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Procº nº 380/2004.
3ª Secção. Relator: Conselheiro Bravo Serra.
1. Em 24 de Março de 2004 o relator proferiu a seguinte decisão:
“1. Em 15 de Dezembro de 2003 foi o arguido A. submetido a primeiro interrogatório, na sequência da sua detenção determinada pelo Representante do Ministério Público junto do Tribunal da comarca da -------------.
No respectivo auto de interrogatório consignou-se que o Juiz deu a conhecer ao arguido os motivos da detenção e os factos que lhe eram imputados, após o que o mesmo veio a prestar declarações nos seguintes termos:
‘............................................................................................................................................................................................................................................
O arguido referiu que é explorador do café denominado ‘B.’, sito
--------------, Rua -------------, nº --. Diz que conversou com um C. por duas vezes; nunca transaccionou produto estupefaciente, com o referido C. e que apenas lhe fez o favor de adquirir produtos alimentares (bebidas espirituosas) no Cash and Carry, tendo tal mercadoria sido entregue no Estabelecimento denominado ‘D.’, propriedade de C..
Referiu desconhecer pessoalmente o ‘E.’, apenas o conhecendo de ouvir falar.
Posteriormente, depois de instado pelo Tribunal, referiu que falou por diversas vezes ao telefone com o ‘E.’, referindo que procedera à entrega, por três vezes, de quantias pecuniárias, sendo a última no montante de 3.300 euros, sendo que essas quantias deveriam ser entregues à senhora F., acrescentando que essas entregas eram entregues via postal, pelo facto de ser coagido pelo ‘E.’. Referiu ter efectuado duas ou três entregas desde [há] sete meses a esta parte.
Referiu desconhecer o G., bem como H..
Referiu ter ido a Madrid a uma feira de máquinas de diversão, acrescentando que não adquiriu qualquer máquina de diversão para o seu estabelecimento comercial e que já em Portugal foi detido e revistado por forças policiais portuguesas, não lhe tendo sido apreendido qualquer material. Referiu desconhecer o G. e que nunca entrou em contacto com tal indivíduo.
Referiu ter enviado por duas ou três vezes dinheiro para o Paraguai e para a Bolívia, para dona F.[ ] (que é do -----------), e que se encontra grávida de sete meses do arguido, por I..
O arguido segundo declarações que prestou é empresário em nome individual, explorando um estabelecimento comercial denominado ‘B.’. Acrescentou que tem uma empregada de café todos os dias, desde que a sua filha J., foi detida há dez meses. Referiu ainda o arguido que por ter necessidade de visitar a sua filha e genro, respectivamente detidos no estabelecimento de Tires e EPL de Lisboa, não está todo o dia no estabelecimento comercial de que é explorador, sendo que as visitas ocorrem [à]s Segundas, Terças, Quintas, Sextas e Sábados.
Acrescentou que aufere em média cerca de 1.845 euros, 2000 euros na exploração do estabelecimento comercial.
Referiu que a sua mulher L. é doméstica e que ajuda na exploração do referido estabelecimento comercial.
O arguido tem quatro filhos, três dos quais menores; Vive em casa própria onde está instalado o estabelecimento comercial, pagando de renda pela exploração desse estabelecimento 440 euros.
Referiu que tem um telemóvel desde à sete ou oito meses e que desde aí até hoje, nunca procedeu à alteração do seu número ou à troca do telemóvel.
Mais referiu que além da sua cônjuge, não existe qualquer outra pessoa que possa prestar assistência aos seus filhos menores
............................................................................................................................................................................................................................................’
Após o interrogatório, o Juiz de instrução do Tribunal de comarca da
--------------- proferiu despacho no qual disse que concordava com a análise, fundamentação e enquadramento jurídico levados a efeito pela promoção formulada pelo Representante do Ministério Público no acto processual em que decorreu o interrogatório.
Nessa promoção, no que ora releva, foi exarado:
‘............................................................................................................................................................................................................................................
No conjunto da prova produzida nos autos considero existirem fortes indícios da prática de actos susceptíveis de integrar o crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. [e] p. [p]elos art.ºs 21º, nº 1 e 24º, al. c) ambos do Dec-Lei nº 15/93 de 22/01, por referência à tabela 1-B anexa ao referido diploma, ilícito criminal que é o punível com pena máxima de prisão até dezasseis anos.
As declarações do arguido não colhem. Por um lado refere que só viu o arguido C. - actualmente detido à ordem dos presentes autos - por duas vezes e que não tem, com ele qualquer tipo de relacionamento. Os autos demonstram o contrário.
Também refere que o arguido não conhece G. - actualmente detido em França por posse de droga - mas os autos demonstram o inverso.
A explicação que dá para os contactos telefónicos com o ‘E.’ e para a circunstância de ter remetido somas de dinheiro para a América do Sul é, com todo o respeito, ridícula.
A prova constante dos autos, demonstra a existência de contactos frequentes do arguido com C., com G. e com alguns outros indivíduos que tal como os referenciados são suspeitos de pertencerem à rede de narcotráfico em investigação.
Por outro lado ainda, constam dos autos transcrições de intercepções telefónicas de conversas que o arguido manteve com outros sujeitos, nomeadamente com os acima referidos, conversas essas cujo teor, em código ou com o uso de termos correntes, não deixam dúvidas acerca da actividade de narcotráfico do arguido.
............................................................................................................................................................................................................................................’
E, no citado despacho do Juiz de instrução, acrescentou-se:
‘.......................................................................................................................................................................................................................................
Compulsados os autos, este Tribunal tem por fortemente indiciado que o arguido, desde há alguns meses, vem praticando actos que consubstanciam a prática do crime de tráfico de estupefacientes.
Verifico que existem fortes indícios que o arguido se dedique à aquisição e importação (quer directamente, quer por interpostas pessoas ou em conjugação de esforços com outras pessoas, alguns dos quais já detidos no âmbito dos presentes autos) de produto estupefaciente, sendo de realçar que dos autos avulta, e sobremaneira, a existência de uma rede de cariz transnacional (da qual o arguido é parte integrante) de importação e posterior venda de produto estupefaciente. Não é quanto a este aspecto despiciendo o contacto que o arguido detém com o suspeito de alcunha ‘E.’ evidenciando que o arguido detém contactos internacionais com redes de narcotráfico, nomeadamente na América do Sul.
.......................................................................................................................................................................................................................................’
Na sequência do entendimento da indiciação fáctica, o Juiz de instrução, considerando que o arguido já tinha, por duas vezes, sido condenado pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes, cumprindo uma pena de dez anos de prisão, que havia o receio de que o mesmo continuasse a prosseguir uma actividade criminosa idêntica à que se indiciava e que a sua permanência em liberdade poderia perturbar a actividade investigatória, com ocultação ou dissipação de meios de prova, determinou que o arguido deveria aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.
Não se conformando com o assim decidido recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo, na alegação adrede produzida e no que agora interessa, formulado as seguintes «conclusões»:
‘............................................................................................................................................................................................................................................
3ª Em primeiro lugar, como resulta, das declarações do recorrente e do despacho judicial, o recorrente não foi confrontado com quaisquer elementos concretos de prova, quer quanto às transcrições da[s] escutas telefónicas, quer quanto à actividade ilícita resultante de contactos com outros ou em relação a actos demonstrativos da continuação da actividade criminosa após a detenção de outros indivíduos.
4ª Não tendo qualquer possibilidade de contraditar os, eventuais, elementos concretos de prova, referidos no despacho sob censura.
5ª Tal situação traduz uma quebra evidente das garantias de defesa e é ilegal e inconstitucional, por violação dos artgsº 141 nº 1 do C.P.P. e 28 nº 1 da C.R.P., acarretando em consequência a ilegalidade da prisão preventiva do recorrente.
6ª Sendo também certo que a norma do artgº 141º nº 1 do C.P.P. na dimensão interpretativa de ser legal o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, sem que lhe tenha sido dada conhecimento, dos motivos da detenção e das provas concretas existentes nos autos, é inconstitucional por violação do disposto nos artgºs 28 nº 1 e 32 nº 1 e 5 da C.R.P.
............................................................................................................................................................................................................................................’
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 18 de Fevereiro de
2004, negou provimento ao recurso.
Surpreende-se nesse aresto, no que agora é cabido, a seguinte fundamentação:
‘............................................................................................................................................................................................................................................
Entende o arguido, e é este o primeiro fundamento de recurso, que no
1º interrogatório judicial a que foi sujeito após a detenção, não lhe foram dados a conhecer os motivos da detenção e as provas concretas existentes nos autos, invocando assim a violação do disposto no artº 141º nº 4 do CPP, sendo deste modo postergados os seus direitos de defesa com violação dos arts 28 nº 1 e 32º nº 1 e 5 da CRP.
O artº 141º nº 4 do CPP, depois de impor ao juiz que informa o arguido dos direitos referidos no artº 61º nº 1, explicando-lhos se necessário, prescreve ‘conhece os motivos da detenção, comunicando-lho e expõe-lhe os factos que lhe são imputados’.
Esta norma é uma emanação [d]a norma constitucional ínsita no artº 28º nº 1 da CRP, que consagra o dever de comunicação relativamente aos motivos da detenção e consagra para este momento processual o direito ao contraditório, que o nº 5 do artº 32º do diploma fundamental estabelece em termos gerais para as diferentes fases processuais, que ao fim e ao cabo mais não são de que o corolário da garantia fundamental do processo penal moderno que é o direito de defesa, consagrado expressamente no nº 1 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa.
Com estas normas, visa-se que ao arguido detido seja dado conhecimento dos factos ou circunstâncias que determinaram a sua detenção permitindo-lhe, assim, que ele possa contrariá-los ou explicá-los.
Como resulta dos autos designadamente das escutas telefónicas a que foram sujeitos os telefones usados pelo arguido, este contactou com outros, alguns já detidos à ordem dos presentes autos, combinando idas de outros ao estrangeiro com o fim de transportarem estupefacientes.
Lendo o auto de interrogatório do arguido resulta não só que ele foi informado da fonte que permitiu imputar-lhe a prática do crime de tráfico de estupefacientes, na modalidade ‘importar produtos estupefacientes’, sancionada no artº 21º nº 1 do Dec. Lei nº 15/93 de 22 de Jan. - o uso do telefone - como lhe foi indicada a identidade das pessoas que contactou para prosseguir esta actividade, dando-lhe assim possibilidade de contrariar o que parece resultar das faladas conversas telefónicas e explicar os motivos que o levaram a contactar os indivíduos que lhe foram mencionados, dando ele as respostas que entendeu a propósito do seu conhecimento dessas pessoas.
Só assim se compreende que tenha declarado, que nunca transaccionou produtos estupefacientes com C., mas que apenas lhe adquiriu bebidas para este vender no estabelecimento comercial que explorava; que a propósito do indivíduo referenciado no processo com a alcunha de ‘E.’, tenha declarado, e passamos a citar: ‘que falou por diversas vezes ao telefone com o ‘E.’, referindo que procedera à entrega, por três vezes, de quantias pecuniárias, sendo a última no montante de 3.300 euros, sendo que essas quantias deveriam ser entregues à senhora F,, acrescentando que essas entregas eram entregues via postal, pelo facto de ser coagido pelo ‘E.’; Referiu, ainda ter efectuado duas ou três entregas há sete meses a esta parte’; que não conhece os arguidos G. e H.; e, ainda que enviou dinheiro para o Paraguai [e] para a Bolívia para uma tal Dona F., dando a explicação para este envio com o facto de ela se encontrar grávida do próprio arguido.
Ora, não se compreende que não tendo sido dado conhecimento ao arguido dos factos pelos quais veio a ser indiciado e mantido preso, ele tenha dado as explicações acabadas de referir, que não são nem mais nem menos do que o exercício do contraditório e de, por esta via, dando as explicações que lhe aprouveram, se defender das acusações que lhe estavam a ser feitas.
Perante a sucessão dos acontecimentos relatados pelo arguido, demonstrativa de que ele teve conhecimento do que estava a ser acusado e que foi alvo de intercepções telefónicas, tanto assim que foi na sequência destas que veio a ser detido, parece-nos destituída de qualquer fundamento a afirmação de que lhe não foram comunicados os factos que levaram [à] sua detenção e que foram postergados os seus direitos de defesa [e] o exercício do direito ao contraditório.
............................................................................................................................................................................................................................................’
É do acórdão de que parte se encontra transcrita que, pelo arguido, vem, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, interposto recurso para o Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da ‘inconstitucionalidade do artgº 141 nº 1 do C.P.P., na dimensão interpretativa, de ser legal o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, sem que lhe tenha sido dado conhecimento, dos motivos da detenção e das provas concretas existentes nos autos’.
O recurso foi admitido por despacho prolatado em 3 de Março de 2004 pela Desembargadora Relatora do Tribunal da Relação de Coimbra.
2. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula este Tribunal
(cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82) e porque se entende que o mesmo não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A, ainda da mesma Lei, a presente decisão, por intermédio da qual se não toma conhecimento da vertente impugnação.
Como se viu, o recurso interposto para este Tribunal foi-o com esteio na alínea b) do nº 1 do citado artº 70º.
Neste tipo de recursos exige-se, inter alia, que tenha havido, por banda da decisão judicial intentada impugnar, a aplicação da norma (ainda que alcançada mediante um processo interpretativo) cuja desconformidade com a Lei Fundamental foi, precedentemente a tal decisão, suscitada pela «parte» que, posteriormente, desse recurso deseja lançar mão.
E tratando-se, como no caso sub specie se trata, de uma dimensão interpretativa, mister é que a decisão judicial pretendida submeter à censura do Tribunal Constitucional tenha convocado essa mesma dimensão como sua ratio decidendi.
Deflui do relato supra efectuado que, na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, o ora recorrente sustentou a enfermidade constitucional da norma que se extrai do nº 1 do artº 141º do diploma adjectivo criminal, quando o mesmo seja interpretado no sentido de que, aquando do primeiro interrogatório do arguido detido, lhe não seja dado conhecimento dos motivos da detenção e das provas concretas existentes nos autos.
Neste contexto, somente seria azado o recurso prescrito na mencionada alínea b) do nº 1 do artº 70º se aquele tribunal de 2ª instância, na decisão pelo mesmo tomada, tivesse acolhido tal interpretação.
Ora, como bem resulta da transcrita fundamentação carreada ao aresto de
18 de Fevereiro de 2004, o Tribunal da Relação de Coimbra perfilhou, justamente, o entendimento de harmonia com o qual resulta do aludido preceito o dever, imposto ao juiz, de comunicar ao arguido detido os motivos da sua detenção, dando-lhe conhecimento dos factos ou circunstâncias indiciados que determinaram a sua detenção, a fim de lhe permitir que os contradite ou forneça explicação sobre os mesmos.
E, interpretando os elementos resultantes do processo, concluiu que lhe foram indicados os motivos da detenção e, bem assim, indicadas as provas concretas que nele existiam (recte, nele foram produzidas ou a ele trazidas), pois só assim se compreenderiam as declarações pelo mesmo produzidas no auto de interrogatório.
Isso significa, pois, que o Tribunal da Relação de [Coimbra] (por lapso escreveu-se «Lisboa»), no acórdão em crise, não levou a efeito uma interpretação do preceito do nº 1 do artº 141º do Código de Processo Penal da qual resultasse que não era exigido ao juiz que preside ao primeiro interrogatório do arguido detido, quer dar informação dos motivos da detenção, quer dar-lhe informação concreta das concretas provas produzidas nos autos. O que vale por dizer, enfim, que aquele Tribunal veio a sufragar a perspectiva interpretativa que, na óptica do ora recorrente, seria a única consonante com o Diploma Básico.
Consequentemente, falece, in casu, o requisito pressupositor do recurso querido interpor, ou seja, precisamente o que consiste na aplicação, na decisão judicial a impugnar perante o Tribunal Constitucional, da norma (alcançada por interpretação) cuja desarmonia com a Constituição foi suscitada.
Termos em que se não conhece do objecto do recurso, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em seis unidades de conta”.
Da transcrita decisão reclamou o arguido A., fazendo-o nos seguintes termos:
“O ora reclamante, na motivação e conclusão n° 3 do seu recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, referiu que não foi confrontado com elementos concretos de prova, no que tange à transcrição das escutas telefónicas, no que tange à actividade ilícita resultante de contactos com outros ou em relação a actos demonstrativos da continuação da actividade criminosa após a detenção de outros indivíduos.
Efectivamente na motivação do seu recurso, referiu que
... em relação aos contactos com outros indivíduos detidos ou não, por suspeita da prática do crime de tráfico de estupefacientes, que elementos concretos existem no processo sobre esses contactos - datas, locais e natureza suspeita dos mesmos ? - pura e simplesmente, nada foi comunicado ao arguido.
Em relação a transcrições de escutas telefónicas, quais as que contêm declarações do recorrente, quais as que provocam a suspeita de se estar perante uma conversa relacionada com tráfico de droga ? - nada foi comunicado ao recorrente, de forma a que este pudesse contraditar em sede de 1° interrogatório a existência desses possíveis indícios...
Tendo, em consequência, deduzido a inconstitucionalidade da norma do artgº 141 n° 1 do C. P. P. ( por lapso, referiu o n° 1 quando queria referir o n° 4 do mesmo artigo, devendo assim ler-se n° 4) - conclusão 5ª do mesmo recurso, na dimensão interpretativa de ser legal o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, sem que lhe tenha sido dado conhecimento, dos motivos da detenção e das provas concretas existentes nos autos.
E ao referir, na sua arguição de inconstitucionalidade, provas concretas, estava a abranger as que já tinha referido - falta de confronto com o conteúdo das transcrições de escutas telefónicas e falta de enunciação de actos ilícitos.
O Tribunal da Relação de Coimbra, no seu acórdão de 18/2/04, considerou que tendo sido o arguido informado da fonte - o uso de telefone, bem como indicada a identidade das pessoas que contactou para a prossecução da actividade ilícita, tal seria suficiente para lhe dar a possibilidade de contrariar o que parece resultar das faladas conversas' telefónicas e explicar os motivos que o levaram a contactar os indivíduos que lhe foram mencionados.
Mais se escreve no aresto da Relação de Coimbra que o relatado pelo arguido é demonstrativo de que ele teve conhecimento do que estava a ser acusado e que foi alvo de intercepções telefónicas, pelo que se considerou não existir qualquer violação 141 n° 1 do C.P.P. nem se verificar a inconstitucionalidade suscitada.
A douta decisão ora reclamada considerou, a este propósito;
..., o Tribunal da Relação de Coimbra perfilhou, justamente, o entendimento de harmonia com o qual resulta do aludido preceito o dever, imposto ao juiz, de comunicar ao arguido detido os motivos da sua detenção, dando-lhe conhecimento dos factos ou circunstâncias indiciados que determinaram a sua detenção, a fim de lhe permitir que os contradite ou forneça explicação sobre os mesmos.
E interpretando os elementos resultantes do processo, concluiu que lhe foram indicados os motivos da detenção e, bem assim, indicadas as provas concretas que nele existiam ( recte, ele foram produzidas ou a ele trazidas), pois só assim se compreenderiam as declarações pelo mesmo produzidas no auto de interrogatório.
Isso significa, pois, que o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão em crise, não levou a efeito uma interpretação do preceito do n° 1 do artº 141° do Código de Processo Penal da qual resultasse que não era exigido ao juiz que preside ao primeiro interrogatório de arguido detido, quer da informação dos motivos da detenção, quer dar-lhe informação concreta das concretas provas produzidas nos autos. O que vale por dizer, enfim, que aquele Tribunal veio a sufragar a perspectiva interpretativa que, na óptica do ora recorrente seria a
única consonante com o diploma básico.
Consequentemente, falece, in casu, o requisito pressupositor do recurso querido interpor, ou seja, precisamente o que consiste na aplicação, na decisão judicial a impugnar perante o Tribunal Constitucional, da norma (alcançada por interpretação) cuja desarmonia com a Constituição foi suscitada...
Salvo o devido respeito, não se afigura que a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra tivesse interpretado o preceito do n° 4 do artgº 141 do C.P.P., no sentido de ser exigido ao juiz que preside ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido dar a conhecer ao arguido as concretas provas produzidas nos autos.
Com efeito o referido acórdão, considerou que tendo sido o arguido informado da fonte - uso de telefone - que permitiu imputar-lhe a prática do crime, bem como indicada a identidade das pessoas que o arguido contactou para a prossecução da actividade e o arguido prestado explicações sobre o relacionamento que tinha com as mesmas se poderia concluir que foram assegurados os seus direitos de defesa.
Concluindo-se pela não ilegalidade do interrogatório e não inconstitucionalidade do mesmo.
Portanto, o Tribunal da Relação de Coimbra, salvo melhor opinião, não acolheu a tese - defendida pelo recorrente em sede de arguição de inconstitucionalidade - de que era exigível ao Juiz confrontar o arguido com elementos concretos de prova, bastando-se com o facto de lhe ser dada indicação da fonte (escutas telefónicas) e indicação da identidade das pessoas envolvidas, para que se considerasse que o arguido tinha a hipótese de exercer o contraditório em termos efectivos.
Aliás,
O mandatário do recorrente que o assistiu no primeiro interrogatório judicial, ao pronunciar-se sobre a medida de coacção, teve, de imediato, o ensejo de expressar que o recorrente não foi confrontado com qualquer elemento concreto de prova do acto ilícito, o que não infirmado no despacho sobre medidas de coacção.
Na resposta ao recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, o magistrado Ministério Público junto do Tribunal de 1ª instância, referiu que... toda a prova carreada para os autos suporta-se, quase integralmente, nas intercepções telefónicas...
No Tribunal da Relação de Coimbra, o Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, em resposta ao recurso, referiu que ... o recorrente não carecia de ter acesso à transcrição destas para se defender eficazmente da actividade de tráfico de estupefacientes que lhe era imputado vir a desenvolver, em conjugação de esforços com aquelas pessoas, pois são naturalmente do seu conhecimento os contactos que manteve elas ou que elas mantiveram consigo, no
âmbito de tal actividade...
Assim o exarado no acórdão da Relação de Coimbra, a propósito dos elementos que devem ser dados a conhecer ao arguido em sede de 1° interrogatório judicial, não prejudica a viabilidade do presente recurso, pelo menos, no que tange à arguição de que o arguido não foi confrontado com determinadas provas concretas existentes nos autos.
A propósito de uma situação semelhante o Acórdão 416/03 da 2a Secção do Tribunal Constitucional, tirado no P. 580/03 em 24/9/03 e publicado em www. tribunalconstitucional.pt exarou o seguinte;
...Para o apuramento da interpretação e aplicação efectivamente feitas pelo tribunal de 1ª instância, e confirmadas pelo acórdão recorrido, da norma do na 4 do artigo 141.ºdo Código de Processo Penal, no que concerne à exposição pelo juiz ao arguido ‘dos factos que lhe são imputados’, surge como elemento de especial relevância que o mandatário do recorrente, ao pronunciar-se contra a propugnada aplicação de medida de coacção de prisão preventiva, imediatamente antes da prolação do despacho judicial que a determinou, tenha aduzido ‘não terem sido referidos o local das alegadas práticas sexuais, o momento em que as mesmas ocorreram, as idades dos alegados intervenientes e outros elementos aptos a permitir ao arguido um esclarecimento mínimo dos factos que agora lhes estão a ser imputados’. Esta acusação, que consubstancia manifestação de discordância com o procedimento adoptado pelo tribunal, não foi contrariada por nenhum dos restantes intervenientes processuais presentes no interrogatório nem no despacho que determinou a prisão preventiva. Essa acusação foi retomada na motivação do recurso para a Relação, não tendo o acórdão recorrido questionado a veracidade das afirmações do recorrente no sentido da não concretização dos factos imputados.
Cumpre, assim, concluir ter o acórdão recorrido acolhido, ao menos implicitamente, a interpretação normativa arguida de inconstitucional pelo recorrente, no sentido de que a exposição, pelo juiz ao arguido, dos factos que lhe são imputados, prevista no nº4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, se basta com a formulação de perguntas genéricas e abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, local e modo em que tais factos terão ocorrido...
A doutrina deste acórdão, pode ser transposta para o caso em apreciação, quanto ao facto de, tal como aí, existirem nestes autos sinais evidentes de que não foram exibidos ao recorrente determinados elementos concretos de prova, para além da tomada de posição do mandatário do arguido, após o seu interrogatório judicial, sobressai a resposta do M. Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra, a propósito de, não tendo sido o arguido confrontado com o teor das transcrições telefónicas, ter este magistrado propugnado pela desnecessidade de tal acto, por considerar que o arguido é conhecedor da sua actividade.
E surpreende-se na decisão da Relação, essa evidência, já que a mesma, por um lado refere que o arguido foi informado da fonte - uso do telefone, mas não refere que tenha sido informado do teor dos telefonemas e, por outro lado, que foi informado da identidade das pessoas que contactou, mas não dos actos, supostamente, ilícitos praticados com as mesmas”.
Ouvido sobre a reclamação, o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se assim:-
“1 - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 - Na verdade, é óbvio que a decisão recorrida não fez aplicação do sentido normativo, especificado pelo recorrente, baseando-se, bem pelo contrário, em diferente critério normativo.
3 - O que determina a evidente inverificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso”.
Cumpre decidir.
2. Objecto dos recursos de fiscalização concreta, como sabido é, são normas constantes do ordenamento jurídico infra-constitucional, ainda que alcançadas mediante um processo interpretativo.
Sendo assim, como é, e porque um dos pressupostos do recurso ancorado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82 é, justamente, o de a decisão judicial recorrida ter, como sua ratio decidendi efectuado a aplicação da norma cuja desconformidade com a Constituição foi equacionada precedentemente à sua prolação, in casu, e porque se encontrava questionada uma dada dimensão interpretativa do preceito vertido no nº 1 do artº 141º do Código de Processo Penal, o que se tornava necessário saber era se o Tribunal da Relação de Coimbra, no aresto intentado impugnar, levou a efeito uma interpretação daquele preceito por forma a ser alcançado o sentido que, pelo então recorrente, tinha sido considerado como conflituante com a Lei Fundamental.
Ora, na decisão sub specie, foi concluído que não foi essa a interpretação acolhida no acórdão de 18 de Fevereiro de 2004, antes, e pelo contrário, sendo ao aludido preceito dado um sentido que estava de acordo com a perspectiva defendida pelo recorrente, ou seja, com um sentido segundo o qual, naquela perspectiva, era o único consonante com a Constituição.
Se, não obstante a Relação de Coimbra ter adoptado aquela dimensão interpretativa, a subsunção da mesma ao caso que tinha que apreciar porventura foi feita de modo erróneo, essa é uma questão que, claramente, não tem que ver com a questão da aplicação normativa (atingida mediante um processo interpretativo) que, como se demonstrou na decisão em crise, não foi, de todo, aquela de onde resultava que o nº 4 do artº 141º do diploma adjectivo criminal se bastava com a formulação de perguntas genéricas e sem concretização das circunstâncias de tempo, local e modo dos factos imputados ao arguido. E, relativamente a essa questão da subsunção, situa-se ela fora dos poderes cognitivos deste Tribunal.
Em face do exposto, indefere-se a reclamação, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 15 de Abril de 2004
Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida