Imprimir acórdão
Proc. n.º 4/03
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1. A., com os sinais dos autos, recorre para este Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (doravante LTC), do acórdão da Relação de Lisboa, de 20 de Novembro de 2002, que decidiu rejeitar-lhe o recurso que interpôs do despacho do senhor juiz do 2º Juízo Criminal de Lisboa, de 17 de Abril de 2002.
2. No presente processo comum com juiz singular, ao abrigo do art.º
16º, n.º 3 do Código de Processo Penal (doravante CPP), o Ministério Público acusou o ora recorrente da autoria material de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos art.os 181º, n.º 1 e 184º, com referência ao art.º 132º, n.º 2, al. j), e de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art.º
347º, todos do Código Penal (doravante CP).
A acusação foi recebida e designada audiência de julgamento por despacho judicial de 26 de Abril de 2001 (fls. 43), com a 1ª data para 16 de Janeiro de 2002, pelas 14 horas, e a 2ª data, em caso de adiamento, para 20 de Fevereiro de 2002, pelas 14 horas, nos termos dos art.os 333º, n.os 1 a 3, e
313º, n.º 2 do CPP.
O julgamento teve lugar nesta segunda data, nos termos daquele art.º
333º, n.os 2, 3 e 5 do CPP (redacção do Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro), com fundamento no facto de este ter sido devidamente notificado
(pessoalmente e com as cominações legais – fls. 64 a 67) e a sua presença não se afigurar imprescindível para a descoberta da verdade (cfr. acta de fls. 68-70), vindo o arguido a ser condenado, por sentença de 18 de Janeiro, de 2002, na pena
única de 1 ano de prisão e 90 dias de multa, esta à taxa diária de € 4,00, ou seja, € 360,00.
A sentença foi notificada, nesse dia 18 de Janeiro de 2002, a quem estava presente ao acto de leitura, mormente a defensora oficiosa do arguido
(cfr. acta de fls. 87), bem como pessoalmente a este arguido, que ali se apresentou (fls. 88), juntando, então, procuração a favor de outra advogada
(fls. 89).
Em 6 de Março de 2002, veio então o arguido, através da sua defensora, requerer novo julgamento, arguindo como fundamento a nulidade da notificação da acusação que lhe fora efectuada a fls. 51 para os efeitos do art.º 287º, n.os 1, al. a) e 3 do CPP.
Este requerimento foi indeferido pelo referido despacho judicial, de
17 de Abril de 2002, do seguinte teor:
«Foi realizada audiência de julgamento do arguido A., a que este faltou, sendo que prestou T.I.R. (fls. 66) e foi devidamente notificado do despacho de recebimento da acusação e de designação de dia para julgamento. Notificado (fls. 88) da sentença de fls. 74 a 86, veio o arguido a fls. 90, requerer a realização de novo julgamento, com o fundamento de que da certidão de notificação do despacho acusatório de fls. 50 e 51 (devidamente assinada pelo arguido e datada de 13 de Março de 2001) não consta a entrega ao arguido de cópia da acusação, de que teria 20 dias para requerer a abertura de instrução, de que lhe tinha sido nomeado defensor oficioso e de que este tinha sido notificado da acusação. Defende o arguido que “estamos em face de uma nulidade arguível nos termos da al. d) do nº 2 do art. 120 do Cod. Proc. Penal – omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade”.
Cumpre apreciar e decidir:
Vem o arguido invocar a existência de uma nulidade relativa, concretamente prevista no art. 120º, n.º 2, al. c) do CPP. Estas “nulidades dependentes de arguição devem ser arguidas pelos interessados nos prazos estabelecidos por lei. Não sendo arguidas dentro desses prazos, consideram-se sanadas”. (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, T. II, Verbo, 1993, p. 66).
Quanto a prazos de arguição, aplica-se o geral, previsto no art. 105º, n.º 1 do CPP (10 dias), que se conta desde a data de notificação para qualquer termo posterior do processo ou de intervenção em qualquer acto processual (Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 68). Sendo caso disso, aplicar-se-ão os prazos especiais elencados no n.º 3 do referido art. 120.
Ora, no caso em apreciação, o acto em causa é a notificação do despacho acusatório, sendo que o arguido foi notificado (conforme fls. 51), isto é, assistiu ao acto, pelo que, nos termos do art. 120, n.º 3º, al. a), deveria ter, no momento, arguido a nulidade.
De qualquer forma, sempre se dirá que, mesmo aplicando o prazo geral dos 10 dias, o arguido (face às notificações posteriores que recebeu e ao decurso do tempo) já não estaria em prazo para arguir tal nulidade.
Pelo exposto, a arguição de nulidade é extemporânea pelo que – a existir – se considera sanada, indeferindo-se o requerido pelo arguido».
3. Inconformado com o aqui decidido, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
«1º - O despacho recorrido não se refere expressamente ao requerimento formulado pelo ora recorrente, no sentido de haver uma nova audiência de julgamento, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 380.º A do C.P.P., que fora introduzido pela Lei 59/98 de 25 de Agosto.
2°- Pese embora o que se lê no art. 3.º do Dec. Lei n.º 320-C/2000 - revogação do art. 380.º A do C.P.P- devia ser admitido o requerido a novo julgamento, face ao que se estatui na alínea a) do n.º 2 do art. 5º do C.P.P., isto porque o arguido foi acusado ao abrigo do C.P.P., na redacção anterior à ora vigente.
3°- A lei de autorização legislativa - Lei n.º 27-A/2000, de 17 de Novembro, não conferiu ao Governo autorização para revogar o disposto no art.º 380.º-A do C.P.P. introduzido pela Lei 59/98, de 25 de Agosto. Excedido que está manifestamente o sentido e a extensão da Lei de autorização legislativa, o disposto no art. 3.º do Dec-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, é orgânica e materialmente inconstitucional, razão pela qual deve ser desaplicado.
Termos em que se deve revogar a douta decisão recorrida por Acórdão em que:
a) Se ordene a requerida repetição do julgamento, em obediência ao disposto na alínea a) do n.º 2. do art. 5.º do C.P.P.
b) Se julgue inconstitucional o disposto no art. 3.º do Dec-Lei 320-C/2000, de
15 Dezembro, por manifesto desrespeito ao sentido e alcance da Lei de Autorização Legislativa respectiva, razão pela qual, deve tal artigo ser desaplicado (art. 204.º da C.R.P.)».
4. O recurso foi rejeitado pelo tribunal de 2ª instância, nos termos do art.º 420º, n.º 1 do CPP (manifesta improcedência), com base nos seguintes fundamentos:
«C) Nesta Relação, o Exm.º P.G.A., no seu douto parecer, concorda, em absoluto, com a resposta da sua colega da 1ª instância, acrescentando que: «2. O arguido não foi afectado em nada nos seus direitos de defesa e apenas recorre por recorrer. »; Pelo que entende que o recurso é manifestamente improcedente e, por isso, deve ser rejeitado, em conferência, nos termos dos arts. 419°, n° 4-a) e 420°, n.º 1]
, ambos do CPP . Cumprido o artº 417°. n° 2 do CPP - não houve qualquer resposta. O relator, no seu exame preliminar , também entende que o recurso deve ser rejeitado, por manifestamente improcedente – artºs 417°, n° 3, 419°, n° 4-a) e
420°, n° 1 do C.P.P.
III - Colhidos os vistos, cumpre decidir .
O recurso é, na verdade, de rejeitar, por manifestamente improcedente, já que tanto a letra como o espírito da lei - mormente, atenta a celeridade processual operada pelo D.L. n° 320-C/2000, de 15/12 que, como se viu, não belisca o direito de defesa do(s) arguido(s).
Não se verifica, desde logo, a invocada inconstitucionalidade.
Na verdade, não se verifica que tenha sido desrespeitado o sentido e o alcance da Lei n° 27-A/2000, de 17 de Novembro, que autorizou o Governo a alterar o Código de Processo Penal (mormente na redacção da Lei n° 59/98, de 25 de Agosto), mormente o seu artigo 6°, que respeita à Realização da audiência na ausência do arguido e que dispõe que:
« 1 - Se o arguido, regularmente notificado, não estiver presente na hora do início da audiência: a) O presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência de julgamento só será adiada se o tribunal considerar absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência; b) Se o tribunal considerar que a presença do arguido desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material ou se a falta do arguido for justificada, ao abrigo dos nºs 2 a 4 do artigo 117°, a audiência não é adiada, sendo inquiridas as testemunhas e ouvidos o assistente, os peritos ou consultores técnicos ou as partes civis presentes; c) O arguido mantém o direito a prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se esta ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor pode requerer que seja ouvido na Segunda data designada pelo juiz, nos termos do n° 2 do artigo 312°.
2 - As declarações referidas no número anterior serão documentadas, e ao caso nele previsto não se aplica o n.º 6 do artigo 328°».
Em suma, tudo isto foi devidamente respeitado na redacção dada pelo Dec.-Lei n.°
320-C/2000, de 15 de Dezembro, como se constata do supracitado art.º 196°, n° 3, especialmente da sua al. c) (o alegado TIR): - « De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333°.»
Bem como se mostra conforme a tal Lei a redacção do já aludido art.º 333° do CPP.
E, obviamente, ali se compreende (mormente, no espírito daquela Lei n.°
27-A/2000) a norma revogatória constante do artº 3° do D.L. nº 320-C/2000: que revogou o art.º 380°-A do CPP (da redacção anterior, ou seja, da citada Lei n°
59/98, de 25/08).
Resta, assim, dizer que tem inteira razão o MºPº, mormente na resposta ao recurso, quando conclui que não foi cometida nenhuma nulidade e/ou irregularidade [vigora aqui o princípio da legalidade, cfr. art.º 118°, n.° 2 do CPP], sendo certo que, manifestamente, não se verifica qualquer desses vícios na notificação pessoal ao arguido constante de folhas 51 dos autos (not. da acusação de fls. 44-45), nem na notificação do despacho que recebeu a acusação e designou a audiência de julgamento, cfr. fls. 53, 64 a 67, sendo que aí se mostram cumpridos os formalismos e cominações dos art.ºs 196°, n° 3-d) e 333°, do CPP (red. do D.L. n.º 320-C/2000), aliás devidamente comunicados ao arguido.
Apesar disso, o arguido faltou, e não justificou a sua falta, àquela 1ª data de audiência de julgamento, sendo que, nos termos da lei, mormente dos n.ºs 2, 3 e
5 do art.º 333° do CPP, a audiência prosseguiu na ausência do arguido, aliás, regularmente notificado e estando aí devidamente representado pela sua il. defensora e tendo o Mm.º Juiz a quo considerado, como vimos, não ser imprescindível para a descoberta da verdade material a sua presença. Note-se, finalmente, que a defesa não requereu, na altura - e podia tê-lo feito
- que o arguido fosse ouvido na 2ª data designada para tal - cfr. n° 3 do artº
333° do CPP (red. DL 320-C/2000).
Em suma, o presente recurso é manifestamente improcedente, pelo que é de rejeitar - cfr. art.º 420°, n° 1 do CPP».
5. Inconformado mais uma vez, o arguido interpôs recurso, nos preditos termos do art.º 70º, n.º1, al. b) da LTC, para este Tribunal Constitucional, afirmando, na parte útil o seguinte:
« [...]
9 - Na motivação e conclusões do recurso, sustentou, como continua a sustentar, o ora recorrente que a Lei n.º 27-A/2000 de 17 de Novembro, não
'habilitou” o Governo a revogar o art. 380º-A do Cod. Proc. Penal, sendo certo que este preceito legal é perfeitamente compatível com as alterações introduzi das por aquele decreto-lei.
10 - Daí sustentou, como continua a sustentar, a inconstitucionalidade parcial do Dec-Lei n.o 320-C/2000 de 15 de Dezembro, por violação do disposto no n.º 2 do art. 165° da CRP.
11 - O acórdão recorrido contrapôs o disposto no art. 6° da Lei de Autorização Legislativa.
12 - Acontece que tal preceito legal diz respeito, só e tão só, à 'realização da audiência na ausência do arguido'. Ora,
13 - Não se demonstrando que as alterações legislativas que ao abrigo dessa
'norma habilitante' foram decretadas sejam incompatíveis com a subsistência do que se dispunha no art. 380°-A, estamos perante uma 'questão em aberto'.
14 - Mais sustentou o ora recorrente que no caso de se não considerar procedente aquela questão de inconstitucionalidade, se deveria interpretar a revogação do art. 380°-A, no sentido de que nos casos, como é o dos autos, em que o arguido adquiriu o 'estatuto de arguido' ao abrigo do Cod. Proc. Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto, se lhe não poderia negar o direito a requerer novo julgamento, nos termos do mesmo art. 380°-A, face ao que se dispõe na al. a) do n.º 2 no art. 5° do Cod. Proc. Penal que, na opinião do recorrente constitui uma das mediações semânticas do disposto no n.º 4 do art.
29° da CRP .
15 - Pretendendo justificar a 'questão' equacionada no precedente n.º 14, mais alegou o ora recorrente de que, no caso dos autos, foi, efectivamente retirada, ao recorrente, uma garantia de defesa, porquanto de nada lhe valeria o direito, agora, só ao recurso, se a sentença condenatória proferida fosse, como foi, correcta de um ponto de vista formal, face aos factos apurados em audiência de julgamento.
16- O acórdão recorrido nem sequer se dignou a pronunciar-se sobre esta segunda questão.
17 - Entende o ora recorrente que se mostram violados, entre outros, os princípios constitucionais consagrados no n.º 2 do art. 165°, n.º 4 do art. 29° e n.º 1 do art. 32°, todos da CRP».
6. Sintetizando os fundamentos expostos nas suas alegações de recurso para este Tribunal, formulou o recorrente as seguintes conclusões:
«1ª- O art. 3° do Dec-Lei n.º 320-C/2000 de 15 de Dezembro, por violação do disposto no n.º 2 do art. 165° da CRP, é inconstitucional.
2ª- No domínio do Cod. Proc. Penal, na sua redacção actual, de nada vale o direito ao recurso (n.º 5 do art. 333°). Na verdade,
3ª- Em nada aproveita o arguido se a sentença for formalmente correcta, isto é, não padecer das nulidades taxativamente previstas no art. 379°.
4ª- O poder do juiz, que não é dever, de considerar, ou não, imprescindível a audiência do arguido, exerce-se no uso de um poder discricionário e, por isso mesmo, insindicável em sede de recurso (nºs 1 e 2 do art. 333°).
5ª - A aplicação, negada pelo acórdão recorrido, do disposto no citado art.
380°-A, verdadeira norma de direito processual, de carácter substantivo, impunha-se, por força do disposto no n.º 4 do art. 29° da CRP, tendo como referência o 'tempus delicti'.
6ª - Face ao disposto na al. a) do n.º 2 do art. 5° do Cod. Proc. Penal, e quanto mais não seja por força do 'princípio da interpretação da lei conforme à Constituição' (art. 204° da CRP), impõe-se - estamos ainda no domínio das garantias de defesa do arguido - a subsistência do art. 380°-A do Cod. Proc. Penal.
7ª - O momento de referência da aplicação da lei mais favorável, ou de desaplicação da lei mais gravosa para o arguido, há de ser o da formulação da acusação (art. 283° do Cod. Proc. Penal, por analogia com o disposto no art.
267° do Cod. Proc. Civil, ex vi do art. 4° do Cod. Proc. Penal), sendo certo que o ora recorrente foi acusado no domínio da redacção do Código de Processo Penal, anterior à ora vigente
8ª - Mostram-se violados, entre outros, os princípios constitucionais consagrados no n.º 2 do art.165°, n.º 4 do art. 29° e n.º 1 do art. 32°, todos da CRP».
7. Por seu lado, o Ministério Público, recorrido, contra-alegou, concluindo pelo seguinte modo:
«1 - Ao revogar o artigo 380º-A do Código de Processo Penal, o artigo 3º do Decreto-Lei nº 320-C/2000, de 15 de Dezembro, não desvirtua o sentido, nem ultrapassa os limites fixados pela respectiva lei de autorização legislativa, pelo que não ocorre a inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo
165°, n° 1, alínea c) e n° 2 da Constituição.
2 - Tendo o arguido prestado termo de identidade e residência e sido pessoalmente notificado da acusação e do despacho que designou dia para o julgamento, já na vigência do Decreto-Lei n° 320-C/2000, de 15 de Dezembro, que introduziu alterações ao Código de Processo Penal, não configura violação dos princípios contidos nas normas dos artigos 29°, n° 4, e 32°, n° 1, da Constituição, não beneficiar da faculdade de requerer novo julgamento, previsto na legislação revogada.
3 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso».
8. Concluso o processo ao relator, suscitou este a questão prévia do não conhecimento da questão de inconstitucionalidade da norma revogatória do art.º
380º-A do CPP enquanto interpretada no sentido de não conceder ao arguido o direito a requerer novo julgamento, nos termos do seguinte despacho:
“[...]
2. No seu requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional, o recorrente erige como objecto do mesmo duas questões: uma, traduzida na inconstitucionalidade da revogação do art.º 380.º-A do Código de Processo Penal (doravante CPP) por essa revogação não estar incluída na habilitação parlamentar concedida ao Governo pela Lei n.º 27-A/2000, de 17 de Novembro, com o que sairá ofendido o art.º 165.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (de ora em diante CRP); uma outra, consubstanciada no facto da norma revogatória do art.º 380.º-A do CPP enquanto interpretada no sentido de não conceder ao arguido o direito a requerer novo julgamento, como resultaria da aplicação ao caso do art.º 5.º, n.º 2, al. a) do mesmo código, ofender os comandos dos art.os 29.º, n.º 4 e 32.º, n.º 1 da CRP.
3. Ora verifica-se que o acórdão recorrido não se pronunciou nem decidiu esta segunda questão. E em boa verdade poderá até dizer-se que ele nem poderia sequer dela conhecer ou seja, enquanto questão de inconstitucionalidade. Como se verifica das suas alegações apresentadas no recurso para a Relação, o recorrente apenas coloca, relativamente à matéria da realização de um novo julgamento, uma questão de omissão de pronúncia por banda do tribunal a quo: segundo o seu arrazoado, bem expresso, nas conclusões 1ª e 2ª, o tribunal recorrido “não se refere expressamente ao requerimento formulado pelo recorrente, no sentido de haver uma nova audiência de julgamento, nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º
380.º-A do CPP...”. Ora, a recorrente colocou essa questão da realização de um novo julgamento apenas no plano da lei infraconstitucional, defendendo a sua solução apenas com base na aplicação do disposto na al. a) do n.º 2 do art.º 5.º do mesmo CPP. Em ponto algum da sua motivação se vê questionada a validade da norma revogatória do art.º 380.º-A do CPP corporizada pelo artº 3º do Decreto-Lei n.º 320-C/2000 com base na violação de quaisquer parâmetros constitucionais. Temos, portanto, por evidente que o recorrente não problematizou a questão de constitucionalidade que agora veio a fazer no seu requerimento de recurso para este Tribunal Constitucional.
4. Assim sendo, não pode considerar-se que o recorrente tenha suscitado a segunda questão de inconstitucionalidade durante o processo e se ache assim cumprido o pressuposto específico estabelecido nas disposições conjugadas dos art.ºs 70.º, n.º 1, al. b) e 75.º-A, n.os 1 e 2 da LTC..
5. [...]
6. Deste modo prefigura-se uma questão que obsta ao conhecimento do recurso da referida questão de inconstitucionalidade da norma revogatória do art.º 380.º-A do CPP. A circunstância do recurso ter sido admitido não vincula o Tribunal Constitucional (art.º 76.º, n.º 3 da LTC).
7. Destarte decide-se ouvir as partes sobre a questão prévia, ao abrigo do disposto no art.º 3.º, n.º 3 do CPC, ex vi do art.º 69º da LTC, pelo prazo de 10 dias».
9. Notificado, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal respondeu dizendo conformar-se com o teor do despacho, no sentido da falta de requisitos para se conhecer do recurso, relativamente à questão suscitada.
10. Ao contrário, o arguido defendeu, em síntese, que “tendo o tribunal recorrido desatendido a questão de inconstitucionalidade da norma revogatória do art.º 380º-A do CPP, pronunciou-se implicitamente pela não aplicação desta revogada norma, ao caso em apreço (1ª parte do n.º 2 do art.º
600º do CPC, ex vi do art.º 4º do CP)”; que “quanto ao confronto da revogação do art.º 380º-A do CPP, com o n.º 4 do art.º 29º, entende o recorrente que tal princípio está ínsito no disposto na expressamente invocada al. a) do n.º 2 do art.º 5º do CPP”, cuja aplicação sustentou na motivação do recurso para a Relação, como “resulta dos artigos 10º a 15º” da mesma e que não poderá deixar de considerar-se verificado o requisito da exaustão dos recursos, em virtude da decisão recorrida ter a natureza de decisão final de que não cabe recurso e as nulidades apenas poderem ser arguidas ou conhecidas em recurso, conforme resulta
– argumenta ele - do disposto nos art.os 379º, n.º 2, 414º, n.º 4 e 400º, al. e), todos do CPP.
B – Fundamentação
11. Da delimitação do objecto do recurso: a questão prévia
Não pode deixar de concluir-se pelo não conhecimento da questão de inconstitucionalidade material alegada no requerimento de interposição de recurso relativa à norma revogatória do art.º 380º-A do CPP enquanto interpretada no sentido de não conceder ao arguido o direito a requerer novo julgamento, como resultaria da aplicação ao caso do art.º 5º, n.º 2, al. a) do mesmo código, por violação dos comandos dos art.os 29º, n.º 4 e 32º, n.º 1 da CRP. Com efeito, a consistência da questão prévia suscitada pelo relator basta-se com a fundamentação desenvolvida sob o ponto 3 de tal despacho, acima reproduzida.
E é irrelevante argumentar, como faz o recorrente, que o tribunal recorrido, “tendo desatendido a questão de inconstitucionalidade da norma revogatória do art.º 380º-A do CPP, pronunciou-se implicitamente pela não aplicação desta revogada norma ao caso em apreço”.
E é irrelevante porque, por um lado, tal não implica que, a admitir-se um tal juízo implícito, se houvesse de, inelutavelmente, admitir, igualmente, que a decisão recorrida se teria pronunciado, também de modo implícito, quanto à constitucionalidade material da norma revogatória, e consequente não aplicação da norma revogada, já que questionada fora apenas a inconstitucionalidade orgânica da norma revogatória e, por outro, que o recorrente haja colocado ao Tribunal da Relação esta mesma questão de inconstitucionalidade, àquela outra dimensão normativa.
Como ali se disse, não tendo o recorrente problematizado tal questão de constitucionalidade nas conclusões do recurso para a 2ª instância, não estava esse tribunal obrigado a conhecer dela enquanto questão suscitada. O tribunal só poderia conhecer dessa problemática, e estaria obrigado a fazê-lo a título oficioso, por força do disposto no art.º 204º da CRP, caso tivesse prefigurado a possibilidade da verificação da inconstitucionalidade da norma.
Na verdade, no domínio dos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade de actos normativos, atendendo ao sistema difuso de controlo constitucionalmente estabelecido, admite-se recurso para o Tribunal Constitucional das decisões judiciais que “apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo” [artigos 280.º, n.º 1, al. b) da CRP e 70º, n.º 1, al. b) da LTC]. Como ensina Cardoso da Costa (A jurisdição constitucional em Portugal, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, I, 1984, pp. 210 e ss.),
«quanto ao controlo concreto – ao controlo incidental da constitucionalidade
(…), no decurso de um processo judicial, de uma norma nele aplicável – não cabe o mesmo, em primeira linha, ao Tribunal Constitucional, mas ao tribunal do processo. Na verdade, não obstante a instituição de uma jurisdição constitucional autónoma, manteve-se na Constituição de 1976, mesmo depois de revista, o princípio, vindo das Constituições anteriores (…), segundo o qual todos os tribunais podem e devem, não só verificar a conformidade constitucional das normas aplicáveis aos feitos em juízo, como recusar a aplicação das que considerarem inconstitucionais (…). Este allgemeines richterliches Prüfungs-und Verwerfungsrecht encontra-se consagrado expressamente (…), e com o reconhecimento dele a Constituição vigente permanece fiel ao princípio, tradicional e característico do direito constitucional português, do “acesso” directo dos tribunais à Constituição (…). Quando, porém, se trate de recurso de decisão de aplicação de uma norma (…) é ainda necessário que a questão da inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, em consequência do que o juiz tomou posição sobre ela (…). Compreende-se, na verdade, que a invocação da inconstitucionalidade unicamente ex post factum (depois de proferida a decisão) não seja suficiente para abrir o recurso para o Tribunal Constitucional (sob pena, além do mais, de se converter num mero expediente processual dilatório)». Constitui, assim, requisito deste tipo de recurso, com decorre daqueles preceitos, quando fala da aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, mas que encontra igualmente tradução no n.º 2
do art.º 75º-A da LTC, que a questão de inconstitucionalidade da norma efectivamente aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida tenha sido suscitada durante o processo. O alcance deste conceito tem sido esclarecido, por várias vezes, por este Tribunal. Assim, por exemplo, no Acórdão n.º 352/94, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Setembro de 1994, disse-se que esse requisito deve ser entendido “não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”. Por seu lado, afirma-se, igualmente, no Acórdão n.º 560/94, publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Janeiro de 1995, que «a exigência de um cabal cumprimento do ónus de suscitação atempada - e processualmente adequada - da questão de constitucionalidade não é [...] “uma mera questão de forma secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame da questão (e não a um primeiro julgamento de tal questão)». Neste domínio há que acentuar, na sequência do já dito, que, nos processos de fiscalização concreta, a intervenção do Tribunal Constitucional se limita ao reexame ou reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o tribunal a quo apreciou ou devesse ter apreciado. Ainda na mesma linha de pensamento podem ver-se, entre outros, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República, II
Série, de 20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 2000).
É certo que tal doutrina sofre restrições, como se salientou naquele Acórdão n.º
352/94, mas isso apenas acontece em situações excepcionais ou anómalas, nas quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes proferida ou não era exigível que o fizesse, designadamente por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo insólita e imprevisível. Usando os termos do recente Acórdão n.º 192/2000, dir-se-á, ainda, que “quem pretenda recorrer para o Tribunal Constitucional com fundamento na aplicação de uma norma que reputa inconstitucional tem, porém, a oportunidade de suscitar a questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferido o acórdão da conferência de que recorre...”. E é claro que não poderá deixar de entender-se que o recorrente tem essa oportunidade quando a apreensão do sentido com que a norma é aplicada numa decisão posteriormente proferida poderá/deverá ser perscrutado no(s) articulado(s) processual(ais) funcionalmente previsto(s) para discretear juridicamente sobre as questões cuja resolução essa decisão tem de ditar, por antecedentemente colocadas, e em que aquele sentido, cuja constitucionalidade se poderá questionar, se apresenta como sendo um dos plausíveis a ser aplicados pelo juiz. Ao encararem ou equacionarem, na defesa das suas posições, a aplicação das normas, as partes não estão dispensadas de entrar em linha de conta com o facto de estas poderem ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os considerar na defesa das suas posições, aí prevenindo a possibilidade da (in)validade da norma em face da lei fundamental. Digamos que as partes têm um dever de prudência técnica na antevisão do direito plausível de ser aplicado e, nessa perspectiva, quanto à sua conformidade constitucional. O dever de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo e pela forma adequada enquadra-se dentro destes parâmetros acabados de definir. Assim sendo, não poderá considerar-se ter o acórdão recorrido aplicado norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Por outro lado, também não se verifica qualquer das referidas situações em que o recorrente se deve ter por dispensado do ónus de suscitação.
Consequentemente, não ocorre a hipótese contemplada na al. b), do n.º 1, do art.º 70º da LTC, concretizadora, aliás, do regime constante da al. b), do n.º 1 do art.º 280º da CRP.
12. Do mérito do recurso
Há, pois, que conhecer apenas da questão de saber se a norma revogatória do art.º 380º-A do CPP, ou seja, a norma constante do art.º 3º do Decreto-Lei n.º
320-C/2000, de 15 de Dezembro, foi emitida a descoberto da autorização legislativa concedida ao Governo pela Lei n.º 27-A/2000, de 17 de Novembro, saindo, assim, violado o art.º 165º, n.º 2 da CRP. Segundo o recorrente, a lei de autorização legislativa – a Lei n.º 27-A/2000, de
17 de Novembro -, sob cuja invocação foi emitido o Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro, não conferiu ao Governo autorização, nem expressa nem implicitamente, para revogar o disposto no art.º 380º-A do CPP, introduzido pela Lei n.º 58/98, de 25 de Agosto, constante da norma do art.º 3º daquele decreto-lei, pelo que foi excedido o seu sentido e extensão, sofrendo, por isso, de inconstitucionalidade orgânica, por violação do n.º 2 do art.º 165º da CRP. O acórdão recorrido entendeu que a alegação de inconstitucionalidade não procedia, em resumo, porque, tendo o art.º 6º da lei de autorização, e que se veio a converter na nova redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 320-C/2000 ao art.º
333º do CPP, disposto, quanto à realização de audiência na ausência do arguido, por modo diverso do prescrito no art.º 380º-A, se compreendia no seu espírito a norma revogatória deste último preceito. Pelo seu artigo 1º, a Lei n.º 27-A/2000 concedeu autorização ao Governo para
“rever o Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, alterado pelos Decreto-Leis n.os 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho, e 317/95, de 28 de Novembro, e pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, sendo o sentido e a extensão das alterações a introduzir, em matérias abrangidas pela reserva de competência da Assembleia da República, os constantes dos artigos subsequentes”. E, no seu artigo 6º, a mesma Lei dispôs pelo seguinte modo:
«Artigo 6º Realização da audiência na ausência do arguido
1 - Se o arguido, regularmente notificado, não estiver presente na hora do início da audiência: a) O presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência de julgamento só será adiada se o tribunal considerar absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência; b) Se o tribunal considerar que a presença do arguido desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material ou se a falta do arguido for justificada, ao abrigo dos n.os
2 a 4 do artigo 117º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas as testemunhas e ouvidos o assistente ou consultores técnicos ou as partes civis presentes; c) O arguido mantém o direito a prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se esta ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor pode requerer que seja ouvido na segunda data designada pelo juiz, nos termos do n.º 2 do artigo 312º.
2 – As declarações referidas no número anterior serão documentadas, e ao caso nele previsto não se aplica o n.º 6 do artigo 328º».
Invocando o uso da autorização legislativa concedida pelo art.º 1º desta Lei n.º 27-A/2000, o art.º 1º do Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro, alterou o art.º 333º do CPP, termos seguintes:
«Artigo 333º
[...]
1 – Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência de julgamento só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.
2 – Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.os 2 a 4 do artigo 117º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do art.º 341º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do art.º 117º.
3 – No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, e se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do artigo 312º, n.º 2.
4 – O disposto nos números anteriores não prejudica que a audiência tenha lugar na ausência do arguido, com o seu consentimento, nos termos do art.º
334º, n.º 2.
5 – No caso previsto nos n.ºs 2 e 3, havendo lugar a audiência na ausência do arguido, a sentença é notificada ao arguido logo que seja detido ou se apresente voluntariamente. O prazo para a interposição do recurso pelo arguido conta-se a partir da notificação da sentença».
Do mesmo diploma consta a norma do seguinte teor:
«Artigo 3.º Norma revogatória
É revogado o artigo 380º-A do Código de Processo Penal».
Este artigo 380º-A do CPP havia sido aditado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto e tinha a seguinte redacção:
«Artigo 380º-A
(Recurso e novo julgamento em caso de julgamento na ausência)
1. Sempre que a audiência se tiver realizado na ausência do arguido, nos termos do artigo 334º, n.º 3, pode este, no prazo de 15 dias, no caso de ter sido condenado: a) Interpor recurso da sentença, ou requerer novo julgamento no caso de apresentar novos meios de prova, se ao crime corresponder pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos; b) Interpor recurso da sentença, ou requerer novo julgamento, se ao crime corresponder pena de prisão superior a cinco anos.
2. No requerimento o arguido apresenta, desde logo, as provas a produzir.
3. Sendo requerido novo julgamento: a) As declarações prestadas na anterior audiência têm o valor de declarações para memória futura, com as finalidades referidas no artigo 271º; b) Se o arguido não estiver presente na hora designada para o início da audiência e não for possível a sua comparência imediata, a audiência é adiada e o arguido notificado do novo dia designado; c) Se o arguido não for encontrado e não puder ser notificado da data da audiência ou não comparecer nem for possível obter a sua comparência no novo dia e hora designados, entende-se que desiste do requerimento, não sendo possível, em caso algum, ser renovado o requerimento; d) No caso previsto na alínea anterior, a sentença proferida na ausência do arguido considera-se transitada em julgado na data em que lhe tiver sido notificada; e) É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 116º, n.os 1 e 2, e 254º».
O art.º 334º n.º 3 do CPP, referido no n.º1 do preceito acabado de transcrever dispunha pelo seguinte modo:
«3. Se não for possível notificar o arguido sujeito a termo de identidade e residência do despacho que designa dia para a audiência, previsto nos artigos
313º e 333º, n.º 2, o arguido é notificado naquela data por editais, com a cominação de que será julgado na ausência caso não esteja presente. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 335º, n.º 2».
O n.º 2 do art.º 165º da CRP estabelece que “as leis de autorização devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada”.
É vasta a jurisprudência do Tribunal sobre estes condicionamentos das leis de autorização legislativa (cfr., entre outros, os Acórdãos n.os
358/92, publicado no Diário da República, I Série, de 26 de Janeiro de 1993,
959/96, 257/97, 385/97 e 477/98, publicados no Diário da República II Série, respectivamente, de 19/12/1996, 2/10/1998, 11/7/1997 e 24/11/1999). Escreveu-se no primeiro aresto, que se invoca pela profundidade da sua análise, até em termos de direito comparado:
«Quanto ao objecto da autorização, ele consiste na enunciação da matéria sobre a qual a autorização vai incidir, enunciação essa que, sem prejuízo das garantias de segurança do sistema jurídico, pode ser feita por remissão e abranger inclusive mais do que um tema ou assunto. Como já se escreveu, «a determinação do objecto definido pode ser feita de forma indirecta ou até implícita, quer por referência a actos legislativos preexistentes (que a delegação pretenda coordenar, refundir ou pôr em execução), quer por natural decorrência dos princípios e critérios directivos aplicados a uma matéria genericamente enunciada ou a matérias complexas (cf. António Vitorino, As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, ed. pol.; Lisboa, 1985, p. 231). E continuando: «Por seu turno, a extensão da autorização especifica quais os aspectos da disciplina jurídica da matéria em causa sobre que vão incidir as alterações a introduzir por força do exercício dos poderes delegados». E sobre o que deve ter-se pelo sentido da autorização, afirmou-se aí, por remissão para o Autor citado: «O sentido da autorização legislativa, sendo algo mais do que a mera conjugação dos elementos objecto (matéria ou matérias da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República sobre que incidirão os poderes delegados) e extensão (aspectos da disciplina jurídica daquelas matérias que integram o objecto da autorização que vão ser modificados), não constitui, contudo, exigência especificada de princípios e critérios orientadores [...], mas algo mais modesto ou de âmbito mais restrito, que deve constituir essencialmente um pano de fundo orientador da acção do Governo numa tripla vertente: Por um lado, o sentido de uma autorização deve permitir a expressão pelo Parlamento da finalidade da concessão dos poderes delegados na perspectiva dinâmica da intenção das transformações a introduzir na ordem jurídica vigente
(é o sentido na óptica do delegante); Por outro lado, o sentido deve constituir indicação genérica dos fins que o Governo deve prosseguir no uso dos poderes delegados, conformando, assim, a lei delegada aos ditames do órgão delegante (e o sentido na óptica do delegado); e Finalmente, o sentido da autorização deverá permitir dar a conhecer aos cidadãos, em termos públicos, qual a perspectiva genérica das transformações que vão ser introduzidas no ordenamento jurídico em função da outorga da autorização
(é o sentido da óptica dos direitos dos particulares, numa zona revestida de especiais cuidados no texto constitucional - as matérias que incluem a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República)».
Como é evidente, a determinação da extensão e do sentido das leis de autorização não dispensa a utilização dos instrumentos de pesquisa do pensamento legislativo. Se existem casos em que eles serão patentes, outros haverá em que a sua determinação exigirá maior esforço heurístico.
No caso sub judicio, constata-se que a amplitude das leis autorizadas ou os aspectos da disciplina jurídica da matéria em causa sobre que incidiram as alterações introduzidas por força do exercício dos poderes legislativos delegados (extensão da autorização), bem como os princípios-base, as directivas gerais ou os critérios a observar pelo legislador delegado
(sentido da autorização) foram enunciados pela Lei n.º 27-A/2000, por uma técnica de remissão para o disposto nos artigos subsequentes da mesma lei. As alterações de regime jurídico a introduzir na revisão do Código de Processo Penal são as que estão enunciadas nos artigos 2º a 11º. Por seu lado, os critérios a seguir pelo legislador ordinário relativamente a cada parcela dessa extensão da autorização estão expostos, também, em cada um desses preceitos.
Assim, verifica-se do art.º 6º da Lei n.º 27-A/2000 que o legislador parlamentar autorizou o legislador delegado a alterar o regime jurídico da realização da audiência de julgamento na ausência do arguido que então constava do Código de Processo Penal, e que era o regime constante dos transcritos preceitos do n.º 3 do art.º 334º e 380º-A, por um novo regime jurídico construído com base nos critérios constantes desse preceito que se deixou reproduzido acima, definidos, aliás, em termos bem precisos.
Ora, confrontando o teor do art.º 333º do CPP, saído do uso dessa autorização por parte do legislador do Decreto-Lei n.º 320-C/2000, acima reproduzido, fácil é constatar que ele se sobrepõe ao programa legislativo enunciado no art.º 6 da lei de autorização. Resulta deste preceito uma evidente intenção legislativa, na linha, de resto, do que, em termos bem claros, se afirma na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 41/VII, publicada no Diário da Assembleia da República, II Série-A, de 15 de Julho de 2000, que deu lugar à lei de autorização, de afastar as causas de morosidade processual relativas à realização da audiência de julgamento na ausência do arguido, na medida em “que [segundo aquela exposição de motivos] comprometem a eficácia do direito penal e o direito do arguido «ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa», nos termos do n.º 2 do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa”.
Por isso, o legislador parlamentar autorizou o legislador delegado a regular em termos completamente diferentes dos que constavam da legislação processual penal então em vigor a realização da audiência na ausência do arguido.
Os termos em que foi autorizada essa alteração do regime da realização da audiência na ausência do arguido, a concretizarem-se, como efectivamente veio a acontecer pelas alterações introduzidas pelo legislador delegado no art.º 333º do CPP, tornavam incompatível a manutenção do regime então constante daqueles n.º 3 do art.º 334º e 380º-A do CPP.
Sendo assim, bem se compreende que o legislador parlamentar tenha deixado de incluir o preceito, que antes figurava sob o art.º 3º da referida Proposta de Lei, no sentido de autorizar a revogação do art.º 380º-A do CPP. A revogação deste artigo impunha-se por razões de compatibilidade lógico-jurídicas. Nesta perspectiva, ter-se-á considerado que a inclusão de um preceito com tal sentido, na lei de autorização, era absolutamente desnecessária, havendo o mesmo, inelutavelmente, de inferir-se da incompatibilidade de subsistência do novo regime autorizado com o constante do art.º 380º-A do CPP.
No mesmo sentido vão, de resto, as intervenções que se produziram no Parlamento aquando da discussão, na gereneralidade, da citada, proposta de autorização legislativa, conforme emerge do Diário da Assembleia da República I Série, n.º 10, de 13 de Outubro de 2000.
Temos, assim, de concluir que a autorização de emissão de um preceito com o sentido do constante do reproduzido art.º 3º do Decreto-Lei n.º
320º-C/2000 estava necessariamente incluída na extensão e no sentido da referida lei parlamentar. Deste modo, não padece esse preceito do vício de inconstitucionalidade orgânica que o recorrente lhe aponta.
C – Decisão
Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal Constitucional decide:
a) não conhecer da questão de inconstitucionalidade consubstanciada em a norma revogatória do art.º 380.º-A do CPP enquanto interpretada no sentido de não conceder ao arguido o direito a requerer novo julgamento, ser de aplicação imediata aos processos em curso. b) negar provimento ao recurso na parte restante.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 15 UC, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que desfruta.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2003
Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto (votei a decisão, embora com dúvidas quanto à alínea a), por não se me afigurar seguro que o recorrente não tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da dimensão normativa relativa à aplicação imediata da norma revogatória, embora apenas com fundamento num parâmetro constitucional diverso daquele que invocou no recurso de constitucionalidade) Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos