com coima de 30 000$00 a 90
000$00 por metro cúbico ou fracção.
Dispõe o artigo 27º, alínea b) do citado Regulamento que é proibido no Município do Machico despejar entulhos de construção civil ou terras em qualquer terreno privado sem prévio licenciamento municipal, consentimento do proprietário e sem prejuízo de terceiros.
O artigo 33º, ponto 2 do mesmo Regulamento estabelece a punição para a referida conduta, prevendo a aplicação de uma coima de Esc. 30 000$00 a 90 000$00 por metro cúbico ou fracção e com a obrigação de os responsáveis procederem à remoção dos entulhos no prazo máximo de 3 dias, findo o qual é aplicado um agravamento de 50% por cada dia de prolongamento do referido prazo.
3 – O tribunal a quo deu como provada matéria de facto subsumível àquele enquadramento legal, não tendo sido possível determinar a quantidade exacta de entulhos, visto que se deu como provado que o arguido “(...) procedeu a diversas descargas de terras e entulhos e outros ...”
Sobre o disposto nas citadas normas regulamentares, entendeu o tribunal “a quo”:
“Nos termos do disposto no art. 168º nº 1 al. d) da Constituição da República Portuguesa é da competência exclusiva da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o regime geral da punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo. O Governo pode legislar sem necessidade de autorização da Assembleia da República, definindo ilícitos contra-ordenacionais e as respectivas coimas, desde que se enquadre no âmbito da moldura prevista na lei-quadro. Ora lei quadro nesta matéria é o Decreto-Lei nº. 433/82, de 27.10, cujo art. 17º prevê os limites sancionatórios. Assim, conforme já foi decidido por este Tribunal, não só estava vedada à Câmara Municipal a criação de novos ilícitos contra-ordenacionais, como lhe estava vedada a fixação do valor da coima em função do volume de resíduos, sem qualquer limite máximo conforme estipula a lei geral das contra-ordenações.
É certo que o regime geral das contra-ordenações prevê como limite máximo de coima aplicável às pessoas colectivas o valor de Esc. 9.000.000$00 e que a decisão administrativa não ultrapassou tal valor ... No entanto, a decisão administrativa não pode ser aproveitada não só porque a legislação que aplicou se encontra ferida de inconstitucionalidade orgânica, como também porque ao fixar a coima a autoridade administrativa não teve em conta a baliza legal que fixa o mínimo e o máximo das coimas, o que desde logo desvirtua a graduação da sanção. Assim, concluindo-se pela inconstitucionalidade orgânica da norma regulamentar aplicada, forçosa se mostra a revogação da decisão administrativa”.
4 – O artigo 168º, nº. 1, alínea d) da Constituição da República Portuguesa reserva à competência exclusiva da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o regime geral dos ilícitos de mera ordenação social e respectivo processo.
O Governo pode criar, alterar e/ou eliminar contra-ordenações e estabelecer as correspondentes coimas, com estrita observância desse regime geral e dos limites aí definidos.
Mas pode legislar sem necessidade de autorização da Assembleia da República fora desse regime geral, isto é, sobre tudo o que não seja a definição da natureza do ilícito, dos tipos de sanções aplicáveis e dos seus limites.
É esta a jurisprudência do Tribunal Constitucional que se tem repetidamente pronunciado sobre a questão das competências da Assembleia da República e do Governo em matéria do ilícito de mera ordenação social (v.g., entre muitos outros, Acórdão nº. 56/84 in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 3º, pág.
153; Acórdão nº. 74/95 in Diário da República, II Série, de 12.06; Acórdão nº.
110/95, in Diário da República, II Série, de 21.04).
Neste último aresto, o Tribunal (chamado a pronunciar-se numa situação semelhante à dos presentes autos) apreciou a constitucionalidade de normas do Regulamento dos Resíduos Sólidos da Cidade de Lisboa constante de Edital Camarário nº. 112/90, in Diário Municipal de 28.12.1990, que puniam a contra-ordenação consistente no despejo de entulhos de construção civil em qualquer área pública daquele município com uma coima com um limite mínimo de
(então) 40 000$00 por metro cúbico ou fracção.
Aí se escreveu:
“Este Tribunal vem considerando integrar-se na competência legislativa concorrente da Assembleia da República e do Governo a criação ex novo de contra-ordenações ou a conversão em contra-ordenações de anteriores contravenções puníveis com pena não restritiva de liberdade e, bem assim, a fixação da respectiva punição.
Quanto a este último ponto, porém, tem-se entendido que, sob pena de inconstitucionalidade, o Governo não pode ultrapassar o regime geral de punição fixado no Decreto-Lei nº 433/82, o que significa que não pode fixar à coima um limite mínimo inferior nem um limite máximo superior aos fixados no artigo 17º daquela lei-quadro. Pode, no entanto, fixar às coimas limites mínimos superiores ou limites máximos inferiores aos fixados pelo mencionado artigo 17º
(cf., neste sentido, os Acórdãos deste Tribunal nºs. 305/89, 428/89, 324/90,
435/91, 447/91 e 314/92 - publicados no Diário da República, 2ª série, de 12 de Junho e 15 de Setembro de 1989, 19 de Março de 1991, 24 de Abril de 1992, 1ª série de 11 de Janeiro de 1992 e 2ª série de 1 de Março de 1993, respectivamente
- e os Acórdãos nºs. 355/92, 385/93 e 424/93, ainda inéditos). O mesmo raciocínio é aplicável às coimas estabelecidas pelas autarquias no
âmbito dos seus poderes de normação, havendo apenas que ter em conta (quanto ao limite máximo) o preceituado no artigo 21º da lei nº 1/87, de 6 de Janeiro, atrás citado.”
Desta jurisprudência, que aqui se reitera, resulta, desde logo, e em contrário do decidido, que a Câmara Municipal do Machico tem competência para aprovar um regulamento onde se preveja como contra-ordenação o despejo de entulhos de construção civil ou terras em terrenos de propriedade privada sem prévio licenciamento municipal, consentimento do proprietário e sem prejuízo de terceiros, a tal se não opondo o disposto no artigo 168º nº 1 alínea d) da Constituição.
Trata-se, aliás, de uma regulamentação na área da competência das autarquias - o Decreto-Lei nº. 310/95, de 20 de Novembro, estabelecia, no seu artigo 5º, alínea a), que competia às Câmaras Municipais assegurar a gestão dos resíduos urbanos na qual se incluem as operações de respectiva remoção, transporte, tratamento, valorização e eliminação, autocontrolo destas operações e vigilância dos locais de descarga depois de encerrados e, com o Decreto-Lei nº 239/97, de 9 de Setembro, que estabeleceu novas regras nesta matéria, foi mantida a competência dos municípios na execução do plano de gestão de resíduos (urbanos) e atribuída, no artigo 5º, nº 2, alíneas a) e c), a responsabilidade pelo destino final a dar a tais resíduos.
Mas da mesma jurisprudência resulta igualmente, como se viu, que o Governo ou as autarquias não podem fixar, sem autorização da Assembleia da República, um limite mínimo da coima aplicável inferior ao que encontra estabelecido na lei geral ou um limite máximo que exceda o previsto na mesma lei.
Ora, no caso, o regime financeiro dos municípios e das freguesias consta da Lei nº. 42/98, de 6 de Agosto, Lei das Finanças Locais, em cujo artigo
29º, nº. 1 se estabelece que a violação de posturas e de regulamentos de natureza genérica e execução permanente das autarquias constitui contra-ordenação sancionada com coima.
E, sobre os limites da coima, estabelece o artigo 29º, nº. 2 que o limite máximo não pode ser superior a 10 vezes o salário mínimo nacional mais elevado, nem exceder o montante das coimas que forem impostas pelo Estado para contra-ordenação do mesmo tipo.
À data da prática dos factos, o salário mínimo nacional – uniformizado nos termos do Decreto-Lei nº. 14-B/91, de 9 de Janeiro, para os sectores da agricultura, pecuária, silvicultura, comércio e serviços, a partir de 1 de Janeiro de 1991 – ascendia a 348 euros, de harmonia com o disposto no artigo 1º do Decreto-Lei nº. 325/2001, de 17 de Dezembro, diploma que aprovou os novos valores do salário mínimo nacional para vigorarem a partir de Janeiro de
2002.
Assim, com observância da Lei das Finanças Locais, nunca o limite máximo da coima aplicável prevista no Regulamento de Resíduos Sólidos e de Comportamentos Poluentes do Concelho do Machico poderia exceder 3 480 euros.
Sucede que, no caso, estabelecida a coima em função do entulho/resíduos despejado (30.000$00, ou 150 euros, a 90.000$00, ou 450 euros, por metro cúbico), sem qualquer limite máximo, o montante da coima a aplicar pode facilmente exceder o que, quanto a esse limite, se encontra fixado na lei geral.
Foi, de resto o que, no caso, ocorreu: não se tendo apurado o volume de entulho depositado, a decisão administrativa impugnada aplicou uma coima no montante de
20.000 euros, superior, portanto, ao referido montante de 10 vezes o salário mínimo nacional mais elevado.
Deixa-se aqui a nota de que a sentença recorrida considerou que a lei geral era o Decreto-lei nº 433/82 (com as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei nºs
356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro), e que, de acordo com ela
(artigo 17º nº 2), o limite máximo da coima (para as pessoas colectivas) estava fixado em 9.000.000$00, superior portanto à coima aplicada.
Tal, porém, não impediu a anulação da decisão impugnada não só com o fundamento de a Câmara não poder criar a contra-ordenação em causa como também “porque ao fixar a coima a autoridade administrativa não teve em conta a baliza legal que fixa o mínimo e o máximo das coimas, o que desde logo desvirtua a graduação da sanção”.
A verdade é que – disse-se já – o limite máximo é outro e ele se mostra excedido com a coima aplicada.
5 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma conjugada constante dos artigos 27º, nº 1, alínea a) e 33º, nº. 2 do Regulamento de Resíduos Sólidos e de Comportamentos Poluentes do Concelho do Machico na parte em que cria uma contra-ordenação por despejo de entulho da construção civil ou terras em qualquer terreno privado, sem prévio licenciamento municipal e sem prejuízo de terceiros ; b) julgar inconstitucional a mesma norma, mas apenas na parte em que a aplicação do montante máximo da coima ali estabelecido em função da quantidade de entulhos ilicitamente despejados exceder o limite máximo fixado na respectiva lei-quadro; c) Determinar que a sentença recorrida seja reformulada de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 15 de Julho de 2003
Artur Maurício Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida