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Proc. n.º 306/02 Acórdão nº 322/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 132 e seguintes, não se tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A, pelos seguintes fundamentos:
'6. O recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto pela recorrente – pressupõe que na decisão judicial da qual se recorre para o Tribunal Constitucional se tenha recusado a aplicação de uma norma e que essa recusa se funde num juízo de inconstitucionalidade dessa mesma norma por parte do tribunal recorrido. No requerimento de interposição do presente recurso (supra, 5.) é identificada a norma do artigo 3º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, como a norma cuja aplicação teria sido recusada pelo tribunal recorrido com fundamento na sua inconstitucionalidade. Atendendo a que na decisão recorrida se remete para os fundamentos da decisão da primeira instância, ao abrigo do disposto no n.º 5 do artigo 713º do Código de Processo Civil (supra, 4.), há que considerar o teor da decisão da primeira instância (supra, 2.), a fim de determinar se nela foi recusada a aplicação da referenciada norma do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, com fundamento na sua inconstitucionalidade. Percorrendo, porém, o texto dessa decisão da primeira instância, verifica-se que não foi recusada a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade. Na verdade, o juiz do 1º Juízo Cível do Porto, partindo de que, pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 97/2000, havia sido declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do artigo 107º, n.º
1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei n.º
321-B/90, de 15 de Outubro, limitou-se a aplicar o disposto no artigo 282º, n.º
1, da Constituição e, em consequência, a considerar repristinada a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 2º da Lei n.º 55/79, de 15 de Setembro, que fixava em 20 anos o prazo para o senhorio exercer o seu direito de denúncia do contrato de arrendamento e que, atendendo ao preceituado no artigo 9º do Código Civil, seria também aplicável aos casos em que o senhorio invoca a necessidade do prédio para habitação dos seus filhos. Ao aplicar o artigo 282º, n.º 1, da Constituição e o artigo 2º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 55/79, de 15 de Setembro – este último numa interpretação não meramente literal, por força do estatuído no artigo 9º do Código Civil –, a 1ª instância (e, por remissão, o tribunal ora recorrido) não procedeu concomitantemente a qualquer recusa de aplicação do artigo 3º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro - que revogou a Lei n.º 55/79, de 15 de Setembro – com fundamento na sua inconstitucionalidade. É que esta norma, atendendo a que a solução do caso haveria de encontrar-se, sem mais, nos mencionados preceitos da Constituição, da Lei n.º 55/79, de 15 de Setembro, e do Código Civil, não foi sequer considerada para efeitos de decisão, não podendo por isso dizer-se que sobre ela tenha recaído qualquer juízo de conformidade ou de desconformidade constitucional. Não tendo o tribunal recorrido recusado a aplicação desta norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, conclui-se que não estão preenchidos os pressupostos processuais do presente recurso de constitucionalidade, não podendo portanto conhecer-se do respectivo objecto.'
2. Notificada desta decisão sumária, A dela veio reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional (fls.
146 e seguintes), 'requerendo que sobre a questão sub judice recaia acórdão, e com os fundamentos seguintes':
'1º- O recurso em causa foi interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art.
70º da L.T.C..
2º- A norma cuja aplicação foi recusada com fundamento em inconstitucionalidade
é o art. 3º al. e) do Dec. Lei 321-A/90 de 15/10, dado o fundamento implícito do douto acórdão recorrido (remetendo para decisão de 1ª instância).
3º- Tal decisão entendeu que tendo sido declarada a inconstitucionalidade orgânica com força obrigatória geral do art. 107º nº 1 alínea b) do R.A.U. (por violação do art. 168º al. b), na versão de 1989, da C.R.P.) padeceria igualmente de inconstitucionalidade orgânica parcial o art. 3º nº 1, sua al. e), do mesmo diploma.
4º- Tal entendimento não teve o Mtº Juiz Conselheiro Relator que não admitiu o recurso em causa, alegando que não se mostra recusada, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma do referido art. 3º al. e) do DL 321-B/90, nem pela decisão de 1ª instância nem, consequentemente, pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
5º- Salvo o devido respeito por melhor opinião, não se pode concordar com tal opinião. Na verdade,
6º- A autora interpôs a presente acção de despejo, solicitando a denúncia de contrato de arrendamento, com base nos arts. 69º nº 1 al. a), 70º e 71º do R.A.U.
7º- Na sua contestação, vieram os réus alegar que por acórdão nº 97/2000 proferido por esse venerando Tribunal (in DR I Série de 17/3/2000) foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral da norma do art. 107º nº 1 al. b) do R.A.U. aprovado pelo DL 321-B/90 de 15/10; e que, em consequência, ficou repristinada a norma constante da alínea b) do nº 1 do art. 2º da Lei
55/79 (cfr. fls. 67 dos autos).
8º- Na sua resposta, respondeu a autora arguindo que o invocado efeito repristinatório pressupõe que a norma revogatória seja, também ela, considerada inválida; que o invocado acórdão 97/2000 declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, apenas a norma do art. 107º nº 1 al. b) do R.A.U. e não, também, o disposto no art. 3º do R.A.U. (revogação de direito anterior) do diploma que aprovou o R.A.U.; logo, concluiu que não envolve repristinação da Lei 55/79; e que não havendo tal repristinação, o regime aplicável no período que mediou entre aquela declaração de inconstitucionalidade (publicada em
17/3/2000) e a entrada em vigor do R.A.U. (11/01/2001) não estatuía o limite de vinte anos, nem de 30 anos, para a denúncia do contrato de arrendamento para habitação própria ou de descendente, uma vez que a lei anterior à referida Lei
55/79 não o estabelecia (cfr. articulados; e decisão recorrida de 1ª instância a fls. 67 e 69 dos autos).
9º- Por aqui se vê que, para que o Tribunal julgasse procedente a invocada excepção teria, forçosamente – e como o fez –, de julgar inválida, também por inconstitucionalidade, aquela norma revogatória (art. 3º al. e) do DL 321-B/90).
[...]
11º- [...] A invocada repristinação do art. 2º da Lei 55/79 apenas pode ter como fundamento a invalidade (e não aplicação) por inconstitucionalidade (em consequência daquele acórdão) da norma que o revogou – por ser o único fundamento plausível que a questão de direito comporta e porque era essa – precisamente – a questão em aberto nos articulados (que a sentença de 1ª instância decidiu a favor dos réus).
[...].'
Os recorridos B e mulher, responderam à referida reclamação nos termos seguintes
(fls. 154 e 154 vº):
'[...] subscreve-se em absoluto a douta decisão sumária proferida por V. Excia a fls. dos autos. Aliás, da leitura da douta Reclamação apresentada pela ora recorrente, parece resultar que ela limita a insurgir-se contra a existência, no caso de declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral de uma determinada norma, de um efeito repristinatório da norma revogada..., só que tal efeito encontra-se consagrado no art. 282º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa!
[...].'
Cumpre apreciar. II
3. Na decisão sumária ora reclamada concluiu-se que na decisão recorrida não se procedeu a qualquer recusa de aplicação do artigo 3º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro com fundamento na sua inconstitucionalidade, pois que tal norma – atendendo a que a solução do caso haveria de encontrar-se, sem mais, no artigo 282º, n.º 1, da Constituição e no artigo 2º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 55/79, de 15 de Setembro (este último numa interpretação não meramente literal, por força do estatuído no artigo 9º do Código Civil) – não foi sequer considerada para efeitos de decisão (supra, 1.).
A procedência da presente reclamação pressuporia, pelo menos, que a reclamante demonstrasse que, para o tribunal recorrido, a solução do caso não
'haveria de encontrar-se, sem mais, no artigo 282º, n.º 1, da Constituição e no artigo 2º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 55/79, de 15 de Setembro – este último numa interpretação não meramente literal, por força do estatuído no artigo 9º do Código Civil', isto é, que a reclamante demonstrasse que a solução encontrada pelo tribunal recorrido não podia ter assentado na simples aplicação dos mencionados preceitos.
Tal demonstração não foi manifestamente efectuada. Na verdade, a reclamante limita-se a relatar o processado até à decisão recorrida (artigos 6º a 9º da reclamação: supra, 2.) e a reproduzir trechos da decisão recorrida que não só não aludem ao artigo 3º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro – a norma cuja aplicação alegadamente foi recusada –, como expressamente referem o artigo 282º da Constituição e o artigo 2º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 55/79, de 15 de Setembro (artigo 10º da reclamação: supra, 2.).
4. De todo o modo, e decisivamente, sublinha-se que a aplicação ao caso da disposição contida no artigo 2º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 55/79 feita pelas instâncias nos presentes autos decorre imediatamente da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do artigo 107º, n.º
1, alínea b), do RAU (nos termos do artigo 282º, n.º 1, da Constituição) e não de qualquer juízo autónomo sobre a conformidade constitucional da norma revogatória do direito anterior constante do artigo 3º, n.º 1, alínea e), do Decreto-Lei n.º 321-B/90. Aliás, a mesma solução decorreria inevitavelmente de tal declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, mesmo na ausência de tal norma revogatória – isto é, no caso de mera revogação tácita do direito anterior – por força do princípio estabelecido no referido artigo 282º, n.º 1, da Constituição.
Assim, não existindo razões para alterar a decisão sumária reclamada, nada mais resta senão confirmá-la.
III
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, confirmando-se a decisão sumária que concluiu pelo não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 10 DE Julho de 2002- Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida