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Proc. N.º 642/02 Plenário Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Requerente e Pedido
O Provedor de Justiça, com a legitimidade que lhe confere a alínea d) do n.º 2 do artigo 281º da Constituição da República Portuguesa, vem requerer a declaração, com força obrigatória geral, da ilegalidade da norma contida na segunda parte do n.º 2 do artigo 18º do Decreto-Lei n.º 440/99, de 2 de Novembro, na redacção introduzida pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 184/2001, de 21 de Junho (Aprova o estatuto dos serviços de apoio do Tribunal de Contas), tendo em conta o preceituado no artigo 112º, n.º 2, da Constituição.
2. Conteúdo da Norma
A referida norma tem o seguinte teor:
“Artigo 18º
[...]
1 – [...]
2 - A mudança de escalão é automática e oficiosa e depende da permanência de três anos no escalão imediatamente anterior, com classificação não inferior a Bom, salvo quanto às carreiras de auditor e de consultor, em que a progressão está condicionada a avaliação do desempenho, nos termos a definir em regulamento a aprovar pelo Presidente do Tribunal de Contas, sob proposta do dirigente máximo da Direcção-Geral do Tribunal de Contas, observados os princípios gerais fixados na lei.
3 - [...]
3. Fundamentação do Pedido
O Provedor de Justiça alegou, em síntese, o seguinte:
O Decreto-Lei n.º 184/2001, de 21 de Junho, pretendeu, nas próprias palavras do seu preâmbulo, preencher “uma lacuna do estatuto remuneratório das carreiras de auditor e consultor do Tribunal de Contas”, estatuto esse consagrado no artigo
30º, n.º 2, alínea e), da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, e desenvolvido nos artigos 14º, n.º 1, 15º, n.º 1, e 18º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 440/99, de 2 de Novembro, na sua versão originária.
O artigo 30º, n.º 2, alínea e), da Lei n.º 98/97, determina, em sede de princípios orientadores sobre os “serviços de apoio do Tribunal de Contas”, que o estatuto remuneratório das carreiras de auditor e consultor será equiparado ao dos juízes de direito.
O Decreto-Lei n.º 440/99, na sua versão originária, ao desenvolver os princípios estabelecidos no citado artigo 30º da Lei n.º 98/97 e expressamente invocando este diploma legal, bem como a disposição constitucional que dá ao Governo competência para desenvolver leis de bases (artigo 198º, n.º 1, alínea c), da CRP), definiu o estatuto dos serviços de apoio daquele órgão jurisdicional, também estabelecendo o regime do respectivo pessoal.
Os artigos 14º, n.º 1, e 15º, n.º 1, procedem à equiparação, para efeitos de progressão, das carreiras de auditor e consultor à carreira dos magistrados judiciais.
Por sua vez, o artigo 18º, n.º 2, do mesmo diploma, ao determinar as condições de progressão nas carreiras integradas no corpo especial de fiscalização e controlo da Direcção-Geral do Tribunal de Contas, onde os auditores e consultores se inserem, prevê que a mudança de escalão seja feita de acordo com o estabelecido no Estatuto dos Magistrados Judiciais.
De acordo com o estatuto remuneratório dos juízes de direito de 1ª instância, a progressão nos vários escalões processa-se sem que a classificação de serviço seja ponderada para esse efeito, conforme previsto no regime definido pelos artigos 33º a 37º do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
O Decreto-Lei n.º 184/2001, alegando o objectivo de assegurar o bom funcionamento dos serviços de apoio do Tribunal de Contas, defende, no seu preâmbulo, que a progressão nas carreiras de auditor e de consultor deve ser estimulada com recurso a um regime de avaliação do respectivo desempenho.
Ao proceder ao desenvolvimento dos princípios e regras estabelecidos nos n.ºs 2,
3 e 4 do artigo 30º da Lei n.º 98/97, está o Governo a exercer a sua competência legislativa prevista no artigo 198º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa.
Tratando-se de matéria não reservada à Assembleia da República, podia o Governo ter optado por revogar o artigo 30º da Lei n.º 98/97, assim substituindo as bases de um regime jurídico por outras. Podia também, caso considerasse politicamente mais indicado, apresentar o Governo ao Parlamento uma Proposta de Lei que modificasse o teor do artigo 30º da citada Lei, designadamente incidindo sobre a alínea e) do seu n.º 2.
O Governo optou por não seguir uma via nem a outra, invocando expressamente a Lei em vigor, que nesta matéria fixa as bases do sistema jurídico em apreço e alegando tratar-se do preenchimento de uma lacuna.
Ora, a lacuna é um fenómeno que se não encontra no quadro formado pela Lei n.º
98/97 e pela versão originária do Decreto-lei n.º 440/99. Ocorre assim uma inovação normativa que não se limita a integrar lacunas, mas sim a afirmar uma vontade político-legislativa distinta da anteriormente vigente.
Ao legislar em desenvolvimento dos princípio enunciados, enquanto bases e princípios orientadores, na Lei n.º 98/97, está o Decreto-Lei em causa submetido a esta, no quadro da qual se deve mover qualquer ulterior desenvolvimento legislativo, salvo revogação dessas mesmas bases.
De acordo com a alteração introduzida pelo Decreto-lei n.º 184/2001 no artigo
18º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 440/99, estabelece-se que a progressão nas carreiras de auditor e consultor está condicionada a avaliação de desempenho, em termos a definir em regulamento.
Considerando o regime de progressão na carreira dos juízes de direito, resulta da nova redacção do artigo 18º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 440/99, que o regime agora consagrado para os auditores e consultores do Tribunal de Contas é formal e materialmente distinto daquele.
Com a alteração levada a cabo, pôs o Governo em causa o princípio da equiparação dos estatutos remuneratórios dos auditores e dos consultores do Tribunal de Contas ao dos juízes de direito.
Na verdade, não admitindo expressamente o artigo 30º, n.º 2, alínea e), da Lei n.º 98/97, derrogações a essa equiparação, não é possível considerar como implícita na faculdade de desenvolvimento de leis de bases a introdução de inovação tão relevante como a que diferencia uma progressão automática de outra condicionada a avaliação de desempenho.
Deste modo, verifica-se o desrespeito da Lei n.º 98/97, no que concerne ao princípio enunciado no seu artigo 30º, n.º 2, alínea e), alterando-se a recepção pura e simples do estatuto remuneratório dos magistrados judiciais, com introdução de condicionalismos estranhos a este.
4. Resposta do autor da norma
Notificado do pedido, veio o Primeiro-Ministro responder, alegando, em suma, o seguinte:
As normas que regem o estatuto remuneratório específico de duas carreiras integradas num corpo especial do Tribunal de Contas nunca poderiam ser qualificadas como “bases” do regime e âmbito da função pública.
Isto porque as bases do regime e âmbito da função pública são princípios e directrizes gerais que, nos termos do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 184/89, se aplicam à generalidade dos serviços e organismos do Estado, ou a tipos específicos, mas abstractos, dos referidos serviços, e não a duas carreiras concretas de um serviço público bem determinado, que integra o Tribunal de Contas.
Não integrando o preceito impugnado a matéria da reserva parlamentar de bases da função pública, mas respeitando ao estatuto remuneratório de carreiras de um corpo especial de um serviço da função pública, conclui-se que semelhante disciplina se situa no universo do desenvolvimento ou complementação das leis de bases, a qual pode ser considerada, segundo interpretação maioritária, matéria de âmbito concorrencial entre o Governo e a Assembleia da República.
Por conseguinte, não pode o mesmo domínio assumir a natureza de uma base legal, mesmo no universo concorrencial, já que: tal não só contrariaria a sua natureza de norma complementar e a proibição constitucional de leis de bases em “cascata”, mas também prejudicaria a sua natureza de norma da esfera concorrencial, atento o facto de as bases da função pública serem necessariamente um domínio da reserva relativa do Parlamento; a sua morfologia normativa não corresponde aos princípios e standards próprios das bases gerais, constituindo, antes, um critério normativo geral nas suas relações com o decreto-lei que prevê para a sua complementação; a invocação da alínea c) do n.º 1 do artigo 198º da Constituição pelo decreto-lei que complementa o critério normativo geral constitui má técnica legislativa, sendo constitucionalmente inadmissível que semelhante irregularidade formal, decorrente da indevida invocação constitucional da respectiva norma habilitante, possa transformar o valor normativo do referido decreto-lei, ou o da norma que o mesmo diploma visa integrar ou complementar.
Não revestindo a alínea e) do n.º 2 do artigo 30º da Lei n.º 98/97 a natureza de uma base legal não importará saber se o artigo único do Decreto-Lei n.º 184/2001 inovou, integrou, excepcionou ou derrogou a referida norma da Lei n.º 98/97, dado que os dois preceitos se situam num domínio de competência concorrencial entre o Governo e o Parlamento, onde todas as operações jurídico-normativas acabadas de descrever são constitucionalmente admissíveis.
Se a alínea e) do n.º 2 do artigo 30º da Lei n.º 98/97 não constitui uma norma legal de bases e se, como tal, não é (nos termos do n.º 3 do artigo 112º da Constituição) pressuposto normativo necessário do Decreto-Lei n.º 184/2001, não se tem por verificado qualquer cenário de ilegalidade decorrente de violação de lei com valor reforçado, nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo
281º da Constituição.
Sem conceder em relação às conclusões expostas, ainda que a alínea e) do n.º 2 do artigo 30º da Lei n.º 98/97 configurasse uma norma legal de bases, situada no universo concorrencial de competência entre a Assembleia da República e o Governo, não teria havido no caso sub iuditio qualquer violação dos fins e limites por ela fixados.
Em primeiro lugar, os critérios relativos à progressão nas carreiras não integram o núcleo fundamental do respectivo estatuto remuneratório, pelo que se considera que o legislador governamental, a partir do momento que equiparou as componentes fundamentais do sistema remuneratório dos auditores e consultores do Tribunal de Contas às dos juízes de primeira instância, poderia sempre introduzir um regime diverso em matéria de progressão nos escalões das referidas carreiras.
Em segundo lugar, a opção de condicionamento da progressão a uma avaliação do desempenho pelo diploma sindicado encontra-se expressamente admitida no artigo
29º do Decreto-Lei n.º 184/89, que aprova os princípios e bases gerais sobre a progressão das carreiras da função pública e à qual todos os actos legislativos, incluindo a Lei n.º 98/97, se encontram vinculados. Pelo que se considera que o preceito impugnado interpretou e integrou adequadamente a suposta regra “básica” ou “geral” da alínea e) do n.º 2 do artigo 30º da Lei n.º 98/97, em conformidade com a norma habilitante contida numa lei de bases “própria” ou de “primeiro escalão”, que é o n.º 2 do artigo 29º do Decreto-Lei n.º 184/89.
Em terceiro lugar, examinando as normas em tensão, parece não haver colisão da norma questionada com os fins ou limites ínsitos na suposta norma legal de bases, pois: a) considerando o facto de as carreiras de consultor e de auditor do Tribunal de Contas integrarem a função pública e ostentarem uma natureza diversa da carreira dos juízes de direito; b) considerando que a disposição sindicada introduziu uma inovação de carácter não fundamental (cfr. Acórdão n.º 334/91), porque prevista e habilitada pelo n.º
2 do artigo 29º do Decreto-Lei de bases n.º 184/89; c) e considerando a circunstância de a norma impugnada vir complementar de uma forma especial as disposições legais que concretiza, sem todavia as ofender; se conclui que essa inovação sub-primária não pode deixar de ser plenamente legítima, sobretudo à luz da interpretação feita pelo Tribunal Constitucional sobre o desenvolvimento de bases ou princípios, segundo a qual se tem como admissível a edição de normas complementares “que não briguem com esses princípios, mas representem um diferente modelação ou concretização deles”
(Acórdão n.º 142/85).
Em quarto lugar, o legislador editou a norma sindicada tendo por desiderato suprir uma situação lacunar que bulia com os princípios da igualdade e da equidade interna, e que derivava da concessão de uma situação de favor às carreiras de auditor e de consultor da Direcção-Geral do Tribunal de Contas, quando confrontadas com outras carreiras dotadas de funções homólogas no âmbito do Ministério das Finanças, dispensando-os, sem motivos fundados, de uma avaliação de desempenho como pressuposto da progressão nos escalões.
A norma sindicada encontra-se, deste modo, substancialmente justificada, ao proceder ao preenchimento de uma lacuna de regulação que colocava o n.º 2 do artigo 18º do Decreto-Lei n.º 440/99 a tender gradualmente para uma situação consagradora de um status de ilegitimidade jurídica omissiva. A mesma norma em nada bule com o desiderato da alínea e) do n.º 2 do artigo 30º da Lei n.º 98/97, no sentido de assegurar a equiparação entre o estatuto remuneratório das duas carreiras da Direcção-Geral do Tribunal de Contas e dos juízes de direito, equiparação que se encontra objectivamente salvaguardada, no respeitante ao seu núcleo medular, nos n.ºs 1 dos artigos 14º e 15º do Decreto-Lei n.º 440/99.
Do exposto, o Primeiro-Ministro conclui, contrariamente ao defendido no pedido de fiscalização, que o artigo 18º, n.º 2, 2ª parte, do Decreto-Lei n.º 440/99, de 2 de Novembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 184/2001, de 21 de Junho, não padece do vício de ilegalidade, por violação de lei com valor reforçado.
5. Memorando e Debate
Elaborado pelo Presidente do Tribunal o memorando previsto no artigo 63º da Lei do Tribunal Constitucional e entregue a todos os juízes, foi o mesmo submetido a debate, sendo fixada a orientação do Tribunal. Cumpre, assim, dar corpo à decisão, de harmonia com o que então se estabeleceu.
II. FUNDAMENTAÇÃO
6. A alegada qualificação da Lei n.º 98/97 como lei de bases
Tendo presente o disposto no n.º 2 do artigo 112º da Constituição - “as leis e decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos” -, a primeira questão que se coloca é a da natureza normativa da Lei n.º 98/97, cujo desrespeito é aqui alegado pelo requerente. Tratar-se-á, como invoca o Provedor de Justiça, de uma lei de bases ou, pelo contrário, como defende o Primeiro-Ministro, não terá esse valor?
Uma lei de bases consagra opções político-legislativas fundamentais, fixando as bases gerais de um regime jurídico e deixando a cargo do Executivo o desenvolvimento dessas bases. Como refere Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Coimbra, 2003., pág. 752 e segs.) “a existência das leis de bases só se torna inteligível quando se recortam com clareza os vários níveis de competência legislativa da AR: (1) nível de densificação legislativa total (...) (2) nível de densificação intermédio, nos casos em que a disciplina legislativa da AR incide sobre o regime comum ou normal (...) (3) nível de densificação limitado às bases gerais dos regimes jurídicos (cfr. artigo 165º, n.º 1, alíneas f), g), n), t) e u)”.
Ora, face a esta definição, é razoável sustentar que a Lei n.º 98/97 não é uma verdadeira lei de bases. Com efeito, se atentarmos no seu conteúdo, verificaremos que ela não se limita a dispor sobre as bases gerais de um qualquer regime jurídico. Ao invés, contém uma regulamentação, em certos aspectos muito pormenorizada, não só da organização interna do Tribunal de Contas, mas também dos trâmites processuais a seguir nesse mesmo Tribunal. É o caso, designadamente, das normas relativas ao recrutamento dos juízes, que regulam detalhadamente a forma de recrutamento (artigo 18º), os requisitos de provimento (artigo 19º), os critérios do concurso (artigo 20º) e a forma de provimento (artigo 21º). Esta disciplina tem um nível de especificação total ou quase total, não se limitando à mera enunciação das bases do regime.
Este nível de especificação é, aliás, justificável, atendendo a um outro aspecto, que também conduz à conclusão da não qualificação do diploma em análise como lei de bases. De facto, uma vez que toda a matéria relativa à organização e competência dos tribunais (e não apenas as bases gerais) pertence ao domínio da competência legislativa reservada da Assembleia da República (nos termos do artigo 165º, n.º 1, alínea p), da Constituição), facilmente se compreende que o legislador parlamentar tenha regulado directamente “toda” a disciplina da organização e competência do Tribunal de Contas na Lei n.º 98/97. Assim sendo, não pode configurar-se esta lei como uma lei de bases.
Aqui chegados, não é, todavia, possível encerrar já a questão. É que, ainda que a Lei n.º 98/97 se não possa configurar como lei de bases, sempre se poderia questionar se a norma expressamente invocada como parâmetro de legalidade
(contida no artigo 30º, n.º 2, alínea e), da Lei n.º 98/97) não seria uma norma de bases em matéria do regime da função pública, caso em que o seu desenvolvimento pelo Governo a deveria respeitar. Para sustentar tal entendimento, poderia, aliás, contribuir o facto de o Governo invocar, tanto no Decreto-Lei n.º 440/99 quanto no Decreto-Lei n.º 184/2001 (embora, nas alegações para este Tribunal, considere tratar-se apenas de má técnica legislativa), a competência legislativa prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 198º da Constituição (competência para fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou bases gerais de regimes jurídicos) para emitir tais normas.
Ora, a referida alínea e) do n.º 2 do artigo 30º estatui o seguinte:
“Artigo 30º
[...]
1 – [...]
2 - A organização e estrutura da Direcção-Geral, incluindo os serviços de apoio das secções regionais, constam de decreto-lei e devem observar os seguintes princípios e regras:
[...] e) O estatuto remuneratório das carreiras de auditor e de consultor será equiparado ao dos juízes de direito;
[...]”
Perante o teor da norma, seria, desde logo, sustentável a tese segundo a qual não se trata de uma norma de bases em matéria de função pública, já que o argumento da sua invocação pelo Governo como fundamento habilitante para a elaboração de determinado decreto-lei não pode ser tido como definitivo. Na verdade, a norma ora em causa - que mais se configura como regra e não como princípio ou base – dispõe sobre um domínio muito particular de determinadas carreiras do quadro privativo de um serviço concreto, carreiras essas sujeitas a um regime especial. É, aliás, essa a razão que leva o próprio requerente a reconhecer que se estará fora do domínio da reserva de competência legislativa parlamentar – e, por isso, a afirmar expressamente que o Governo poderia ter
“optado por revogar o artigo 30º da Lei n.º 98/97, substituindo as bases de um regime jurídico por outras” -, e a pedir apenas a declaração de ilegalidade.
De todo o modo, a entender-se que se está fora da reserva de competência legislativa da Assembleia da República – questão que não será necessário resolver – e mesmo que se entendesse que o artigo 30º da Lei n.º 98/97 conteria uma verdadeira base, aquela declaração de ilegalidade só poderia ser proferida se se considerasse que o n.º 2 do artigo 112º da Constituição determina a subordinação dos decretos-leis que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos às leis parlamentares que contenham essas bases, ainda que as mesmas leis se integrem em domínio da competência legislativa concorrencial da Assembleia e do Governo – questão que, como se verá, se pode igualmente deixar em aberto.
É que, com efeito, ainda que se considerasse que a alínea e) do n.º 2 do artigo
30º da Lei 98/97 tinha a natureza de uma norma legal de bases e que assumia um valor paramétrico relativamente aos decretos-leis que a visassem desenvolver, mesmo assim, não assistiria razão ao requerente.
Vejamos.
7. A alegada ilegalidade da 2ª parte do n.º 2 do artigo 18º do Decreto-Lei n.º
440/99, de 2 de Novembro
A constatação que se revela decisiva para a inexistência de ilegalidade no quadro que se deixou descrito, é a de que, de um ponto de vista material, não existe uma verdadeira contradição entre o disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 30º da Lei 98/97 e o que consta da 2ª parte do n.º 2 do artigo 18º do Decreto-Lei n.º 440/99, na redacção introduzida pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 184/2001, de 21 de Junho.
Na verdade, como se pode verificar, a lei apenas se refere ao estatuto remuneratório dos auditores e consultores do Tribunal de Contas, para efeitos de equiparação aos juízes de direito. Ora, se é certo que há casos em que o estatuto remuneratório está ligado à progressão na carreira, o que é indiscutível é que não cabem já nesse conceito de estatuto remuneratório as condições especiais de progressão na carreira, ponto de diferenciação entre as duas categorias de profissionais ora em causa.
O Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho (que traça os princípios gerais em matéria de emprego público, remunerações e gestão de pessoal da administração pública), separa, em termos sistemáticos, a remuneração da progressão na carreira, enquadrando a primeira no Capítulo III (Princípios gerais sobre remunerações) e a segunda no Capítulo IV (Princípios gerais sobre gestão). A mesma sistemática é igualmente adoptada pelo Decreto-Lei n.º 353-A/89, de 16 de Outubro (que desenvolve o regime jurídico traçado pelo diploma acima citado em matéria de estatuto remuneratório).
Assim, não se pode confundir o estatuto remuneratório com as condições especiais de progressão na carreira. Ambos surgem como institutos autónomos, dando lugar a direitos também autónomos, não se podendo afirmar que o direito à progressão
(automática) na carreira constitua uma mera dimensão do direito à remuneração.
Obviamente que a progressão na carreira tem repercussões a nível remuneratório
(já que a progressão implica uma mudança de escalão, que, por seu turno, conduz a um aumento da remuneração), mas tal circunstância não retira, de forma alguma, autonomia a qualquer dos institutos. Efectivamente, a confusão entre os dois resulta da intrínseca ligação de ambos a uma estrutura indiciária. Todavia, é importante notar que tal ligação, por si só, não é argumento decisivo nem no sentido da identificação dos conceitos de remuneração e progressão, nem no sentido da sua autonomia.
No que diz respeito à remuneração, a sua determinação depende da posição do agente ou do funcionário na estrutura indiciária. Como resulta do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 353-A/89, a remuneração base mensal correspondente a cada categoria e escalão referencia-se por índices, variáveis entre 100 e 900. O
índice indica o valor da remuneração recebida por cada trabalhador. Trata-se, pois, de uma situação estática – aferida em determinado momento, em função da categoria do trabalhador e da sua posição na respectiva estrutura indiciária.
Quanto à progressão na carreira, está em causa não a posição absoluta do trabalhador na estrutura indiciária, mas a sua evolução ao longo do tempo, ou seja, a passagem de índice para índice, numa perspectiva dinâmica. Interessa aqui a mudança de escalão ou de índice e as condições que a determinam, e não o valor monetário correspondente a cada índice. Veja-se, assim, que, nos termos do artigo 29º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 184/89, a progressão na carreira depende de dois factores – o tempo e o mérito. Estes factores podem, aliás, condicionar-se mutuamente, na medida em que, à luz do n.º 3 do artigo citado, a contagem de tempo de serviço para efeitos de progressão é suspensa quando existam razões fundamentadas em desempenho deficiente de funções.
Podemos, assim, concluir que remuneração e progressão na carreira não se confundem. Consequentemente, pode afirmar-se que a equiparação, prevista na norma em causa, entre consultores e auditores do Tribunal de Contas, por um lado, e juízes de direito, por outro, no que se refere ao respectivo estatuto remuneratório, se atinge com a igualdade ao nível da estrutura indiciária e do valor do índice 100. Interessa, pois, que a remuneração base mensal correspondente a cada escalão das carreiras de auditor e consultor do Tribunal de Contas se referencie pelos mesmos índices utilizados para os juízes de direito, isto é pela escala indiciária constante do mapa anexo à Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, que aprova o Estatuto dos Magistrados Judiciais. A forma pela qual se processa a evolução na escala indiciária, nomeadamente a exigência de condições especiais - avaliação de mérito - para mudança de escalão, é já matéria atinente à progressão na carreira, para a qual se não exige equiparação.
Efectivamente, o facto de, em relação aos auditores e consultores aqui em causa se prever um factor adicional (a avaliação de mérito) determinante da mudança de escalão (e, consequentemente, da evolução na estrutura indiciária) em nada afecta a equiparação das categorias de profissionais em confronto ao nível da remuneração, já que esta, como se afirmou, fica assegurada com a mera aplicação da mesma escala indiciária e de igual valor do índice 100.
No que respeita à necessidade de avaliação de mérito para progressão na carreira, refira-se ainda que a mesma se encontra prevista no já referido artigo
29º do Decreto-Lei n.º 184/89 e no artigo 19º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º
353-A/89, que determinam a não consideração do tempo de serviço prestado com classificação negativa para efeitos de progressão. Deste modo, a solução encontrada para os auditores e consultores do Tribunal de Contas não se afigura excepcional em confronto com o quadro geral traçado pela legislação de bases em matéria de função pública.
Assim sendo, não existe qualquer contradição entre o conteúdo material da 2ª parte do n.º 2 do artigo 18º do Decreto-Lei n.º 440/99 e o disposto na alínea e) do n.º2 do artigo 30º da Lei 98/97, de 26 de Agosto, já que as normas de um e outro se não referem à mesma problemática. Como tal, ainda que se aceitasse que a referida norma da Lei n.º 98/97 tinha natureza de norma legal de bases e que assumia um valor paramétrico, não se configuraria aqui uma ilegalidade.
III – decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a ilegalidade da norma constante da 2ª parte do n.º 2 do artigo 18º do Decreto-Lei n.º 440/99, de
2 de Novembro, na redacção introduzida pelo artigo único do Decreto-Lei n.º
184/01, de 21 de Junho.
Lisboa, 14 de Abril de 2004
Gil Galvão Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Carlos Pamplona de Oliveira Bravo Serra Paulo Mota Pinto Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Benjamim Rodrigues Vítor Gomes Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida