Imprimir acórdão
Processo n.º 816/02
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O Ministério Público deduziu, em 29 de Novembro de 1996, acusação contra A., imputando-lhe a autoria de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido nos termos dos artigos 11.º do Decreto-Lei n.º
454/91, de 28 de Dezembro, e 313.º e 314.º, alínea c), do Código Penal de 1982, por, em 18 de Maio de 1992, ter preenchido, assinado e entregue a B., a qual por sua vez o endossou a C., o cheque n.º ---------------, sobre o Banco
----------------, no valor de 4 000 000$00, que, apresentado a pagamento, foi devolvido por falta de provisão.
Tendo-se frustrado as tentativas de notificação pessoal ao arguido quer da acusação deduzida, quer do despacho judicial que a recebeu, procedeu–se a notificação por éditos de uma e de outro, mas, não se tendo o arguido apresentado, foi o mesmo declarado contumaz por despacho de 28 de Janeiro de 1998.
Em 12 de Junho de 2002, o arguido apresentou requerimento propugnando, além do mais, que se julgasse extinto o procedimento criminal por prescrição, o que foi indeferido por despacho de 1 de Julho de
2002 do juiz do 2.º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, mas, interposto recurso deste despacho, veio o mesmo a ser reparado pelo seu autor, por despacho de 29 de Outubro de 2002, do seguinte teor:
“O Tribunal repara a decisão recorrida nos seguintes termos:
Os factos tiveram lugar em 18 de Maio de 1992.
O arguido foi declarado contumaz a 28 de Janeiro de 1998 (fls. 84).
O arguido está acusado da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de
28 de Dezembro, e artigos 313.º e 314.º, alínea c), do Código Penal.
O prazo de prescrição do procedimento criminal é de dez anos em face da acusação e não se verificaram quaisquer factos que interrompessem ou suspendessem aquele prazo de prescrição, nos termos dos artigos 119.º e 120.º do Código Penal de 1982.
Com efeito, atenta a data dos factos, são aplicáveis os artigos
119.º e 120.º do Código Penal de 1982. As causas de interrupção e de suspensão da prescrição do procedimento criminal previstas naqueles artigos reportavam-se ao Código de Processo Penal de 1929 e não podem ser aplicadas nem integradas analogicamente pelo Código de Processo Penal de 1987, como tem decidido o Tribunal Constitucional (vide Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 205/99, de
7 de Abril de 1999, e n.º 122/00, de 23 de Fevereiro de 2000, in, respectivamente, Diário da República, II Série, de 5 de Novembro de 1999 e de 6 de Junho de 2000).
Decorre, pois, desta jurisprudência constitucional a manifesta inconstitucionalidade, por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa, da equiparação, já tentada nos tribunais, da causa de interrupção prevista no artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal de 1982 com a declaração de contumácia (vide Colectânea de Jurisprudência, volume I, pág. 149), por a omissão da contumácia entre as causas de interrupção da prescrição constituir uma «lacuna insusceptível de ser preenchida» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Editorial Notícias, 1993, pág. 710). Também não pode proceder a consideração da declaração de contumácia como uma causa de suspensão da prescrição, nos termos do assento n.º 10/2000, de 19 de Outubro de
2000, que consubstancia uma aplicação analógica e retroactiva a factos anteriores a 1 de Outubro de 1995 de uma causa de suspensão inexistente no Código Penal de 1982 (a declaração de contumácia).
O argumento, usado na fundamentação do assento, de que:
«(...) a expressão usada “casos especialmente previstos na lei” não se quer referir a denominações, mas a situações, a certos conteúdos. É isto que interessa, e não o nome que se lhes aplica. Para efeitos iguais tem de haver soluções idênticas», consubstancia uma clara interpretação analógica, especialmente visível na
última frase citada!
Ora, as causas de interrupção e de suspensão do procedimento criminal devem ser interpretadas restritivamente e constituem um catálogo apertado que se refere apenas aos institutos processuais vigentes à data da criação da lei que regulamenta a lei da prescrição, como manda a boa doutrina
(cf. Adolf Schõnke e Horst Shrõder, Strafgesetzbuch Kommentar, München, editora Beck, 1991, pág. 945, e Eduard Dreher e Herbert Trõndie, Strafgesetzbuch Kommentar, München, editora Beck, 1995, pág. 606), seguida uniformemente pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça alemão, o Bundesgerichtshof
(BGH-Entscheidungen, vol. 4, pág. 135, vol. 18, pág. 278, vol. 26, pág. 83, e vol. 28, pág. 281). Esta doutrina e esta jurisprudência são particularmente significativas, porque o Código Penal português de 1982 reproduz praticamente o sistema alemão previsto nos §§ 78, 78a, 78b, 78c, 79, 79a e 79b do Código Penal alemão, sendo ainda mais restrito do que este direito, por prever menos causas de suspensão e de interrupção. O intérprete português não pode, portanto, ignorar o elemento interpretativo sistemático e teleológico que inspirou o legislador português em 1982, sob pena de se estar a substituir ao legislador.
Coloca-se ainda o problema de saber qual das duas questões de inconstitucionalidade deve este Tribunal conhecer primeiro, o que é decisivo para efeitos da interposição do recurso desta decisão.
O conhecimento da inconstitucionalidade do artigo 120.º do Código Penal de 1982 é prévio ao conhecimento da inconstitucionalidade do artigo 119.º do Código Penal de 1982, uma vez que a interrupção é mais gravosa para o arguido do que a suspensão da prescrição. Deve, pois, este Tribunal conhecer primeiro da questão da inconstitucionalidade do regime das causas de interrupção da prescrição e depois da inconstitucionalidade do regime das causas de suspensão da prescrição, ficando deste modo salvaguardada a prioridade lógica do recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional da decisão de inconstitucionalidade da interpretação do artigo 120.º do Código Penal de 1982, que não se encontra decidida por qualquer acórdão de fixação de jurisprudência.
Aliás, mesmo em relação à questão da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 119.º do Código Penal de 1982, nos termos em que foi decidida pelo assento n.º 10/2000, a prioridade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão que negue a aplicação da interpretação fixada no assento com base na sua inconstitucionalidade poderia ter como consequência a manutenção pelo Supremo Tribunal de Justiça da sua posição, revogando a decisão recorrida e não podendo o Tribunal Constitucional conhecer da própria inconstitucionalidade suscitada em relação à interpretação firmada no assento. Este movimento circular, em que o Supremo Tribunal de Justiça é o último juiz da inconstitucionalidade da interpretação fixada nos assentos que profere, conduziria em linha recta a uma interpretação das disposições do n.º 5 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, na versão do artigo 1.º da Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, em violação do disposto no artigo 280.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República e representaria uma fraude ao sistema constitucional de garantia da Constituição.
Pelo exposto:
1. não aplico, por os julgar inconstitucionais, os artigos 335.º e
337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal de 1982, na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à causa aí prevista, e
2. não aplico, por os julgar inconstitucionais, os artigos 335.º e
337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 119.º, n.º l, do Código Penal de 1982, na interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no assento n.º 10/2000,
3. e, em consequência, declaro prescrito o procedimento criminal e determino o oportuno arquivamento dos autos.”
É deste despacho que, pelo Ministério Público, vem interposto o presente recurso para este Tribunal Constitucional, fundado na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.° 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(doravante designada por LTC), “reportado à recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade (violação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa), das normas constantes dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, em conjugação, respectivamente, com as dos artigos 120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal de 1982, na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à causa de interrupção da prescrição aí prevista; e 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, na interpretação fixada pelo «assento» n.º 10/2000 (enquanto causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal)”.
O recorrente apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1 – Por força do preceituado no n.° 5 do artigo 70.° da Lei n.° 28/82, tem precedência sobre o recurso de fiscalização concreta, interposto para o Tribunal Constitucional, o «recurso ordinário obrigatório», previsto no artigo
446.°, n.° l, do Código de Processo Penal, a interpor pelo Ministério Público
(nos termos do artigo 80.°, n.° 4, da Lei n.° 28/82) e a dirimir previamente na ordem dos tribunais judiciais, no que se refere à recusa de aplicação da interpretação normativa realizada pelo Supremo Tribunal de Justiça no «assento» n.° 10/2000.
2 – É inconstitucional, por violação do artigo 29.°, n.°s 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo
120.°, n.° l, alínea d), do Código Penal de 1982 – conjugado com as normas que regulam a declaração de contumácia e respectivos efeitos – enquanto faz equiparar, em termos substancialmente inovatórios, para efeitos da interrupção da prescrição do procedimento criminal, o acto de marcação do dia para julgamento em processo de ausentes (nos termos do Código de Processo Penal de
1929) à declaração de contumácia que – nos termos do Código de Processo Penal de 1987 – obsta ao prosseguimento do processo, à revelia do arguido, para a fase de julgamento.
3 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.”
O arguido, ora recorrido, não contra-alegou.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. O Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º
400/82, de 23 de Setembro, na sua redacção originária, dispunha nos seus artigos 119.º e 120.º:
Artigo 119.º (Suspensão da prescrição)
1. A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial para juízo não penal;
b) O procedimento criminal esteja pendente, a partir da notificação do despacho de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de processo de ausentes;
c) O delinquente cumpra no estrangeiro uma pena ou uma medida de segurança privativa da liberdade.
2. (...)
3. (...)
Artigo 120.º (Interrupção da prescrição)
1. A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a notificação para as primeiras declarações, para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução preparatória;
b) Com a prisão;
c) Com a notificação do despacho de pronúncia ou equivalente;
d) Com a marcação do dia para julgamento no processo de ausentes.
2. (...)
3. (...)
Esta estatuição estava em consonância com o Código de Processo Penal de 1929 e suas sucessivas alterações vigentes à data da aprovação do Código Penal de 1982. Porém, a estrutura processual penal foi profundamente alterada pelo Código de Processo Penal de 1987 – designadamente com a abolição do julgamento em processo de ausentes, substituído pelo instituto da contumácia, e com a substituição da instrução preparatória dirigida por um juiz pelo inquérito da responsabilidade do Ministério Público, facultativamente seguido de uma fase de instrução sob a égide de um juiz – sem que o legislador tivesse tido o cuidado de introduzir as necessárias adaptações nas previsões dos artigos
119.º e 120.º do Código Penal de 1982. Com efeito, só com o Decreto-Lei n.º
48/95, de 15 de Março, é que essa adaptação legal veio a ser feita através da nova redacção dada aos correspondentes artigos 120.º e 121.º do Código Penal, que passaram a ter o seguinte teor:
Artigo 120.º (Suspensão da prescrição)
1. A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal;
b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para a audiência em processo sumaríssimo;
c) Vigorar a declaração de contumácia; ou
d) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativa da liberdade.
2. (...)
3. (...)
Artigo 121.º (Interrupção da prescrição)
1. A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a constituição de arguido;
b) Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação para a audiência em processo sumaríssimo; ou
c) Com a declaração de contumácia.
2. (...)
3. (...)
Relativamente aos processos – como o presente – nos quais esta alteração legislativa não era aplicável, suscitou-se nos tribunais a questão de saber se se poderia atribuir eficácia suspensiva ou interruptiva da prescrição do procedimento criminal a actos processuais previstos no Código de Processo Penal de 1987 que poderiam ser tidos como equivalentes aos actos processuais referidos na redacção originária dos artigos 119.º e 120.º do Código Penal de 1982 ou se, pelo contrário, essa “interpretação extensiva” ou
“actualista” ou esse recurso à analogia eram constitucionalmente inadmissíveis, desde logo por violarem o princípio da legalidade penal.
As divergências jurisprudenciais a este propósito suscitadas conduziram à prolação, até este momento, pelo Supremo Tribunal de Justiça, de quatro decisões uniformizadoras da jurisprudência:
– “Assento” n.º 1/98, de 9 de Julho de 1998 (Diário da República, I Série-A, n.º 173, de 29 de Julho de 1998, pág. 3606; e Boletim do Ministério da Justiça, n.º 479, pág. 87): “Instaurado processo criminal na vigência do Código de Processo Penal de 1987 por crimes eventualmente praticados antes de 1 de Outubro de 1995 e constituído o agente como arguido posteriormente a esta data, tal facto não tem eficácia interruptiva da prescrição do procedimento por aplicação do disposto no artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 14 de Março”;
– “Assento” n.º 1/99, de 12 de Novembro de 1998 (Diário da República, I Série-A, n.º 3, de 5 de Janeiro de 1999, pág. 22; e Boletim do Ministério da Justiça, n.º 481, pág. 118): “Na vigência do Código Penal de 1982, redacção original, a notificação para as primeiras declarações, para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, no inquérito, sendo o acto determinado ou praticado pelo Ministério Público, não interrompe a prescrição do procedimento criminal, ao abrigo do disposto no artigo 120.º, n.º
1, alínea a), daquele diploma”;
– “Assento” n.º 10/2000, de 19 de Outubro de 2000
(Diário da República, I Série-A, n.º 260, de 10 de Novembro de 2000, pág.
6319): “No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal”;
– “Assento” n.º 12/2000, de 16 de Novembro de 2000
(Diário da República, I Série-A, n.º 281, de 6 de Dezembro de 2000, pág. 6984):
“No domínio da vigência do Código Penal de 1982, versão original, a partir da entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987, a prescrição do procedimento criminal não se interrompe com a notificação para as primeiras declarações, para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução”;
Trata-se de problemática por diversas vezes sujeita a apreciação deste Tribunal Constitucional (designadamente quanto à questão de saber se à notificação ao arguido do despacho do Ministério Público para interrogatório e à realização deste ou à notificação para declarações na “nova instrução” do Código de Processo Penal de 1987 podia ser atribuída a eficácia interruptiva da prescrição expressamente prevista para a notificação para as primeiras declarações, para comparência ou para interrogatório do agente como arguido na “antiga instrução preparatória”), embora o presente caso seja o primeiro em que se coloca a questão da admissibilidade de atribuição à declaração de contumácia, introduzida pelo Código de Processo Penal de 1987, da eficácia interruptiva da prescrição do procedimento criminal expressamente prevista, na redacção originária do Código Penal de 1982, para a marcação de dia para julgamento em processo de ausentes do Código de Processo Penal de 1929.
2.2. Antes de se referenciarem as anteriores pronúncias do Tribunal Constitucional, cumpre salientar que, embora com alguns votos dissidentes, tem-se entendido que, neste tipo de situações, se mostra delineada uma questão de inconstitucionalidade normativa, cognoscível em recurso de constitucionalidade, já que o processo interpretativo, extensivo ou de cariz analógico, seguido pelos tribunais decorre, não de uma pura operação subsuntiva no tipo, mas da adopção de um critério normativo, dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas.
Como se referiu no Acórdão n.º 205/99 (Diário da República, II Série, n.º 258, de 5 de Novembro de 1999, pág. 16 641; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 486, pág. 51; Acórdãos do Tribunal Constitucional,
43.º vol., pág. 225; e Revista do Ministério Público, n.º 84, Outubro/Dezembro de 2000, pág. 153, com anotação de Eduardo Maia Costa), proferido em recurso de decisão que atribuíra eficácia interruptiva da prescrição do procedimento criminal à notificação ao arguido do despacho do Ministério Público para interrogatório no inquérito e à realização deste:
“4. É objecto do presente recurso de constitucionalidade o confronto de uma interpretação do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 com os artigos 29.º, n.ºs 1 e 2, e 32.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição.
Consubstancia um tal confronto uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa para cujo conhecimento o Tribunal Constitucional tem competência ou estar-se-á, apenas, perante o pedido de apreciação de uma eventual contradição da decisão recorrida, na sua substância meramente decisória, com a Constituição?
Impõe-se o entendimento segundo o qual o Tribunal Constitucional se confronta, neste caso, com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, apesar de tal questão resultar de o tribunal recorrido ter atingido um resultado interpretativo eventualmente proibido, em face das restrições interpretativas impostas pelo princípio da legalidade em direito penal.
Com efeito, várias razões intercedem a favor de que a questão colocada não pretende suscitar o mero controlo pelo Tribunal Constitucional da decisão recorrida.
Assim, desde logo, o recorrente não submete à apreciação do Tribunal Constitucional um processo interpretativo utilizado pontualmente na decisão recorrida, isto é, a inserção do caso concreto num âmbito normativo pré-determinado pelo julgador. Não é um tal momento de sotoposição do caso no quadro lógico decorrente da interpretação da norma o que verdadeiramente se questiona, mas antes um certo conteúdo interpretativo atribuído ao artigo 120.º, n.º 1, alínea a), o qual é identificado. Questiona-se, sem dúvida, se a fixação de sentido da norma, segundo a qual esta abrangerá, em geral, na interrupção da prescrição «a notificação ao arguido do despacho do Ministério Público para interrogatório no inquérito e a realização deste» é uma interpretação normativa compatível com a Constituição, em face dos artigos 29.º, n.ºs 1 e 3, e 32.º, n.ºs 1 e 4. É, assim, o conteúdo final da interpretação ou, dito de outro modo, o resultado interpretativo pelo qual se atinge a norma que decide o caso, norma que eventualmente não tem competência constitucional para o decidir, que é submetido ao controlo de constitucionalidade.
A isto acresce que o referido conteúdo interpretativo não é apenas determinado pelo caso concreto, mas é referido com elevada abstracção, na base de uma linha jurisprudencial anterior que utilizou a mesma perspectiva interpretativa para casos idênticos.
Emerge, assim, claramente, de um momento interpretativo a questão de constitucionalidade. Não se trata de um momento meramente aplicativo da norma ao caso concreto, isto é, de uma situação em que o recorrente suscite apenas a correcção lógico-jurídica da inclusão do caso na norma. Trata-se, antes, da indicação, com suficiente autonomia, dos critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos pelo julgador ao texto legal para decidir casos semelhantes. Neste caso, foi enunciada pelo julgador uma dimensão normativa que, segundo o recorrente, não corresponde fielmente às palavras do legislador, violando, por isso, o princípio da legalidade, sendo essa dimensão normativa que o recorrente pretende ver apreciada.
Ora, o Tribunal Constitucional não pode deixar de controlar dimensões normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultantes de uma aplicação analógica, em casos em que estejam constitucionalmente vedados certos modos de interpretação ou a analogia. O resultado do processo de interpretação ou criação normativa (tanto de meras dimensões normativas como de normas autónomas), ínsito na actividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de controlo de constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativa, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgador.
5. Questão afim da anterior é a de saber se o objecto do recurso é efectivamente o artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal ou antes uma norma construída pelo julgador através de um processo de integração de lacuna por analogia, nos termos do artigo 10.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil. Note-se, porém, que em ambos os casos estaremos confrontados com uma norma cuja conformidade à Constituição é sindicável perante o Tribunal Constitucional. Na primeira hipótese, concluir-se-á que a aplicação analógica ainda constitui uma actividade interpretativa, em sentido amplo, dando como resultado uma certa dimensão normativa que pode contrariar normas ou princípios constitucionais. Na segunda hipótese, estará em causa uma norma não escrita igualmente susceptível de afrontar a Constituição quer quanto ao seu conteúdo quer quanto à sua génese
(a circunstância de ser obtida mediante uma aplicação analógica vedada pelo artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição feri-la-á de inconstitucionalidade material).
Todavia, esta questão acaba por ser de cunho puramente teorético na medida em que estará sempre em causa a questão de saber se é compatível com a Constituição a norma que determina a interrupção da prescrição obtida a partir do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. E, independentemente de estar em causa uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex certa que lhe é ínsita.”
Este entendimento foi reiterado nos Acórdãos n.ºs 285/99
(Diário da República, II Série, n.º 246, de 21 de Outubro de 1999, pág. 15 772; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 487, pág. 72; Acórdãos do Tribunal Constitucional, 43.º vol., pág. 477; e Revista do Ministério Público, n.º 84, Outubro/Dezembro de 2000, pág. 158, com anotação de Eduardo Maia Costa), 122/00
(Diário da República, II Série, n.º 131, de 6 de Junho de 2000, pág. 9708; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 494, pág. 57; Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46.º vol., pág. 449; e Revista do Ministério Público, n.º 84, Outubro/Dezembro de 2000, pág. 168, com anotação de Eduardo Maia Costa), 317/00,
494/00, 557/00 e 585/00, e é de manter no presente caso. Na verdade, a adopção de um critério normativo, dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas, foi explicitamente invocada (para ser recusada) na decisão recorrida, segundo a qual a equiparação dos referidos actos processuais para o específico efeito interruptivo da prescrição do procedimento criminal envolve o apelo a um raciocínio “analógico”, propiciando uma interpretação ou integração actualística da lei penal, com vista a adequar inovatoriamente o regime material da prescrição (moldado pela estrutura do Código de Processo Penal de 1929) à nova estrutura procedimental do Código de Processo Penal de 1987, que eliminara o julgamento à revelia e a figura do “processo de ausentes”.
Nesta perspectiva, nada obsta, pois, ao conhecimento do objecto do recurso.
2.3. Como se referiu, a problemática em causa já foi objecto de pronúncia por parte deste Tribunal Constitucional, que vem entendendo, também aqui com alguns votos dissidentes, que tal operação de inovatória adequação das normas penais à (nova) estrutura do processo penal, na medida em que comporte uma ampliação (em termos de interpretação extensiva ou analógica) dos conceitos que integravam as previsões do artigo 120.° do Código Penal de 1982, é incompatível com o artigo 29.°, n.°s 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
Efectivamente, nos citados Acórdãos n.°s 205/99 e
285/99, julgou o Tribunal Constitucional inconstitucional a norma constante do artigo 120.°, n.° l, alínea a), do Código Penal de 1982, interpretado no sentido de que a interrupção do prazo prescricional se verifica a partir da notificação para as primeiras declarações do arguido na fase de inquérito, conduzido pelo Ministério Público (e sendo, portanto, insusceptíveis de equiparação, para este efeito, o primeiro interrogatório do arguido na instrução preparatória e no inquérito).
Nos também já citados Acórdãos n.°s 122/00, 317/00,
494/00, 557/00 e 585/00, julgou o Tribunal Constitucional inconstitucional a mesma norma, enquanto interpretada em termos de a prescrição do procedimento criminal se dever interromper com a notificação para as primeiras declarações, para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução
(recusando, pois, a equiparação, para este efeito interruptivo, do interrogatório do arguido na instrução preparatória e na – actual – instrução, apesar de, em ambos os casos, se tratar de diligência presidida pelo juiz de instrução).
Essa orientação jurisprudencial assenta essencialmente na fundamentação desenvolvida no Acórdão n.º 205/99, que, apesar da sua extensão, interessará aqui recordar. Lê-se nesse aresto:
“7. O problema de constitucionalidade que o artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 coloca, suscita, de imediato, as duas dimensões seguintes:
Em primeiro lugar, a que resulta da dúvida sobre se a interpretação do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982, após a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987, com referência ao momento da constituição de arguido em processo penal, corresponde a uma interpretação extensiva ou a uma analogia da referida norma quanto à interrupção da prescrição do procedimento criminal. Em segundo lugar, a que se conexiona com a compatibilização de tais processos interpretativos com a Constituição, no instituto da interrupção da prescrição.
Com efeito, a análise das questões referidas impõe-se porque a matéria da prescrição do procedimento criminal é habitualmente sujeita pela doutrina aos vários crivos limitativos da interpretação jurídica e aplicação da lei no tempo vigentes no Direito Penal por imposição constitucional (sobre a natureza do instituto da prescrição em geral e as suas relações com o princípio da legalidade, cf. Eduardo Correia, «Actos processuais que interrompem a prescrição», Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 94.º, pág. 353, e ano 108.º, pág. 361 e seguintes; Figueiredo Dias, Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 698 e seguintes). A sujeição da prescrição às decorrências do princípio da legalidade tem sido problematizada em função da sua qualificação como instituto de Direito Penal substantivo ou adjectivo, persistindo a primeira qualificação. Mas, independentemente do tratamento das relações entre a prescrição e o princípio da legalidade num plano classificatório, uma construção dogmática implantada nos fundamentos específicos da prescrição independentemente da sua natureza penal ou processual penal justifica o instituto por razões de necessidade da pena em conjugação com uma lógica de controlo do poder punitivo do Estado (cf. Fernanda Palma, «Princípio da aplicação retroactiva da lei (penal) mais favorável e alteração de prazos prescricionais no direito de mera ordenação social», em Revista Fisco, n.º 34,
1991). Com efeito, não é só a desnecessidade da pena que o decurso do tempo implica, quando o facto já foi assimilado ou esquecido pela sociedade, mas também uma responsabilização do Estado pela inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto (cf., acerca desta dimensão de uma garantia de objectividade como inerente à legalidade e à proibição de retroactividade, Jakobs, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 2.ª ed., pág. 95 e seguintes).
Na interrupção da prescrição, repercute-se aquela fundamentação, na medida em que o recomeço da contagem do prazo prescricional se justifica por ter havido uma actuação dos órgãos titulares do poder punitivo, ilustrativa objectivamente de uma efectiva possibilidade de se vir a aplicar o Direito Penal no caso concreto.
A prescrição é, com efeito, um instituto que revela uma lógica de relação punitiva pela qual é reclamado do Estado, titular do poder de punir, uma actuação célere e eficaz na definição e aplicação do Direito ao caso concreto. A interrupção da prescrição explica-se pela demonstração da capacidade e vontade de, justificadamente, actuar os meios conducentes ao exercício ou continuidade no exercício de acção penal, não podendo, assim, ser bastante qualquer actividade investigatória não reveladora daquela capacidade para interromper a prescrição.
8. Apesar de a proibição da analogia quanto à matéria da prescrição não estar, de modo literal, incluída na proibição da analogia quanto às normas incriminadoras e ser questionável a existência de um verdadeiro direito do agente a que a inércia do Estado na prossecução penal o beneficie, a proibição da analogia em matéria prescricional, nomeadamente quanto às causas de interrupção da prescrição, está sem dúvida justificada pelo referido controlo do poder punitivo do Estado através do Direito que criou, de modo que sem a verificação de factos previstos em lei penal (objecto de reserva de lei e inerente controlo democrático) como indiciadores de uma efectiva e sustentada vontade e capacidade punitiva do próprio Estado não será possível estabelecer causas interruptivas da prescrição. Assim, mesmo que a garantia da previsibilidade para os reais ou hipotéticos agentes dos crimes dos prazos prescricionais não baste para justificar a proibição da analogia, ela será imposta pelo menos pela segurança democrática, relativamente ao controlo do exercício do poder punitivo, o qual não pode ser exercido sem limites objectivos democraticamente estipulados. Pelo menos neste sentido, a proibição da analogia das normas relativas à prescrição partilha dos fundamentos da proibição da analogia relativamente aos fundamentos da incriminação e insere-se no objecto de reserva relativamente à definição de crimes e penas, prevista no artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
9. Ter-se-á procedido a uma verdadeira integração de lacunas por analogia na aplicação do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal? Ao retirar-se daquele preceito uma dimensão normativa não constante explicitamente do seu elemento literal - a de que a interrupção da prescrição (que já não podia ocorrer com a notificação para a instrução preparatória por a instrução preparatória ter deixado de figurar no sistema) seria determinada pelo primeiro interrogatório do arguido no inquérito, de acordo com o sistema instituído pelo Código de Processo Penal de 1987 - estar-se-ia a preencher uma «lacuna de regulamentação»? Em certos termos, perguntar-se-á se, após a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987, que suprimiu o sistema em que se inseria a instrução preparatória, terá correspondido à vontade legislativa uma substituição daquela pelo primeiro interrogatório do arguido no inquérito, sustentada ainda pelo elemento literal da primitiva redacção do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
A resposta a esta questão será, sem dúvida, positiva, se aceitarmos como válida uma interpretação actualista do referido preceito, segundo a qual a vontade legislativa subjacente à não alteração do conteúdo do artigo 120.º, n.º
1, alínea a), do Código Penal, após a supressão da instrução preparatória pelo Código de Processo Penal de 1987, consistiria nessa compatibilização daquele preceito com o sistema do Código de Processo Penal de 1987. A manutenção do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), teria tido, segundo esta interpretação, o sentido de revelar uma intenção legislativa de substituição da notificação do arguido para a instrução preparatória pela notificação para o primeiro interrogatório no inquérito.
Tal intenção não seria, no entanto, dedutível da letra do artigo
120.º, n.º 1, alínea a), por si só, mas apenas da conjugação desta letra com o sentido da situação gerada pela não articulação da reforma processual penal com o preceituado no Código Penal. O sentido da letra da norma penal seria então determinado pelo significado da própria inércia legislativa.
Como tal raciocínio resultaria de uma interpretação da inércia legislativa quanto à reformulação do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), ele conduziria a uma interpretação actualista do seu texto. Seria, no entanto, ainda o texto da lei - o texto mantido - que conduzia à identificação do critério correspondente fornecido pelo Código de Processo Penal de 1987.
É este, pois, um quadro de entendimento da invocada interpretação actualista.
10. Impõe-se, então, saber se a referida interpretação actualista do artigo
120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982, não corresponde, na realidade, a uma encapotada analogia, pela qual se estaria a colmatar uma
«lacuna de regulamentação» gerada pela reforma do Processo Penal.
A citada interpretação actualista, que converte a referência contida no artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 ao conteúdo de normas do Código Processual Penal de 1929 no conteúdo mais próximo ou semelhante no novo sistema processual penal, ultrapassa, na verdade, uma mera determinação do sentido actual das palavras. Uma determinação do sentido actual das palavras pode acontecer, por exemplo, quando se verifica uma evolução no campo abrangido por um conceito, por se virem a integrar nele realidades anteriormente não pensáveis, como, por exemplo, ao integrar-se no conceito de arma, primitivamente pensado para meios mecânicos, as armas químicas (cf., sobre este exemplo, Arthur Kaufmann, Analogie und Natur der Sache, 1982, pág. 70). A actualização do sentido do texto que agora se analisa implica, diferentemente, uma conversão dos conceitos integrantes do campo normativo primitivo em conceitos de um sistema diverso. Essa diversidade dos sistemas abrange o sentido e função das fases processuais, revelando-se, desde logo, no facto de a direcção do inquérito caber ao Ministério Público que formula a acusação, enquanto a direcção da instrução preparatória pertencia ao juiz de instrução. Por outro lado, a constituição de arguido, que no sistema antigo não se verificava num momento formalmente estabelecido nem tinha uma dimensão garantística, detém neste sistema essa dimensão, podendo ser decorrente de um acto de vontade do próprio agente (artigo
59.º, n.º 2, do Código de Processo Penal). A conversão operada pela interpretação realizada não é, deste modo, uma conversão necessária ou a única alternativa em face da manutenção do texto legal. Com efeito, há quem discuta se a transposição da instrução preparatória para o inquérito abrangerá todos os actos do inquérito ou apenas os de natureza instrutória levados a cabo nessa fase em que intervenha um juiz, ou ainda, se a dimensão garantística da constituição de arguido que se instaurou em 1987 poderia acarretar, em todos os casos, a interrupção da prescrição, estando-lhe sempre associado um momento processual revelador da expressão de vontade punitiva do Estado.
Perante as dificuldades a que obstaria uma conversão natural de um sistema no outro, é necessário concluir que os raciocínios analógicos que permitiram ao intérprete, no acórdão recorrido, manter a aplicação do artigo
120.º, n.º 1, alínea a), através de uma interpretação actualista partem de opções sobre a compatibilização do Código Penal com o Código de Processo Penal que não são livremente disponíveis pelo intérprete, mas que pela sua repercussão em direitos fundamentais são objecto necessário de reserva de lei (artigo
164.º, alíneas b) e c), da Constituição).
Deste modo, conclui-se que o artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na dimensão normativa que realiza a conversão da notificação para a instrução preparatória na notificação para o primeiro interrogatório do arguido no inquérito, embora não tenha que ser necessariamente qualificado como uma norma criada por analogia, no sentido clássico da distinção entre analogia e interpretação, é pelo menos o resultado de uma interpretação actualista da lei baseada em raciocínios analógicos, que implicam opções constitutivas de um regime, as quais pertencem à reserva de lei da Assembleia da República prevista no artigo 164.º, alíneas b) e c), da Constituição.
Poder-se-á, assim, concluir para quem perfilhe a concepção dogmática mais clássica sobre a interpretação e analogia que estaremos necessariamente perante um resultado interpretativo que ultrapassa o sentido possível das palavras e que, por isso, já não tem fundamento no pensamento legislativo.
Mesmo que assim não se entenda, admitindo-se que seja discutível que se tenha procedido a uma integração de lacunas por analogia, na medida em que há um critério jurídico que o intérprete retirou ainda do texto legal através da sua conversão na linguagem do novo sistema processual penal, pelo menos sempre concluirá que há uma colisão entre as possibilidades interpretativas utilizadas no caso e as autorizadas ao intérprete pela reserva de lei, violando-se o artigo
29.º, n.ºs 1 e 3 (entre nós com a concretização qualificada do artigo 164.º, alíneas b) e c), da Constituição). Em suma, para esta última linha de pensamento, a interpretação realizada do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), independentemente da sua qualificação enquanto espécie de interpretação, confere ao referido artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 uma dimensão normativa que pressupõe uma ponderação constitutiva de soluções jurídicas, pelo intérprete, com implicação na configuração das consequências do crime, tarefa da competência da Assembleia da República (artigo 164.º, n.º 1, alíneas b) e c)) e que, por isso, também não está contida na intenção legislativa.
11. Adoptado este entendimento, por qualquer das vias enunciadas, pode o Tribunal deixar de enfrentar as questões da qualificação como interpretação extensiva ou analogia do sentido normativo sub judicio do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 e, consequentemente, não terá que referir-se
à questão de uma eventual proibição constitucional da interpretação extensiva no Direito Penal. Com efeito, nem é consensual na doutrina a validade construtiva do conceito de interpretação extensiva, como conceito limítrofe da analogia
(cf. Castanheira Neves, «O princípio da legalidade criminal», em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia, vol. I, 1984, pág. 308 e seguintes), nem muito menos há consenso na doutrina portuguesa sobre a não proibição constitucional de tal figura no Direito Penal (cf., entre outros, com opiniões divergentes entre si, Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, vol. I, 1992, pág. 64; Sousa e Brito, «Lei Penal na Constituição», em Estudos sobre a Constituição, 2.º vol., 1978, pág. 253; Teresa Beleza, Direito Penal,
2.ª ed., 1985, pág. 491 e seguintes; e Fernanda Palma, Direito Penal - Parte Geral, 1994, pág. 94 e seguintes).”
Na sequência desta argumentação, o Tribunal Constitucional, nesse Acórdão n.º 205/99, julgou inconstitucional o artigo
120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 (redacção originária), interpretado no sentido de que a interrupção do prazo prescricional se verifica a partir da notificação para as primeiras declarações do arguido na fase do inquérito, por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição.
2.4. Recordadas a evolução legislativa relevante e a pertinente jurisprudência deste Tribunal, é tempo de atentar no caso sub judicio.
A decisão recorrida encerra duas recusas de aplicação de normas, com fundamento em inconstitucionalidade – uma visando normas relativas à interrupção da prescrição do procedimento criminal e outra atingindo normas concernentes à suspensão da mesma prescrição –, tendo sido explicitamente afirmado que a primeira questão era de conhecimento prioritário, uma vez que a interrupção era mais gravosa para o arguido do que a suspensão da prescrição. Analisaremos de seguida essas questões pela referida ordem, fundamentalmente por se entender que a interrupção da prescrição consome a sua mera suspensão.
2.4.1. Relativamente à recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, das normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal de 1982 (redacção originária), na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à causa de interrupção da prescrição do procedimento criminal aí prevista, assente (pelas razões expostas supra, 2.2.) que se trata de uma questão de constitucionalidade normativa idónea a constituir objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, e tendo presente a orientação traçada a propósito da “interpretação actualista” da alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo 120.º (recordada supra, 2.3.), impõe-se a prolação de idêntico juízo de inconstitucionalidade.
Como se salienta na alegação do recorrente, que seguiremos de perto, no caso ora em apreciação é evidente que a equiparação – hipoteticamente delineada na decisão recorrida – se configura até como mais substancialmente inovatória e “extensiva” do que a realizada por parte das decisões que foram fulminadas com o juízo de inconstitucionalidade, emitido pelos acórdãos acima referenciados.
Na verdade, marcação de julgamento no processo de ausentes, prevista no Código de Processo Penal de 1929, e declaração de contumácia, nos termos do estatuído nos artigos 336.° e 337.° do Código de Processo Penal de 1987, são actos processuais perfeitamente heterogéneos, dotados de um sentido normativo, não apenas diverso, mas, de certo modo, antagónico.
A designação de dia para julgamento, em processo de ausentes, nos termos do artigo 564.° do Código de Processo Penal de 1929 assegurava, de pleno, a continuação do processo para a fase do julgamento, realizada à revelia do réu: era, pois, um acto processual que, funcionalmente, assegurava a transição do processo penal para a fase de julgamento, implicando a realização da audiência e uma eventual condenação do réu à revelia, com os efeitos previstos no artigo 571.° do Código de Processo Penal.
Pelo contrário, a declaração de contumácia, assente no pressuposto da impossibilidade de realização de julgamento “à revelia”, tem um sentido normativo e efeitos procedimentais perfeitamente diversos e opostos, implicando “a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou
à detenção do arguido”, submetido aos efeitos e sanções “colaterais” que eram tipificadas no artigo 337.° do Código de Processo Penal de 1987.
Note-se, por outro lado, que a norma desaplicada não faz apelo, nem inclui na sua fattispecie, qualquer cláusula geral ou de remissão, que tomasse possível a inclusão de situações futuras por ela abarcáveis (cf. acórdão n° 449/02, em que se não julgou inconstitucional a norma do artigo
119.°, n.° l, do Código Penal de 1982, quando interpretada no sentido de a cláusula de remissão para as “situações especialmente previstas na lei” permitir a subsunção, como causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, da declaração de contumácia, supervenientemente prevista pela lei de processo penal): bem pelo contrário, a norma do artigo 120.°, n.° l, alínea d), contém expressa referência e previsão a um acto processual perfeitamente definido e identificado, sem contemplar qualquer possibilidade de adequação ou remissão para outras estruturas ou formas de tramitação do processo penal.
Conclui-se, assim, sem necessidade de mais extensas considerações, pela inconstitucionalidade, por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e
3, da Constituição, das normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal de 1982 (redacção originária), na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada, como causa de interrupção da prescrição do procedimento criminal, à marcação de dia para julgamento em processo de ausentes, aí prevista.
2.4.2. Relativamente à recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, das normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 (redacção originária), na interpretação, dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no “Assento” n.º 10/2000, segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, a solução não teria de ser necessariamente no mesmo sentido, atentos a diferente natureza e os distintos efeitos das duas figuras (interrupção e suspensão) e o carácter taxativo do elenco das causas de interrupção do originário artigo 120.º do Código Penal de 1982 em confronto com a norma de remissão para outras
“situações especialmente previstas na lei” como causas de suspensão constante do n.º 1 do 119.º do mesmo Código, o que levou, como já se referiu, a que este Tribunal, no Acórdão n.º 449/02 (Diário da República, II Série, n.º 287, de 12 de Dezembro de 2002, pág. 20 295), não tivesse julgado inconstitucional a norma do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, quando interpretada no sentido de abranger, como causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, a declaração de contumácia.
No entanto, no presente caso, entende-se, pelas razões expendidas pelo próprio recorrente, na sua alegação, que não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento desta parte do objecto do recurso, por força do disposto no n.º 5 do artigo 70.º da LTC e atenta a natureza obrigatória do recurso previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal.
Trata-se de entendimento já seguido por este Tribunal nos Acórdãos n.ºs 281/01 e 282/01 (o primeiro publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., pág. 587), também em casos de recursos interpostos pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, de decisões que haviam recusado, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação das normas constantes dos artigos 119.º do Código Penal de 1982
(redacção originária), e 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação, feita pelo “Assento” do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2000, de que, no domínio de vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão do procedimento criminal, sem que previamente tivesse sido interposto pelo mesmo Ministério Público o recurso obrigatório previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal “de quaisquer decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça”.
Escreveu-se no Acórdão n.º 281/01 (cuja fundamentação foi reproduzida no Acórdão n.º 282/01):
“4. Na verdade, segundo o n.º 5 do artigo 70.º citado [da LTC], «não
é admitido recurso para o Tribunal Constitucional de decisões sujeitas a recurso ordinário obrigatório, nos termos da respectiva lei processual».
Ora, no presente recurso, a decisão recorrida, afastando a aplicação do assento n.º 10/2000 por inconstitucionalidade, está, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 446.º do Código de Processo Penal, sujeita a recurso obrigatório por parte do Ministério Público.
Sucede, porém, que o Código de Processo Penal qualifica este recurso como um recurso extraordinário (...); assim, coloca-se a questão de saber se este caso está ou não abrangido pelo citado n.º 5 do artigo 70.º da Lei n.º
28/82.
5. Para o efeito, cabe averiguar se a razão que justifica o regime previsto neste n.º 5 – apenas recorrer para o Tribunal Constitucional da decisão que proferir a última palavra na ordem dos tribunais que julgaram a causa – ocorre no caso presente, e, em caso afirmativo, se deve prevalecer, não obstante se tratar, por um lado, de um recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, e, por outro, de um recurso obrigatório extraordinário.
É sabido que a Lei n.º 28/82 apenas impõe a prévia exaustão das vias de recurso no âmbito dos recursos interpostos ao abrigo do disposto nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, ou seja, interpostos de decisões que aplicaram norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade foi suscitada durante o processo; e que, diferentemente, abre recurso directo para o Tribunal Constitucional de decisões não definitivas (ainda susceptíveis de recurso ordinário) de recusa de aplicação de normas, pelos mesmos motivos, como é o caso presente. Ora, quer num caso, quer no outro, a não ser interposto previamente o recurso obrigatório dentro da ordem a que pertence o tribunal que julgou a causa, pode vir a subsistir uma decisão sujeita a recurso obrigatório que versa exactamente sobre a norma julgada pelo Tribunal Constitucional; e o problema põe-se da mesma forma quando é o recurso previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal que está em causa, apesar de ser qualificado por lei como recurso extraordinário.
Vejamos o caso, precisamente, do recurso imposto por este preceito.
A ser julgado primeiro o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por recusa de aplicação de uma norma, se o Tribunal Constitucional confirmar o juízo de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, subsiste uma decisão contrária a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça – logo, ainda sujeita a recurso obrigatório, que não pode deixar de ser interposto.
Interposto esse recurso – e vamos admitir que chegamos ao Supremo Tribunal de Justiça –, este Tribunal, para respeitar o caso julgado formado no processo sobre a questão de constitucionalidade, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 80.º da Lei n.º 28/82, tem de alterar a orientação jurisprudencial que definiu, revendo o assento, sem ter tido a oportunidade de se pronunciar sobre a decisão que recusou a respectiva aplicação por inconstitucionalidade. Do ponto de vista das relações institucionais entre o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional, há-de concordar-se não ser esta a melhor solução.
Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, o intérprete há-de presumir, ao fixar o sentido da lei, que o legislador consagrou a solução mais acertada. E essa directriz leva-nos a não distinguir, para efeitos de aplicação do disposto no n.º 5 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, entre recursos ordinários e o recurso previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso, por não ter sido previamente interposto o recurso obrigatório previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal.”
É entendimento que ora se reitera, sendo certo que dele não resulta, contrariamente ao sustentado na decisão recorrida, qualquer
“fraude ao sistema constitucional de garantia da Constituição”. Na verdade, as decisões das instâncias penais contrárias a jurisprudência uniformizada são decisões necessariamente precárias porque sujeitas a obrigatória impugnação na ordem dos tribunais judiciais e, assim, fatalmente destinadas a serem substituídas por decisões das instâncias superiores, que as confirmarão ou revogarão. O eficaz funcionamento do sistema de fiscalização da constitucionalidade não reclama a imediata abertura de recurso para o Tribunal Constitucional dessas decisões “precárias”, bastando-se com a normal admissibilidade de recurso das decisões “definitivas” das instâncias superiores, a interpor, nos termos gerais, designadamente nas hipóteses das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 70.º, pelas partes para tal legitimadas. O que desvirtuaria quer o sistema de fiscalização da constitucionalidade quer o sistema de revisão de jurisprudência uniformizada seria a artificial provocação, por iniciativa de juízes de instância discordantes da doutrina de determinado “assento”, da intervenção, a destempo, do Tribunal Constitucional, perturbadora daquele sistema de revisão, que deve decorrer no âmbito da ordem jurisdicional comum, sem prejuízo – repete-se – de o resultado final ficar sempre sujeito ao controlo de constitucionalidade, nos termos gerais.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucionais, por violação do artigo
29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição, as normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal de 1982 (redacção originária), na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada, como causa de interrupção da prescrição do procedimento criminal, à marcação de dia para julgamento em processo de ausentes, aí prevista, assim confirmando, nesta parte, a decisão recorrida; e
b) Não tomar conhecimento do objecto do recurso na parte relativa à recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, das normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 (redacção originária), na interpretação, dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no
“Assento” n.º 10/2000, segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal
Sem custas.
Lisboa, 23 de Setembro de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto (Acompanhei a decisão, na sequência da orientação adoptada pelos Acórdãos n.ºs 281/01 e 282/01, embora não tenha conseguido dissipar inteiramente as dúvidas sobre a adequação da solução adoptada, já que esta tem como consequência que, sempre que existir um acórdão de uniformização de jurisprudência, fica limitada a faculdade de todo e qualquer tribunal provocar, mediante a recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, a intervenção imediata do Tribunal Constitucional, para decisão da questão de constitucionalidade normativa)
Benjamim Silva Rodrigues (Vencido de acordo com a declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto ao conhecimento do recurso, por entender que o seu objecto extravasa a competência ou os poderes de cognição deste Tribunal.
1. Na verdade, propende-se para considerar que não traduz uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa o problema atinente à forma ou ao modo como o direito ordinário é interpretado, para daí se concluir que a norma alcançada por via interpretativa, ao ultrapassar o campo semântico dos conceitos jurídicos empregues pelo legislador (e por esse modo procedendo a uma extensão ou analogia desses mesmos conceitos), viola o princípio da legalidade que constitui princípio constitucional do direito criminal (e do direito fiscal), consequentemente se postando essa interpretação como inconstitucional por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Lei Fundamental.
Esta posição sedimenta-se na jurisprudência deste Tribunal, actualmente maioritária, como se pode constatar pelos Acórdãos n.ºs
196/2003 e 197/2003, inéditos, relativos à questão paralela da legalidade e da tipicidade fiscais, de que foi relator o autor deste voto de vencido, onde se seguiu, de perto, a doutrina do Acórdão n.º 674/99 (publicado na 2.ª Série do Diário da República, de 25 de Fevereiro de 2000), que mais extensamente tratou a questão, e a que o autor deste voto aderiu por inteiro.
2. Disse-se, a tal propósito, neste aresto, ao enfrentar-se a questão de saber se pode considerar-se um real problema de inconstitucionalidade normativa quando em causa um processo interpretativo que, por não ter respeitado os limites da interpretação da lei criminal decorrentes do princípio da legalidade, conduz a uma analógica ou extensiva aplicação de determinados preceitos:
“(...)
Resta, porém, saber se essa questão se reconduz a uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, isto é, a uma questão que caiba ao Tribunal Constitucional conhecer, no âmbito do recurso de constitucionalidade.
50. O Tribunal Constitucional, pela sua 2.ª Secção, começou por considerar que, em tais casos, se estaria perante «a inconstitucionalidade do acto de julgamento, e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica», pelo que se lhes não aplicaria o sistema de fiscalização da constitucionalidade, ao qual estão «apenas sujeitos os actos do poder normativo» (cf. Acórdão n.º
353/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º vol., págs. 571 e seguintes).
Contudo, mais tarde, no Acórdão n.º 141/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., págs. 599 e seguintes), o Tribunal Constitucional, pela sua 1.ª Secção, embora com o voto de vencido do Ex.mo Presidente, Cons. Cardoso da Costa, deu resposta afirmativa ao problema. Afirmou-se então:
«De facto, poderia sustentar-se que o Tribunal Constitucional carecia de competência para conhecer do objecto deste recurso, porquanto não estaria em causa propriamente matéria normativa (norma inconstitucional, numa certa interpretação da mesma), mas matéria decisória (o Supremo Tribunal de Justiça, ao confirmar a decisão condenatória da primeira instância, teria aplicado analogicamente uma norma incriminatória, em contravenção imediata ao disposto no artigo 1.º, n.º 3, do Código Penal, só mediatamente se podendo considerar que esta decisão judicial teria violado os n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição (...).
Não obstante o carácter sugestivo deste raciocínio, crê-se que o esmo não procede. De facto, o recorrente suscitou no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a questão de inconstitucionalidade da norma (...). Sustentou aí que o tribunal havia interpretado extensivamente ou aplicado analogicamente certa norma incriminatória, sendo tal interpretação ou aplicação analógica, através da criação de uma norma análoga aplicável a um caso omisso, contrárias
à Constituição (no caso de se estar perante uma interpretação extensiva, seria também esta inconstitucional tal como o seria, por idêntica razão, o n.º 3 do artigo 1.º do Código Penal).
Ora, num plano perfunctório de análise de verificação dos pressupostos do recurso de constitucionalidade, ou seja, numa avaliação prima facie de tais pressupostos, entende-se que os mesmos se verificam no caso concreto. Saber se a interpretação perfilhada foi ou não inconstitucional faz parte já do conhecimento da questão de fundo ou de mérito.
(...).»
51. Esta última jurisprudência, porém, não se sedimentou. Com efeito, posteriormente, o Tribunal Constitucional veio a entender, nomeadamente no Acórdão n.º 634/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29.º vol., págs. 243 e seguintes), no Acórdão n.º 221/95 (Diário da República, II Série, de 27 de Junho de 1995), no Acórdão n.º 756/95, (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
32.º vol., págs. 775 e seguintes), no Acórdão n.º 682/95 (inédito) ou, mais recentemente, no Acórdão n.º 154/98 (inédito), que hipóteses em que se questionem certas interpretações normativas por ofensa do princípio da legalidade penal – ou hipóteses idênticas, no âmbito do respeito pelo princípio da legalidade fiscal – não traduzem verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa, mas reflectem antes questões de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento.
Assim, pode ler-se no citado Acórdão n.º 221/95:
«Portanto, o que a recorrente questiona, no essencial, no recurso interposto no tribunal a quo, não é a norma (...) interpretada em desarmonia com a Constituição, mas, antes, a decisão judicial (...) que, inconstitucionalmente, e na sua tese, tê-la-ia prejudicado, ao aplicar certa norma ao seu caso, através de um método de interpretação colidente com as regras gerais de interpretação das leis fiscais e os princípios constitucionais na matéria (...).»
E, por outro lado, escreveu-se no já mencionado Acórdão n.º 154/98:
«Pretende o recorrente que o Tribunal recorrido interpretou a norma do artigo 292.º do Código Penal de forma extensiva, aplicando-o analogicamente, desde logo violando o disposto no n.º 1 do artigo 29.º da Constituição.
No entanto, não é o controlo normativo – legitimante do recurso de constitucionalidade – que está em causa. (...)
Ora, esse objectivo não se compagina com aquele controlo normativo, abrindo via, quando muito, a um recurso de amparo que não está entre nós previsto.»
E sublinhe-se também que no anteriormente referido Acórdão n.º
682/95 se entendeu sugestivamente que, em tais hipóteses, «o que está em causa não é uma específica dimensão normativa do preceito», mas antes «a determinação do seu âmbito de aplicação, de acordo com a sua ratio», tarefa que «corresponde apenas à subsunção jurídica do caso, não havendo nenhum sentido específico da norma confrontável com a Constituição». Por isso, aí mesmo se concluiu que não estaria em causa «qualquer específica questão de constitucionalidade, mas apenas um problema de averiguação da intenção normativa, objectivamente considerada, e de subsunção».
52. Mais recentemente, porém, esta posição do Tribunal – que já não era totalmente unânime (cfr. declarações de voto do Ex.mo Conselheiro José de Sousa Brito apostas ao Acórdão n.º 634/94 e ao Acórdão n.º 756/95) – parece ter-se inflectido através do Acórdão n.º 205/99 (Diário da República, II Série, de 5 de Novembro de 1999) e do Acórdão n.º 285/99 (Diário da República, II Série, de 21 de Outubro de 1999).
Com efeito, entendeu-se no citado Acórdão n.º 205/99:
«É objecto do presente recurso de constitucionalidade o confronto de uma interpretação do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 com os artigos 29.º, n.ºs 1 e 2, e 32.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição.
Consubstancia um tal confronto uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa para cujo conhecimento o Tribunal Constitucional tem competência ou estar-se-á, apenas, perante o pedido de apreciação de uma eventual contradição da decisão recorrida, na sua substância meramente decisória, com a Constituição?
Impõe-se o entendimento segundo o qual o Tribunal Constitucional se confronta, neste caso, com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, apesar de tal questão resultar de o tribunal recorrido ter atingido um resultado interpretativo eventualmente proibido, em face das restrições interpretativas impostas pelo princípio da legalidade em direito penal.
Com efeito, várias razões intercedem a favor de que a questão colocada não pretende suscitar o mero controlo pelo Tribunal Constitucional da decisão recorrida.
Assim, desde logo, o recorrente não submete à apreciação do Tribunal Constitucional um processo interpretativo utilizado pontualmente na decisão recorrida, isto é, a inserção do caso concreto num âmbito normativo pré-determinado pelo julgador. Não é um tal momento de sotoposição do caso no quadro lógico decorrente da interpretação da norma o que verdadeiramente se questiona, mas antes um certo conteúdo interpretativo atribuído ao artigo
120.º, n.º 1, alínea a), o qual é identificado. Questiona-se, sem dúvida, se a fixação de sentido da norma, segundo a qual esta abrangerá, em geral, na interrupção da prescrição, a notificação ao arguido do despacho do Ministério Público para interrogatório no inquérito e a realização deste é uma interpretação normativa compatível com a Constituição, em face dos artigos 29.º, n.ºs 1 e 3, e 32.º, n.ºs 1 e 4. É, assim, o conteúdo final da interpretação, ou dito de outro modo, o resultado interpretativo pelo qual se atinge a norma que decide o caso, norma que eventualmente não tem competência constitucional para o decidir, que é submetido ao controlo de constitucionalidade.
A isto acresce que o referido conteúdo interpretativo não é apenas determinado pelo caso concreto, mas é referido com elevada abstracção, na base de uma linha jurisprudencial anterior que utilizou a mesma perspectiva interpretativa para casos idênticos.
Emerge, assim, claramente, de um momento interpretativo a questão de constitucionalidade. Não se trata de um momento meramente aplicativo da norma ao caso concreto, isto é, de uma situação em que o recorrente suscite apenas a correcção lógico-jurídica da inclusão do caso na norma. Trata-se, antes, da indicação, com suficiente autonomia, dos critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos pelo julgador ao texto legal para decidir casos semelhantes. Neste caso, foi enunciada pelo julgador uma dimensão normativa que, segundo o recorrente, não corresponde fielmente às palavras do legislador, violando, por isso, o princípio da legalidade, sendo essa dimensão normativa que o recorrente pretende ver apreciada.
Ora, o Tribunal Constitucional não pode deixar de controlar dimensões normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultantes de uma aplicação analógica, em casos em que estejam constitucionalmente vedados certos modos de interpretação ou a analogia. O resultado do processo de interpretação ou criação normativa (tanto de meras dimensões normativas como de normas autónomas), ínsito na actividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de controlo de constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativa, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgador.
Questão afim da anterior é a de saber se o objecto do recurso é efectivamente o artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal ou antes uma norma construída pelo julgador através de um processo de integração de lacuna por analogia, nos termos do artigo 10.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil. Note-se, porém, que em ambos os casos estaremos confrontados com uma norma cuja conformidade à Constituição é sindicável perante o Tribunal Constitucional. Na primeira hipótese, concluir-se-á que a aplicação analógica ainda constitui uma actividade interpretativa, em sentido amplo, dando como resultado uma certa dimensão normativa que pode contrariar normas ou princípios constitucionais. Na segunda hipótese, estará em causa uma norma não escrita igualmente susceptível de afrontar a Constituição quer quanto ao seu conteúdo quer quanto à sua génese
(a circunstância de ser obtida mediante uma aplicação analógica vedada pelo artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição feri-la-á de inconstitucionalidade material).
Todavia, esta questão acaba por ser de cunho puramente teorético na medida em que estará sempre em causa a questão de saber se é compatível com a Constituição a norma que determina a interrupção da prescrição obtida a partir do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. E, independentemente de estar em causa uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex certa que lhe é ínsita.»
Também este aresto não obteve unanimidade.
Com efeito, o Ex.mo Conselheiro Presidente manifestou opinião contrária à doutrina que obteve vencimento – em voto de vencido que juntou a este mesmo Acórdão n.º 205/99 – tendo então considerado que se não deveria conhecer do recurso, «por entender que o seu objecto extravasa o âmbito da competência e do poder de cognição do Tribunal», e que a argumentação desenvolvida em contrário no acórdão não punha em crise a conclusão «de que, ao cabo e ao resto, já não está em causa, na situação, uma questão de inconstitucionalidade ‘normativa’ – tal como o não estava nos casos versados nos Acórdãos n.ºs 682/95 e 221/95, os quais (...) não são ‘estruturalmente’ diferentes do ora em apreço».
Posição idêntica de afastamento relativamente a esta nova corrente jurisprudencial viria também posteriormente a ser manifestada pelo ora relator, através de declaração de voto aposta, por sua vez, ao mencionado Acórdão n.º
285/99.
53. Acerca da questão em apreço, designadamente da eventual extensão do sistema de controlo da constitucionalidade às normas que se extraem da integração de lacunas, afirma Rui Medeiros (A Decisão de Inconstitucionalidade
– Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, págs. 340 a 342):
«A conclusão adoptada não significa, porém, que o Tribunal Constitucional possa fiscalizar a constitucionalidade, não já da norma determinada através do processo de integração de lacunas, mas antes do próprio processo de obtenção da regra aplicável. A questão ganha particular relevância nos domínios em que existe uma proibição constitucional de recurso à analogia.
É o que sucede, concretamente, com o princípio constitucional da legalidade em matéria penal.
Há quem entenda que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que, aplicando analogicamente uma norma incriminadora, violam o princípio constitucional da legalidade em matéria penal.
Não duvidamos que essa é a solução mais consentânea com a lógica do recurso de amparo ou da queixa constitucional. Mas, já o sabemos, o legislador constitucional português não quis introduzir um sistema semelhante ao da acção constitucional de defesa de direitos fundamentais. Ora, independente da questão de saber se a violação do nullum crimen sine lege stricta envolve ou não uma inconstitucionalidade directa, a verdade é que, quando invoca a proibição da analogia, o que o recorrente suscita é ‘a inconstitucionalidade do acto de julgamento e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica’. Sem dúvida que, nos casos em que um tribunal interpreta uma lei em desconformidade com a Constituição, a inconstitucionalidade não pode apenas ser imputada ao legislador, pois, sendo possível atribuir à lei um sentido conforme com a Constituição, a disposição legal em si é válida. Mas, na hipótese aqui em apreciação, a inconstitucionalidade, ainda que se convole numa inconstitucionalidade material, reporta-se unicamente ao processo de integração de lacunas adoptado pelo tribunal. Ora, uma coisa é dizer que a norma que um tribunal extrai, ainda que por analogia, de um acto normativo pode ser fiscalizada pelo Tribunal Constitucional, outra, bem diferente, á afirmar que a própria decisão jurisdicional constitui um acto normativo sindicável pelo Tribunal Constitucional. De resto, se assim não fosse, todas as decisões judiciais, enquanto tais, seriam susceptíveis de fiscalização da constitucionalidade (...). E assim se defraudaria a Constituição, que expressamente pretendeu que o controlo da constitucionalidade fosse um controlo eminente normativo.
Tudo somado, é possível concluir que, nos casos em que o próprio legislador pode (sem ofender a Constituição) estabelecer por via legislativa solução idêntica àquela que resultava da interpretação ou integração inconstitucional da lei realizada pelo tribunal a quo, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso.»
É para a transcrita fundamentação lógica – válida necessariamente, tanto para as formas não admissíveis de interpretação extensiva, como para a interpretação analógica – que ora se remete, assim se confirmando a jurisprudência deste Tribunal seguida entre 1994 e 1998 e vertida nos arestos anteriormente citados.
(...)
De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma «operação equivalente», designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr. declaração de voto do Cons. Sousa e Brito ao citado Acórdão n.º 634/94, bem como o já mencionado Acórdão n.º 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.
Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens –, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu «sentido natural» (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento – alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional – deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa. Assim, por exemplo, e no caso dos autos, para decidir a questão de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional seria, em primeira linha, chamado a resolver as controvérsias doutrinais respeitantes à factualidade típica do crime de burla (cfr., verbi gratia, José de Sousa Brito, «A burla do artigo 451.º do Código Penal – Tentativa de sistematização», Scientia Ivridica, tomo XXXII, 1983, págs. 131 e seguintes e Maria Fernanda Palma e Rui Pereira, «O Crime de Burla no Código Penal de 1982-95», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXV, 1994, págs. 321 e seguintes).
(...).”
3. Ora, como se disse recentemente no Acórdão proferido no Proc. n.º 9/03, da 3.ª Secção, a propósito de caso em tudo paralelo ao destes autos, entendimento esse a que inteiramente se adere, “os considerandos transcritos (...) não podem (...) ser postos em causa pela circunstância de, in casu, nos postarmos perante um recurso esteado na alínea a) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei n.º 28/82, isto é, numa situação em que ocorreu uma recusa de aplicação normativa fundada na sua inconstitucionalidade.
É que, em rectas contas, aquilo que o Juiz a quo veio a considerar desarmónico com a Lei Fundamental foi uma interpretação dada a um dado conjunto normativo (interpretação essa já seguida pelos tribunais ou, ao menos, por alguns tribunais) e da qual resultava, ao fim e ao resto, um entendimento que extravasava o campo semântico natural dos conceitos jurídicos utilizados pelo legislador, o que, por consequenciar uma interpretação
“extensiva” ou “analógica”, conflituaria com o princípio da legalidade criminal.
Ora, se assim é, então haverá que concluir-se que aquilo que, verdadeiramente, foi censurado por aquele Juiz foi, não o confronto directo com a Constituição por parte do conjunto normativo constituído pelos artigos 335.º e 337.º da versão originária do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, e da alínea d) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, mas sim a determinação do âmbito aplicativo que a jurisprudência dos tribunais (ou de alguns tribunais) deu
àquele mesmo conjunto normativo.
Pelo que, também aqui, se não colocará uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Benjamim Silva Rodrigues