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Proc. n.º 506/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que figuram como recorrente o banco A., e como recorridos o Ministério Público e a Conservadora do Registo Predial de -----------, foi proferida decisão, ao abrigo do disposto no artigo 732º-A do Código de Processo Civil, que fixou jurisprudência no sentido de que “a acção pauliana individual não está sujeita a registo predial”. Para concluir desta forma, escudou-se aquele Tribunal na seguinte fundamentação:
“Dizia o C.R.P. de 1959 que 'o registo tem essencialmente por fim dar publicidade aos direitos inerentes às coisas imóveis'. O mesmo dizia o C.R.P. de 1967. O de 1984 diz que 'o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade
à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico.' O registo predial é um serviço público destinado a garantir um interesse público, que é a segurança do comércio jurídico e o interesse privado dos proprietários de bens sujeitos a registo em definir, com segurança, os limites dos seus direitos sobre esses bens. Cremos que não foi por acaso que se alterou a referência a 'direitos inerentes
às coisas imóveis' por referência 'à situação jurídica dos prédios'. Parece-nos que a alteração teve por fim esclarecer que no registo predial podem caber outras situações jurídicas, que não apenas as reais, como dava a entender a redacção anterior ao mencionar a característica da inerência, própria dos direitos reais. Daí que na al. u) do art° 2° (norma caldeirão) se incluam 'quaisquer outras restrições ao direito de propriedade e quaisquer outros encargos sujeitos, por lei, a registo'. A enumeração dos actos feita no art° 2° é taxativa. Só a indicação em outra lei pode levar ao registo. 'A circunstância de determinado facto jurídico se mostrar descrito ou previsto numa lei especial, em termos que o caracterizam como consubstanciando um encargo ou uma restrição ao direito de propriedade, não basta para que esse facto possa ser admitido ao registo.' Duma coisa estamos certos, ser ou não registável um acto depende da vontade do legislador, quer ela seja vertida no C.R.P. quer em lei avulsa. Não será pela natureza da situação a registar que devemos procurar da sua registabilidade. Há-de ser pela interpretação da lei que impõe o registo que devemos dar resposta à questão. Muito embora saibamos que o legislador pode fazê-lo remetendo para a natureza da situação, É o que acontece no art° 2° do C.R.P . O art° 3° do C.R.P. sujeita a registo: a) As acções que tenham por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou extinção de algum dos direitos referidos no art. anterior . No art° 2° os direitos referidos são: propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície, servidão, propriedade horizontal, habitação periódica. A acção de impugnação pauliana, tal como é delineada no actual código civil é uma acção de natureza pessoal. Isso não é posto em dúvida, por ninguém, neste processo. Esta acção visa dar protecção à situação do credor que vê diminuída a garantia patrimonial do devedor por actos jurídicos do devedor. Os actos jurídicos visados podem ser gratuitos ou onerosos. No caso de ser oneroso o acto, o direito de impugnação pressupõe a má fé de ambos os intervenientes no acto impugnado. Má fé que não é exigida para o acto gratuito. Sobre a natureza desta acção e seu regime temos, entre nós, o profundo e extenso trabalho de Vaz Serra no B.M.J. 74° e 75° (Responsabilidade Patrimonial) cujas ideias aí expendidas e traduzidas em projecto legislativo, foram, no essencial, acolhidas no actual código. Isso mesmo tem sido reconhecido pela jurisprudência e doutrina dominantes. Nesse trabalho não foi esquecida a questão da registabilidade da acção. Nunca põe em dúvida a natureza obrigacional da pretensão objecto da acção.
«Os credores podem impugnar contra aqueles que, em consequência da má fé ou do locupletamento, podem dizer-se responsáveis para com eles».
«A acção é dada aos credores para obterem, contra um terceiro, que procedeu de má fé ou se locupletou, a eliminação do prejuízo que sofreram com o acto impugnado. Daqui resulta o seu carácter pessoal ou obrigacional. O autor na acção exerce contra o réu um direito de crédito, o crédito da eliminação daquele prejuízo». Embora reconheça que a acção não tem natureza real entende que, 'a fim de defender os credores contra actos que pudessem prejudicar a realização do seu direito, é conveniente sujeitar a acção a registo.' Bastava que o terceiro adquirente transmitisse, por acto oneroso, a terceiro de boa fé. Contra este já não podia exercitar a acção pauliana. Cita o Cod. Italiano, em que a acção tem a mesma natureza que ele defende para o nosso futuro código, e onde se estabelece o registo da acção e se declara 'que registada ela antes de qualquer acto de alienação a terceiro, a sentença vale contra o subadquirente, mesmo que tenha adquirido a título oneroso e de boa fé.' Refere-se também ao direito alemão onde 'a pretensão obrigacional à restituição pode ser assegurada por meio de uma anotação preventiva' mas restrita à impugnação colectiva (a favor de todos os credores). A impugnação individual já não tem esta protecção, podendo o credor individual recorrer, tratando-se de conservar o objecto alienado para efeitos de execução, a uma providência cautelar. Coerentemente com o estudo que empreendeu e com as ideias a que aderiu, incluiu no seu projecto de articulado o registo da acção. Devendo o registo servir 'apenas para avisar todos os possíveis adquirentes dos bens ou de direitos sobre eles de que está pendente uma acção pauliana, colocando-os assim, na situação de adquirentes de má fé.' Mas, ao propor no articulado o registo da acção, chama (em nota) a atenção de que o lugar próprio era o C.R.P. No actual código consagrou-se o seguinte regime: a) sujeição das transmissões posteriores à impugnação desde que se verifiquem, em relação a elas, os requisitos que levavam á procedência da impugnação da primeira transmissão. (613°) b) direito do credor a executar os bens alienados, na medida do seu interesse, no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.( 616°- 1) c) Responsabilização do adquirente de má fé (a título gratuito ou oneroso) pelo valor dos bens que tenha alienado. (616°- 2) d) Responsabilização do adquirente de boa fé (a título gratuito) só na medida do enriquecimento. e) direito do credor de requerer o arresto contra o adquirente dos bens do devedor, se tiver judicialmente impugnado a transmissão.(619°- 2) Hoje (407°- 2- CPC) pode requerer o arresto mesmo antes de propor a acção de impugnação se alegar e provar os factos que tornem provável a procedência da acção. Não há dúvidas que o C.C. não quis sujeitar a acção a registo. Isto pode ser devido ao facto de deixar a matéria para a lei do registo ou por ter aderido a um regime parecido com o consagrado na lei alemã e que tinha sido referido nos trabalhos preparatórios. Paralelamente, o CPEREF, no 159°, veio consagrar a solução alemã, na medida em que estabeleceu um regime diferente para a impugnação em beneficio dos credores. E também não se consagrou no C.R.P. Não se consagrou no código de 1967 porque, ao limitar-se o registo aos direitos com características de inerência estava a excluir-se o direito, logo a acção, de crédito objecto da acção pauliana. Quanto ao C.R.P. de 1984, ao fixar os fins do registo, não exclui liminarmente o registo de uma acção do tipo da acção pauliana, acção que visa conservar a garantia patrimonial. Todavia, em nenhuma das alíneas do art. 2°, em que taxativamente se fixam os factos sujeitos a registo, se inclui o direito objecto da acção pauliana. As questões levantadas pela Relação relativamente à posição do credor em face do bem adquirido pelo terceiro, podem trazer alguma perturbação, que levou a Relação a criar a figura de 'acções pessoais com transcendência real”. As questões levantadas estão relacionadas com a polémica doutrina acerca da estrutura do direito de crédito, a chamada teoria do débito e da responsabilidade (M. Andrade Teoria Geral das Obrigações - 42). Para os seguidores desta teoria a responsabilidade seria uma espécie de direito real de garantia, um penhor geral. A manifestação culminante desse penhor geral seria o poder de executar os bens do devedor. Manifestação que se exterioriza ainda antes 'quando o devedor por acto de alienação torna insuficiente a garantia, v .g. Pauliana”. A isto respondeu M. Andrade -'Não há necessidade de decompor a relação obrigacional em duas subrelações: débito e responsabilidade. Não está certo ver nela um direito real. Faltam-lhe a preferência e a sequela. Ora, como resulta do art° 613° o subadquirente posterior de boa fé não está sujeito á impugnação pauliana. Do mesmo modo, havendo dois credores que impugnem o mesmo facto, o mais antigo não tem preferência na execução. Portando não se pode falar de elementos de realidade na obrigação de indemnização subjacente á impugnação pauliana. Como dissemos acima a sujeição da acção pauliana a registo predial é ditada, não por razões da natureza do direito accionado, mas por razões de conveniência em defender o credor contra actos que pudessem prejudicar a realização do seu direito. A ter havido inconstitucionalidade, que não há, seria por omissão do legislador ao não consagrar o registo da acção. Mas, como vimos, o legislador não desprotegeu o credor, na medida em lhe concedeu meios expeditos para acautelar o seu direito. Em face do exposto damos provimento ao agravo, revogamos o douto acórdão, mantendo a decisão da 1ª instância. O plenário das secções cíveis reunidas decide, para fixação de jurisprudência, que A acção pauliana individual não está sujeita a registo predial”.
2. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso, para apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 3º, n.º 1, alínea a) e artigo 2º, n.º 1, alínea u), ambos do Código do Registo Predial, interpretadas no sentido de não admitir o registo predial da acção de impugnação pauliana.
3. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
“A. A acção de impugnação pauliana encontra-se regulada nos artigos 610° e seguintes do Código Civil, sendo-lhe reconhecidos os efeitos de conferir ao credor o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonia1 autorizados por lei. B. A procedência de uma acção de impugnação pauliana representa uma modificação profunda do direito de propriedade do bem alienado, porquanto os efeitos constitutivos da decisão judicial provocam uma verdadeira sequela real no direito de propriedade do terceiro onerado. C. A recusa do registo da acção de impugnação pauliana é injusta, contrária à lei, porque impede que os credores se possam valer eficazmente do referido instituto, o que atenta contra a ratio do instituto e contra o valor da segurança jurídica que deve existir nas relações D. A posição defendida pelo Plenário das Secções Cíveis, sustentando-se na opção deliberada do legislador, em sede do Código Civil de 1967 e do Código de Registo Predial de 1984, em retirar ao instituto da acção de impugnação pauliana a possibilidade de registo, é, salvo o devido respeito, violadora de uma efectiva realização do direito, in casu do credor impugnante na satisfação do seu crédito. E. A eficácia do quadro legal previsto para o instituto depende necessariamente do registo predial, face à possível sucessão de transmissões que os sucessivos adquirentes poderão realizar na pendência da acção ou mesmo após o trânsito em julgado de sentença que julgue favorável a impugnação. F. O procedimento cautelar de arresto previsto nos n.º 2 do artigo 407° do Código de Processo Civil, panaceia de todos os males, não serve, salvo melhor opinião, para cristalizar a impugnação, na medida em que, não sendo um tipo especial de arresto, nos termos do qual bastaria a mera invocação de se ter impugnado judicialmente a transmissão primitiva para a sua procedência ( como o previsto no artigo 21° do Decreto-Lei n° 149/95, de 24 de Junho, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n° 265/97, de 2 de Outubro ), carece sempre da comprovação do justo receio. G. Os normativos do Código do Registo Predial - artigos 2°, n.º 1, alínea u) e alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 3° - enquadram-se naquilo que resulta da acção de impugnação pauliana: na verdade, estão sujeitos a registo 'quaisquer outras restrições ao direito de propriedade e quaisquer outros encargos sujeitos, por lei, a registo' (artigo 2°, n.º 1, u)) e são acções sujeitas a registo as 'que tenham por fim, principal e acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou extinção de algum dos direitos referidos no artigo anterior' (artigo 3°). H. Os fins de interesse público do registo predial impõem, com clareza, que não só os factos tipicamente previstos como registáveis o sejam, mas também, pela latitude da função cometida, que os factos que determinem, por exemplo, uma restrição do direito de propriedade o sejam também. I. A interpretação dos artigos 2°, n.º 1, alínea u) e 3°, n.º 1, alínea a) do Código do Registo Predial, decorrente do Acórdão de uniformização de jurisprudência, no sentido de não ser registável a acção de impugnação pauliana singular, viola os princípios da propriedade privada (artigo 62° da Constituição), englobante de direitos patrimoniais como são os direitos de crédito, o princípio geral do Estado de direito democrático, no subprincípio do respeito e garantia da efectivação dos direitos fundamentais, e nos subprincípios da segurança e confiança jurídicas, estreitamente ligados (artigo
2° da Constituição), e os princípios do acesso à informação e tutela dos interesses económicos dos consumidores (artigo 60° da Constituição). TERMOS EM QUE deve o Tribunal Constitucional declarar a inconstitucionalidade dos artigos 2°, n.º 1, alínea u) e 3° n.º 1, alínea a) do Código do Registo Predial, por violação dos artigos 2°, 60° e 62° da Constituição, na interpretação segundo a qual a acção de impugnação pauliana não é registável”.
4. Contra-alegou o Ministério Público, tendo concluído da seguinte forma:
“1° - A impugnação pauliana configura-se como elemento nuclear ou essencial à garantia do credor 'comum', enquanto determina a inoponibilidade a este de um acto de transmissão dos bens sobre que incidia a garantia geral da obrigação, na medida necessária ao asseguramento do direito de crédito, sendo a posição do credor enquadrável na ampla tutela da propriedade privada, decorrente do artigo
62° da Constituição da República Portuguesa.
2° - O típico efeito da procedência da impugnação pauliana - determinando a inoponibilidade ao credor, na medida necessária à realização do seu crédito, do efeito translativo de um acto de alienação ou oneração de bens do devedor, assume, pela sua natureza, 'transcendência real”, que ultrapassa o mero plano das relações 'pessoais' entre credor e devedor, não repugnando a sua qualificação - para efeitos de admissibilidade de inscrição registral - como relevante para uma plena publicidade da situação jurídica dos prédios.
3° - O direito do credor que lança mão da impugnação pauliana só é devidamente assegurado se for admitida a inscrição no registo predial da propositura da acção, por essa via se garantindo que é oponível aos posteriores transmissários dos bens a eventual procedência da acção, fazendo ainda presumir a má- fé de uma aquisição onerosa, ocorrida num momento em que a dita acção já havia sido inscrita provisoriamente no registo.
4° - Tal registo - para além de ser instrumento necessário à tutela do credor, cujo interesse não é garantido, em termos proporcionais e adequados, pela mera possibilidade de requerer arresto, quando os seus específicos fundamentos se verifiquem - contribui ainda para reforçar os princípios da segurança jurídica e da confiança, subjacentes à publicidade do registo, permitindo facilmente a terceiros que adquiram a título gratuito o imóvel o conhecimento da pendência da impugnação pauliana; e facultando ainda tal conhecimento a quem os adquira a título oneroso, pondo-o normalmente a coberto de uma demanda em que se controverta uma alegada 'má fé' na aquisição.
5°- Termos em que deverá proceder o recurso.
5. Por sua vez, a senhora Conservadora do Registo Predial de ----------- conclui a sua alegação da seguinte forma:
“A) A acção de impugnação pauliana tem caracter pessoal e escopo meramente indemnizatório e da sua procedência, deixando intocada a validade das transmissões, resultam apenas efeitos meramente obrigacionais. B) Só estão sujeitas a registo nos termos do artigo 3º do C.R.P., as acções que têm por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de direitos reais ou equiparados. C) O direito do credor impugnante, ainda que se possa entender como um encargo ao direito de propriedade não se enquadra na previsão da alínea u) do n° 1 artigo 2° porque no domínio do direito das coisas vigora o princípio do numerus clausus e não se podem convencionar novos encargos de natureza real, ou restrições ao direito de propriedade para além das que a própria lei prevê. D) Pelo que a presente interpretação do artigo 2° n.º l alínea u) e 3° n.º 1 alínea a) do C.R.P, não viola o princípio geral do Estado de Direito Democrático artigo 2°, nos subprincípios do respeito e garantia da efectivação dos direitos fundamentais e da segurança e confianças jurídicas, o princípio da propriedade privada artigo 62° e finalmente do acesso à informação e tutela dos interesses económicos dos consumidores artigo 60º todos da Constituição”.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
6. É o seguinte o teor dos preceitos em que se insere a norma cuja inconstitucionalidade vem questionada:
“Artigo 2º
(factos sujeitos a registo)
1. Estão sujeitos a registo:
[...] u) Quaisquer outras restrições ao direito de propriedade e quaisquer outros encargos sujeitos, por lei, a registo;
[...].
Artigo 3º
(Acções e decisões sujeitas a registo)
1. Estão igualmente sujeitas a registo: a) As acções que tenham por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de algum dos direitos referidos no artigo anterior;
[...]”.
Importará, antes de mais, começar por sublinhar que, dada a natureza da intervenção do Tribunal Constitucional no âmbito do processo de fiscalização concreta, restrita à apreciação da questão de constitucionalidade da norma aplicada, não está em causa neste recurso, nem poderia estar, a determinação de qual a “melhor interpretação” das normas infraconstitucionais questionadas. Não compete, assim, ao Tribunal Constitucional tomar qualquer posição sobre a querela doutrinária e jurisprudencial acerca da questão de saber qual é a melhor interpretação dos referidos preceitos – se a que admite, se a que impede o registo da acção de impugnação pauliana. Ao Tribunal cumpre apenas aferir a compatibilidade com a Constituição, designadamente com os princípios e normas invocados pelo recorrente, da interpretação normativa efectivamente aplicada pela decisão recorrida, sem que sobre ela pronuncie qualquer juízo quanto ao seu mérito.
Assim, a questão que importa decidir é a seguinte: são os artigos 2°, n.º l, alínea u), e 3°, n.º 1, alínea a), do Código de Registo Predial, inconstitucionais, designadamente por violação dos artigos 2º, 60º e 62º da Constituição, quando interpretados em termos de não admitirem o registo da acção de impugnação pauliana ?
Como refere o Ministério Público na sua alegação, a questão de constitucionalidade que vem colocada pode ser abordada numa dupla perspectiva. Por um lado, haverá que averiguar da conformidade dessa interpretação normativa com a tutela constitucional da situação jurídica do credor impugnante, considerando aqui especialmente que, como o Tribunal tem repetidamente afirmado, em termos que de seguida se desenvolverão, a tutela constitucional da propriedade (artigo 62º da Constituição) se estende a todos os direitos de conteúdo patrimonial, incluindo aos “meros” direitos de crédito. Por outro lado, haverá que confrontar aquela interpretação normativa com a tutela constitucional da situação jurídica do terceiro adquirente e, designadamente, questionar a sua compatibilidade com os princípios da segurança e da confiança, ínsitos no princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição).
Vejamos, pois, começando pela primeira das perspectivas supra enunciadas.
7. Alega o recorrente que a solução normativa por que optou a decisão recorrida
é incompatível com a tutela constitucional da situação jurídica do credor impugnante, designadamente com a tutela constitucional conferida pelo artigo 62º da Constituição à propriedade privada, tutela que se estende, na sua perspectiva, aos “meros” direitos de crédito.
No que se refere ao objecto da garantia constitucional da propriedade privada, tem este Tribunal afirmado, repetidamente (cfr., por todos, mais recentemente, os Acórdãos n.º 491/02, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Janeiro de 2003, e 374/03, publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Novembro de 2003), que o direito de propriedade a que se refere o artigo 62º da Constituição “não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os direitos de crédito e os «direitos sociais»”. Além disto, porém, haverá ainda que definir qual o concreto conteúdo dessa protecção constitucionalmente conferida à propriedade privada por aquele artigo 62º. Ora, a este propósito, já o Tribunal Constitucional afirmou que o direito de propriedade, com a extensão assinalada, reveste a natureza de direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Nesse sentido pode ler-se, no já referido Acórdão n.º 491/02, que, nesta parte, recorda a anterior jurisprudência do Tribunal: “O Tribunal Constitucional tem, na verdade, salientado repetidamente, já desde 1984, que o direito de propriedade, garantido pela Constituição, é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, beneficiando, nessa medida, nos termos do artigo 17º da Constituição, da força jurídica conferida pelo artigo 18º (...)”. Porém, ao mesmo tempo que considera extensível o regime dos direitos, liberdades e garantias aos direitos fundamentais análogos, como o direito de propriedade entendido no sentido amplo já assinalado, tem o Tribunal sempre alertado para o facto de nem toda a legislação que lhe diga respeito gozar do regime específico previsto para aqueles direitos, liberdades e garantias. Assim, em relação à proprietas rerum (cfr. Acórdãos 329/99 e 517/99), concluiu já o Tribunal que
“dessa dimensão essencial que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade”.
Por seu turno, a propósito da tutela constitucional dos direitos de crédito, o Tribunal, no Acórdão n.º 451/95 (Diário da República, I Série-A, de 3 de Agosto de 1995), o Tribunal, reafirmando a jurisprudência formulada nos acórdãos n.ºs
494/94 (Diário da República, II Série, de 17 de Dezembro de 1994), 516/94
(Diário da República, II Série, de 15 de Dezembro de 1994) e 128/95 (disponível na página Internet do Tribunal Constitucional, no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 300.º, n.º 1, do Código de Processo Tributário, na parte em que aí se estabelecia o regime de impenhorabilidade total dos bens anteriormente penhorados pelas repartições de finanças em execuções fiscais. Para concluir desta forma, afirmou o Tribunal naqueles arestos: 'Da garantia constitucional do direito de propriedade privada, há-de, seguramente, extrair-se a garantia (constitucional também) do direito do credor à satisfação do seu crédito. E este direito há-de, naturalmente, conglobar a possibilidade da sua realização coactiva, à custa do património do devedor, como, de resto, se prescreve no artigo 601º do Código Civil (...).”
Finalmente, cumpre ainda referir o mais recente Acórdão n.º 374/03 (já citado), em que o Tribunal decidiu não julgar organicamente inconstitucionais os Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro, na parte em que alteraram a redacção dos artigos 442º e 755º do Código Civil, atribuindo ao promitente-comprador, no caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato, direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do incumprimento do promitente-vendedor. Para concluir desta forma, afirmou-se naquele aresto: “(...) as intervenções legislativas questionadas nestes autos, limitadas à introdução de uma nova garantia do promitente-comprador beneficiário da tradição do prédio ou fracção, embora com eventual reflexo na posição de outros credores do promitente-vendedor, não podem ser consideradas como atingindo o núcleo essencial do direito de propriedade privada, na dimensão que o torna análogo aos direitos, liberdades e garantias, em termos tais que justifique a extensão do regime orgânico típico destes. O direito de propriedade, no sentido amplo que abarca os direitos de crédito, está aqui em causa numa dimensão que não é indispensável à sua concepção como garantia de
“espaço de autonomia pessoal” (Maria Lúcia Amaral, obra citada, pág. 542) ou
“essencial à realização do Homem como pessoa” (Acórdão n.º 517/99)[...]”.
Feita esta síntese da anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional, é agora altura de enfrentar directamente a questão que nos ocupa. Cabe, então, perguntar: a norma que se extrai dos artigos 2°, n.º 1, alínea u), e 3°, n.º 1, alínea a), do Código de Registo Predial, com o sentido de não admitir, em caso algum, o registo da acção de impugnação pauliana, contende com a dimensão essencial do direito de crédito em termos de impedir o credor, sem o recurso a tal registo, de satisfazer o seu crédito?
Vejamos.
Da jurisprudência que conduziu à declaração de inconstitucionalidade do artigo
300º, n.º 1, do Código de Processo Tributário, resulta que “da garantia constitucional da propriedade privada [se extrai] a garantia (constitucional também) do direito do credor à satisfação do seu crédito'. Daí decorre, então, que os instrumentos essenciais à tutela da garantia patrimonial do direito do credor integram a dimensão essencial do direito de crédito. Mas, isto assente, cabe perguntar: o registo da acção de impugnação pauliana é um instrumento essencial ou imprescindível à tutela eficaz da garantia patrimonial do credor comum?
A esta questão há que responder negativamente.
De facto, ainda que, como afirmam o recorrente e o Ministério Público nas suas alegações, a acção de impugnação pauliana possa ser um importante instrumento de tutela da garantia patrimonial do credor comum, não só não está demonstrado que seja “único” e, consequentemente, imprescindível, como, sobretudo, para o que ora releva, não está comprovado que da insusceptibilidade de registo da acção resulte a inviabilidade ou inutilidade de utilização desse instrumento.
Na verdade, se é certo que da insusceptibilidade de registo da acção de impugnação pauliana pode resultar uma maior dificuldade em garantir a eficácia da impugnação pauliana, especialmente nas hipóteses consideradas pelo recorrente de existirem sucessivas transmissões do bem objecto da acção, essa dificuldade não vai nunca ao ponto de determinar a privação do direito de crédito. Isso resulta, por um lado, do facto de a impugnação pauliana não ser o “único” instrumento de tutela da garantia patrimonial do credor comum, sendo possível a este recorrer a outros mecanismos - por exemplo, ao arresto contra o adquirente de bens do devedor -, de modo a prevenir a perda daquela garantia. E, por outro, do facto de a eventual vulnerabilidade causada pela impossibilidade do registo não ser absoluta, em termos de poder ser substancialmente equiparada a uma eliminação do direito (ficaria como que um direito sem conteúdo), pois, mesmo em relação à impugnação, a norma em causa, ao não permitir o registo, não a elimina ou inutiliza, apenas podendo causar uma maior dificuldade prática à concretização da sua eficácia. E, ainda assim, apenas numa hipótese, certamente não muito frequente, de verificação de uma cadeia de sucessivas transmissões.
Por último, refira-se que o balanceamento que resulta da interpretação questionada (a qual postula a ausência do registo) entre as dificuldades que um credor possa sentir para concretizar eficazmente a impugnação pauliana e os inconvenientes que, porventura, se evitam a um terceiro que de boa fé tenha adquirido o bem, mas, apesar disso, seja réu numa acção de impugnação, também não permite um juízo de desproporcionalidade que deva conduzir a uma declaração de inconstitucionalidade.
Por tudo o exposto, necessário se torna concluir que, ainda que nada na Constituição impeça a possibilidade de registo da impugnação pauliana e se possa não vislumbrar qualquer “direito ou interesse constitucionalmente protegido”, que justifique, do ponto de vista constitucional, a não admissão desse registo, a interpretação normativa dos artigos 2°, n.º l. alínea u), e 3°, n.º 1, alínea a), do Código de Registo Predial que vem questionada não atinge, efectivamente, o núcleo essencial do direito de crédito. A solução normativa por que optou a decisão recorrida não pode, pois, ser considerada inconstitucional, por violação do artigo 62º, n.º 1, da Constituição, lido conjugadamente com o princípio da proporcionalidade, que se extrai, entre outros, do artigo 18º, n.º 2, da mesma Constituição.
8. A solução normativa por que optou a decisão recorrida deve ser igualmente confrontada com a tutela constitucional da situação jurídica do terceiro adquirente e, designadamente, questionada a sua compatibilidade com os princípios da segurança e da confiança, ínsitos no princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição).
Como se escreveu no Acórdão n.º 215/00 (disponível na página Internet do Tribunal em http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), “o perfeito conhecimento da situação jurídica dos objectos sujeitos a registo é absolutamente essencial à certeza e segurança do comércio jurídico de imóveis, segurança jurídica que actualmente subjaz a todo o ordenamento jurídico em que assenta um Estado de Direito”. Ou, mais à frente, “de facto, a segurança de que o homem necessita para planear e reger toda a sua vida de forma responsável e com respeito pelos fins comunitários é um dos elementos constitutivos do Estado de Direito e que se deduz do artigo 2º da Constituição”. O princípio geral da segurança jurídica ínsito no princípio do Estado de Direito prevê que qualquer cidadão possa, de antemão, saber que aos actos que praticar ou negócios que realizar se ligam determinados efeitos, incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas decorrentes de normas jurídicas em vigor, por forma que cada um tenha plena consciência das consequências da sua actividade
(ou da sua omissão) na comunidade”.
Ora, parece inquestionável que a possibilidade de registo da acção de impugnação pauliana contribui para a plena cognoscibilidade da situação jurídica dos bens sujeitos a registo, permitindo a qualquer adquirente o conhecimento integral das vicissitudes jurídicas que lhe possam vir a ser opostas, por esta via realizando a função do registo predial. Mas, dir-se-á: pode a situação do adquirente ser posta em causa pelo facto de não existir registo da acção de impugnação pauliana, em termos de se poder considerar estarem violados os princípios da confiança e da segurança jurídica?
A resposta não poderá ser afirmativa.
De facto, do ponto de vista do adquirente, em relação ao qual se pode colocar a questão, há que considerar, por um lado, que um adquirente a título oneroso e de boa fé não é, de todo em todo, afectado pela impugnação (artigo 612º do Código Civil). Por outro lado, em relação a um adquirente a título gratuito e de boa fé, não só se reconhece que o mesmo não recebe, nem tem necessariamente de receber, a mesma tutela que um adquirente a título oneroso, como se verifica que, em qualquer caso, o adquirente de boa fé só responde “na medida do seu enriquecimento”. Finalmente, em relação a um adquirente de má fé, há que reconhecer que o mesmo não merece essa tutela.
Assim sendo, também por estes motivos haverá, pois, que concluir pela não inconstitucionalidade da interpretação normativa que vem questionada nos presentes autos.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma que se extrai dos artigos 2°, n.º 1, alínea u), e 3°, n.º 1, alínea a), do Código de Registo Predial, quando interpretada em termos de não admitir o registo da acção de impugnação pauliana; b) em consequência, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 20 de Abril de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Luís Nunes de Almeida