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Processo n.º 485/03
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Por despacho de 28 de Fevereiro de 2003, o Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa determinou que os arguidos A. e B., devidamente identificados nos autos, e contra os quais corre inquérito penal pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, aguardassem o decurso do inquérito em regime de prisão preventiva. Nesse despacho, o Juiz validou as detenções dos arguidos e as apreensões efectuadas, ordenando a sua manutenção, e declarou concordar
“inteiramente em termos de facto e de direito com o teor da douta promoção supra” que deu por reproduzida. Nesta promoção, o Ministério Público havia requerido a prisão preventiva com fundamento em perigo de continuação da actividade criminosa.
Os arguidos arguiram a irregularidade e nulidade do despacho que lhes determinou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, invocando o seguinte:
“1º O ora subscritor, após ter sido proferida a decisão que aplicou aos arguidos a prisão preventiva, pediu a acta para fazer um requerimento.
2º O Sr. Juiz de Direito, que presidiu a diligência, entendeu não permitir tal requerimento.
3º O ora subscritor bem insistiu, embora sem sucesso, perante a posição do Sr. Juiz.
4º Pretendia o ora subscritor, naquele momento arguir a irregularidade/nulidade daquela decisão, o que perante a impossibilidade de o fazer na altura, vem agora fazê-lo no 1º dia útil.
5º Promoveu o Sr. Procurador Adjunto, a prisão preventiva dos arguidos, fundamentando com uma série de argumentos a necessidade da medida de coacção mais gravosa.
6º O ora subscritor, no uso da palavra, entendeu que não se justificava a aplicação da prisão preventiva, fundamentando com vários argumentos, necessariamente diferentes dos avançados pelo Mº Pº, requerendo por isso a aplicação de uma medida de coacção não privativa da liberdade.
7º Entre esses estava por exemplo, na opinião do subscritor, a impossibilidade de se efectuar uma nova detenção aos arguidos, uma vez que, há alguns dias atrás, os mesmos tinham sido detidos mas entretanto soltos, por terem passado mais de
48 horas sem serem presentes a um Juiz.
8º O Sr. Juiz de Direito decidiu aplicar a prisão preventiva aos arguidos, aderindo integralmente à promoção do Mº Pº sem mais.
9º Entende o ora subscritor que esta decisão que aplicou a medida de coacção – prisão preventiva – sofre do vício de falta de fundamentação para além de não se ter pronunciado sobre os argumentos avançados pela defesa.
10º Termos em que a decisão em causa, para indeferir o requerimento dos arguidos, se limita a remeter para a promoção do Mº Pº.
(...)
16º A decisão em causa não é de mero expediente, pois está em causa a liberdade individual dos arguidos.
17º Até por uma razão de transparência das decisões judiciais, dúvidas não podem ficar de que o julgador ponderou devidamente os argumentos pró e contra a aplicação daquela medida de coacção.
18º
É necessário concluir que o Juiz aprecie ele próprio os argumentos aduzidos, confrontando-os uns com os outros.
19º Salvo o devido respeito, somos a concluir que a decisão em causa, carece em absoluto de fundamentação.
20º Esta é a melhor interpretação a dar ao artigo 97º, n.º 4 do CPP, sob pena, dando-se-lhe outra interpretação, de a mesma contender com o artigo 205º da CRP.”
Por despacho de 7 de Março de 2003, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa decidiu indeferir o requerimento de arguição de irregularidade e inconstitucionalidade invocadas pelos dois arguidos, podendo ler-se neste despacho:
“(…) Convém, então, apreciar se estamos ou não perante uma situação de irregularidade do despacho judicial de fls. 312 e 313. Dispõe o art. 97º, n.º 4 do Cód. Proc. Penal que ‘Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão’. No caso dos autos, não se pode falar de falta de fundamentação, visto que no despacho judicial se dá por reproduzida a fundamentação de facto e de direito vertida na promoção do Mº Pº, ou seja, é como se o Juiz no seu despacho tivesse repetido a fundamentação que já constava da promoção do Mº Pº, só que, por uma questão de economia processual, limitou-se a dar por reproduzida sem a repetir. Afigura-se-nos, assim, que não existe falta de fundamentação, visto que a promoção do Mº Pº versa as questões de facto e as questões de direito pelas quais entendeu promover a aplicação aos arguidos da medida de coacção de prisão preventiva, questões essas nas quais o Juiz fundamentou a sua decisão. Relativamente às detenções dos arguidos, foi no próprio despacho judicial de fls. 312 considerado que tais detenções eram válidas e que se mantinham, pelo que, e neste aspecto, houve um despacho expresso acerca de tal matéria. Nesta conformidade, indefere-se a aludida irregularidade. Pelos mesmos motivos, entende-se que, encontrando-se a referida decisão judicial fundamentada, não houve violação do disposto no art. 205º da C.R.P., pelo que se indefere a aludida inconstitucionalidade.”
2.Inconformados, os arguidos recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo as alegações da seguinte forma:
“1. A defesa arguiu a nulidade do douto despacho, com o fundamento da falta de fundamentação por violação dos art.º 97º do CPP, 158º do CPC por referência ao artigo 205º da CRP.
2. Veio a ser indeferido.
3. O douto despacho que aplicou aos arguidos a medida de coacção – prisão preventiva – limita-se a aderir na totalidade à promoção do MºPº.
4. A defesa requereu a aplicação da medida de coacção não privativa da liberdade. Requerimento e argumentos novos que o douto despacho ignorou.
5. É pois nulo ou irregular o douto despacho que aplicou a prisão preventiva, por ausência de fundamentação própria e ainda por não se ter pronunciado sobre os argumentos apresentados pela defesa.
6. Esta é a melhor interpretação a dar ao artigo 97º, n.º 4 do CPP, sob pena, dando-se-lhe outra interpretação, de a mesma contender com o artigo 205º da CRP.
7. Volvidos 12 dias depois de os arguidos terem sido restituídos à liberdade por ordem do Exm.º Juiz de Instrução, foram emitidos novos mandados de detenção com os mesmos fundamentos.
8. Nos termos do artigo 215º do CPP, os arguidos não poderiam voltar a ser detidos na mesma fase processual.
9. Esta é a melhor interpretação dos artigos 141º e 215º do CPP sob pena de a dar-se-lhe outra estas normas estarem feridas de inconstitucionalidade por contenderem com o estatuído nos artigos 28º e 32º da CRP.
10. Os 12 dias de liberdade dos arguidos serviram para demonstrar a não existência dos perigos invocados.
11. No caso concreto não se demonstrou em concreto a existência dos perigos do artigo 204º do CPP.
12. Não houve notícia de problemas no meio em que os arguidos vivem pela sua permanência em liberdade.
13. Os arguidos têm actividade profissional e a natureza do crime não pode fundamentar a existência em concreto do perigo de continuação da actividade criminosa.
14. Entendemos que a interpretação segundo a qual é possível aplicar a medida de coacção – prisão preventiva – com o fundamento de que, em concreto – se verificam os perigos de perturbação da ordem e tranquilidade públicas bem como da continuação da actividade criminosa, é inconstitucional por esta interpretação contender com o estatuído no artigo 28º e 32º da CRP.”
Por acórdão de 13 de Maio de 2003, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu negar provimento ao recurso (assim como ao de um terceiro arguido nas mesmas circunstâncias dos referidos), com os seguintes fundamentos:
“a) Da pretensa ilegalidade da detenção dos arguidos, por violação do disposto nos artºs 141º e 215º, do C.P.P. e 28º e 32º, da C.R.P. Do circunstancialismo que se deixou descrito resulta evidenciado que, quanto à detenção dos arguidos, não se mostram violados quaisquer normativos, designadamente os indicados pelos recorrentes A. e B.. Na verdade, dos autos de recurso não resulta que os arguidos não tenham sido detidos com respeito pelas formalidades exigidas por Lei e não tenham sido apresentados ao Juiz de Instrução no prazo legal, com a presença do MºPº e dos respectivos Advogados, que os interrogou, até como resulta dos depoimentos dos recorrentes (cfr. fls. 100-105 destes autos), nos termos do disposto no art.º
141º do C.P.P., sem prejuízo de o processo se encontrar em segredo de justiça
(cfr. art.º 89º, n.º 2 do C.P.P.), vindo, a final, a proferir, suficientemente fundamentado, o despacho recorrido. Por outro lado, como é bom de ver, o facto de os arguidos, em anterior ocasião, terem sido, eventualmente, soltos por se haver esgotado o prazo de 48 horas, previsto nos art.ºs 28º, n.º 1, da C.R.P. e 141º, n.º1, do C.P.P., para serem apresentados ao Juiz, não impede a sua posterior detenção e sujeição às medidas de coacção que se afigurem adequadas e necessárias, designadamente à prisão preventiva. O consignado no art.º 215º, do C.P.P., relativo aos prazos de duração máxima da prisão preventiva, não tem aqui, como, obviamente, resulta do disposto nas suas várias alíneas e números, qualquer aplicação, nem mesmo por analogia. Não ocorreram, pois, ao contrário do alegado pelos recorrentes, antes da prolação do despacho ora sob recurso, e nele próprio, quaisquer ilegalidades relativas à detenção dos arguidos. b) Da pretensa nulidade/irregularidade do despacho de 28-2-2003 por falta de fundamentação, o que consubstanciará violação dos art.ºs 97º, n.º4 e 123º, do C.P.P., 158º, do C.P.C. e 205º, da C.R.P. Reza o art.º 97º, n.º 4, do C.P.P. (na redacção resultante da Lei 59/98, de
25/8): os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. Ora, perante o teor do aludido despacho, atrás transcrito, afigura-se-nos, salvo o devido respeito por diferente opinião, que o mesmo dá suficiente cumprimento ao disposto no citado normativo, sem qualquer violação do disposto no art.º 205, n.º1, da C.R.P. (‘As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei’), já que, por remissão para a douta promoção do MºPº, especifica, quantum satis, os relevantes motivos da decisão, quer de facto, quer de direito. Isso mesmo se mostra evidenciado na douta resposta do MºPº.
(...) Não se nos afigura, pois, que, face ao que vem de se aduzir, se possa invocar o disposto no art.º 158º, do C.P.C. para defender que o despacho de 28-2-2003 não se mostra fundamentado nos termos exigidos pelo C.P.P. e pela C.R.P.. E a suficiente fundamentação do mencionado despacho surge evidenciada perante a respectiva impugnação levada a cabo nos recursos interpostos, como à frente melhor se verá. E, porque o aludido despacho de 28-2-2003 não se nos apresenta ferido, nem tão pouco, de mera irregularidade, como esta se encontra prevista no art.º 123º, do C.P.P., óbvio é que o despacho de 7-3-2003, que desatendeu a irregularidade/nulidade e inconstitucionalidade efectuada pelos recorrentes A., B., pela justeza do decidido, não se configura como susceptível de qualquer crítica ou alteração. Quanto a esta segunda questão, como acaba de se ver, também não assiste aos recorrentes qualquer razão processualmente válida e relevante. c) Do pretenso carácter desnecessário, inadequado e desproporcionado da medida de coacção aplicada aos arguidos-recorrentes, com pretensa violação dos artºs
193º, n.ºs 1 e2, 202º e 204º, do C.P.P. e 28º, da CRP.: Como decorre do apontado e transcrito circunstancialismo, e do teor do despacho recorrido de 28-2-2003, que atrás se deixou reproduzido no que agora releva, encontra-se o mesmo devida e suficientemente fundamentado por remissão para a douta promoção do MºPº, já que a decisão proferida aparece inteiramente justificada face aos elementos, fácticos e jurídicos, adrede considerados e respeitantes a cada um dos recorrentes. Os esclarecedores elementos de prova que, constando já dos autos, foram suficientemente considerados no despacho que determinou que os arguidos-recorrentes ficassem em prisão preventiva, e levaram à prolação do mesmo, permitem inferir, por enquanto, e nesta inicial fase do inquérito, no que aos mesmo e a cada um respeita, que se mostra, forte e concludentemente, indiciada a prática, pelos mesmos arguidos, e outros eventualmente, pelo menos, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21º, n.º 1 do DL
15/93, com referência às tabelas I-B, I-C e II-A, anexas ao citado diploma legal. Para já, tal como, fundamentadamente, se mostra bem reflectido na decisão recorrida, e ao contrário do pretendido e defendido por cada um dos recorrentes, parece-nos que a posição probatória de que a acusação se pode prevalecer é mais sólida do que a da defesa de cada um dos arguidos-recorrentes, como resulta do circunstancialismo supra descrito e, nomeadamente, da quantidade e qualidade dos produtos e objectos apreendidos (cfr. fls. 40-97 destes autos), e, conforme o foram, relacionados entre si e conjugados com os demais, e esclarecedores, elementos probatórios trazidos ao processo principal (como salienta o MºPº nas suas respostas). Pode, pois, concluir-se que a qualificação jurídico-penal da indiciada conduta de cada um dos recorrentes levada a cabo no despacho recorrido, não surge evidenciada como carecendo, para já, de fundamentos fácticos, face aos elementos probatórios que já constam, e conforme ainda constam, dos autos. Ora, perante a gravidade da pena aplicável, pelo menos, ao (fortemente) indiciado crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1, do DL 15/93 de 22/1 – 4 a 12 anos de prisão – e face à natureza do mesmo e às suas circunstâncias concretas, a prisão preventiva apresenta-se como o único meio processual adequado, proporcional e necessário para prevenir, além de outros eventualmente, principalmente o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, dado o alarme social gerado por crimes desta natureza, como bem demonstrado se encontra nos autos (cfr. fls. 34), e de continuação da actividade criminosa, sem outra alternativa, por ora, no campo das medidas de coacção. Por outro lado, e perante o disposto nos art.ºs 32º, n.º2 e 27º, n.ºs 2 e 3 als. a) e b), da C.R.P., cabe deixar esclarecido que, como se salienta no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 69/88 (in B.M.J. n.º 375, pág. 192), a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva não é incompatível com o ‘princípio da presunção de inocência’. Face à natureza, e à gravidade, da ilicitude da indiciada conduta dolosa de cada um dos três arguidos-recorrentes, e nesta inicial, no que ao cabal esclarecimento dessa conduta respeita, fase do inquérito (…), outra alternativa não restava ao Ex.mº Juiz a quo, que, no sentido em que o fez, proferir o despacho recorrido no respeitante a cada um dos mesmos arguidos-recorrentes. Não há dúvida, pois, que, concretamente, se verificam, para já, e ainda, todos os pressupostos necessários para ser imposta a cada um dos recorrentes a medida de coacção de prisão preventiva nos termos dos artºs 193º, 196º 204º al. c) e
202º n.º1 al. a), do C.P.P.. O despacho de 28-2-2003, sob recurso, não se mostra, portanto, como violando qualquer dos normativos apontados nas motivações dos recursos, nomeadamente os de natureza constitucional, assim como qualquer dos atinentes aos princípios da legalidade, de adequação e proporcionalidade das medidas de coacção.”
3.Desta decisão judicial foi interposto, pelos arguidos, o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 97º n.º4, 141º, 215º, e 204º alínea c) do Código de Processo Penal, por violação dos artigos 205º e 28º e 32º da Constituição da República Portuguesa. No Tribunal Constitucional foi proferido despacho a ordenar a produção de alegações, ficando os recorrentes notificados para se pronunciarem, querendo, sobre o “eventual não conhecimento do recurso quanto ao artigo 215º do Código de Processo Penal, por esta norma não ter sido aplicada pelo Tribunal recorrido”.
Os recorrentes vieram apresentar alegações, que concluíram do seguinte modo:
“1. O art.º 97º n.º4 do CPP é inconstitucional quando interpretado no sentido de que, no âmbito do 1º interrogatório do arguido detido, o juiz pode dar por reproduzida a promoção do MºPº, sem que fundamente, de modo próprio, a decisão e atenda aos argumentos apresentados pela defesa e acusação.
2. In concreto o recorrente, para além de rebater os fundamentos da acusação, aduziu outros que sempre teriam de ser considerados através de despacho fundamentado.
3. A remissão para a fundamentação da promoção do MºPº é manifestamente insuficiente até porque estão em causa direitos fundamentais do ser humano.
4. É pois inconstitucional a interpretação dada aquela norma porquanto contende com o estatuído no art.º 205º da CRP.
5. Também é inconstitucional a interpretação que foi dada aos artºs 141º e 215º do CPP quando se interpretam algumas normas com o sentido de que, tendo os arguidos sido presentes para serem ouvidos em primeiro interrogatório e restituídos à liberdade, é admissível, na mesma fase processual, nova detenção para os mesmos efeitos processuais.
6. Na verdade as medidas de coacção estão sujeitas ao princípio rebus sic stantibus.
7. Por outro lado, o cidadão tem direito à paz jurídica e as expectativas criadas com a restituição à liberdade.
8. Os perigos aludidos na al. c) do art.º 204º não podem servir para fundamentar a opção da medida de coacção – prisão preventiva – sob pena, de, interpretando-se a norma neste sentido, a mesma ser inconstitucional por contender com o princípio da presunção da inocência consagrado no art.º 32º, n.º2 da CRP.
9. Com efeito, a utilização da prisão preventiva para fazer face aos perigos de continuação da actividade criminosa e perturbação da ordem e tranquilidade pública, constituem medidas extra processo que tem mais a ver com a defesa social e prevenção geral.
10. A defesa destes perigos não constituem [sic] medidas cautelares do processo. Violaram-se assim os seguintes preceitos:
- Artigos 28º, 32º e 205º da CRP.
- Artigos 97º, 141º e 215º do C.P.P.”
- O Ministério Público junto deste Tribunal produziu contra-alegações, concluindo nos seguintes termos:
“1 – Não é inconstitucional, pelos fundamentos constantes do Acórdão n.º 189/99, a norma constante do artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal, interpretada como permitindo a fundamentação, por remissão para a promoção do Ministério Público, do despacho que aplica ao arguido uma medida de coacção.
2 – A questão suscitada em torno das normas dos artigos 141º e 215º do Código de Processo Penal – e que substancialmente se traduz em pretender atribuir ao arguido um irrestrito direito de [não] alteração da sua situação, em termos de medidas de coacção, quando, por qualquer fundamento, já tiver sido libertado – não tem qualquer conexão com os preceitos legais invocados como seu suporte
–‘maxime’ com o artigo 215º, já que não está em causa o prazo máximo de duração de tal medida – configurando-se ainda a mesma questão como manifestamente infundada, já que o carácter cautelar e provisório de tais medidas impõe pela própria ‘natureza das coisas’ – a respectiva mutabilidade ao longo do evoluir do processo.
3 – É manifestamente infundada a questão suscitada em torno da norma do artigo
204º, alínea c), do Código de Processo Penal, já que a imposição de uma medida de coacção com base nos perigos aí referenciados se conexiona obviamente com um processo concreto, fundado no cometimento de certo facto punível – e não com abstractas preocupações ‘extra-processuais’ da defesa social ou de prevenção geral.
4 – Termos em que deverá improceder o recurso.” Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
4.O presente recurso, de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em
13 de Maio de 2003, vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, sendo requisitos específicos para se poder tomar conhecimento de um tal recurso que tenham sido esgotados os recursos ordinários dessa decisão, que se tenha impugnado durante o processo a constitucionalidade de uma norma e que essa norma tenha sido aplicada na decisão recorrida como ratio decidendi.
Ora, no presente caso este último requisito não se verifica, claramente, em relação a uma das normas impugnadas. Na verdade, pretendem os recorrentes que seja julgada inconstitucional “a interpretação que foi dada aos artºs 141º e
215º do CPP quando se interpretam algumas normas com o sentido de que, tendo os arguidos sido presentes para serem ouvidos em primeiro interrogatório e restituídos à liberdade, é admissível, na mesma fase processual, nova detenção para os mesmos efeitos processuais.”. Todavia, em relação ao artigo 215º do Código de Processo Penal, relativo aos prazos de duração máxima da prisão preventiva, pode ler-se no acórdão recorrido:
“O consignado no art.º 215º, do C.P.P., relativo aos prazos de duração máxima da prisão preventiva, não tem aqui, como, obviamente, resulta do disposto nas suas várias alíneas e números, qualquer aplicação, nem mesmo por analogia.”
5.O artigo 141º do Código de Processo Penal dispõe sobre o primeiro interrogatório judicial do arguido detido. Ora, este artigo (não se precisando, aliás, qual dos seus n.ºs) dificilmente pode comportar a interpretação impugnada pelos recorrentes, a qual diz respeito a uma alegada impossibilidade de nova detenção dos arguidos quando foram já anteriormente detidos para ser ouvidos em primeiro interrogatório e restituídos à liberdade.
Seja como for quanto a esta questão – e, portanto, mesmo admitindo-se o conhecimento do recurso quanto à dimensão normativa impugnada, ainda que referida àquele preceito –, é certo que, à luz das normas e princípios constitucionais, não pode ser a circunstância de os arguidos terem anteriormente sido detidos durante o inquérito, para serem apresentados ao juiz, mas terem sido libertados por se ter esgotado o prazo de 48 horas para tal, que, só por si, impede que venham a ser novamente detidos, e sujeitos às medidas de coacção que venham a ser decretadas. Como afirma o Ministério Público neste Tribunal, tal anterior detenção e libertação dos arguidos – por se ter esgotado o prazo de
48 horas de detenção sem apresentação ao juiz – não lhes tem de conferir, logo no plano constitucional, um irrestrito direito a impedir a alteração da sua situação, em termos de medidas de coacção (por, como dizem os recorrentes, lhes ter sido criada a “expectativa, aliás fundada, que a sua situação processual estaria definida a menos que violassem alguns dos deveres decorrentes da lei”).
Não resulta, aliás, do invocado parâmetro constitucional – o artigo 28º, n.º 1, da Constituição da República – qualquer impedimento a nova detenção, e aplicação de medidas de coacção, mas apenas a obrigação de submeter a detenção do arguido
“no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial”.
A questão de constitucionalidade suscitada pelos recorrentes em relação a esta pretensa dimensão normativa do artigo 141º – a sua interpretação no sentido de não impedir que o arguido anteriormente detido e libertado seja novamente detido e lhe sejam aplicadas medidas de coacção –, carece, pois, de fundamento.
6.Os recorrentes impugnam também a norma do artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal. Segundo este preceito, “os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”, estando ele em causa apenas na interpretação segundo a qual permite a fundamentação, por remissão para a promoção do Ministério Público, do despacho que aplica ao arguido uma medida de coacção.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta questão. Fê-lo, também quanto à aplicação de medida de prisão preventiva, no sentido da inexistência de inconstitucionalidade, designadamente, no Acórdão n.º 189/99 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 43º vol., 1999, pág. 165).
Na fundamentação deste Acórdão n.º 189/99 pode ler-se:
“O dever de fundamentação das decisões judiciais é imposto pelo artigo 205º, n.º
1, da Constituição, que prescreve:
1. As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Este Tribunal já por diversas vezes se pronunciou sobre o dever de fundamentação das decisões judiciais. Fê-lo, por último, a propósito do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nos Acórdãos n.ºs 680/98 (publicado no Diário da República, II série, de 5 de Março de 1999) e 102/99 (ainda por publicar); e, a propósito do artigo 219º do Código de Justiça Militar, no acórdão n.º 135/99
(ainda por publicar). No presente caso, porém, está em causa o artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal, nas suas relações com o artigo 194º, n.º 3, do mesmo Código, pois – recorda-se – o que se discute é a correcção da fundamentação de um despacho judicial que ordenou a prisão preventiva de um arguido. Pois bem: a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao arguido constitui responsabilidade do juiz (cf. os artigos 194º, n.º 1, e 202º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal). Por isso, é, desde logo, fundamental que, ao ordenar a prisão, o juiz o faça por decisão sua (ou seja: por virtude de, em face da prova existente, se ter convencido de que qualquer das outras medidas de coacção é ‘inadequada ou insuficiente’: cf. o citado artigo 202º, n.º 1) – e não por se ter deixado ‘arrastar’ pelo requerimento do Ministério Público nesse sentido. Depois, é essencial que essa ordem de prisão surja aos olhos do cidadão, efectivamente, como uma decisão pessoal do juiz que a determina: é que, no Estado de Direito, as aparências também têm o seu valor. Por último, é ainda importante que o arguido possa ter acesso às peças do processo que lhe permitam avaliar a justeza da decisão tomada contra si, a fim de, sendo o caso, a poder impugnar, em via de recurso. Isto dito, é óbvio que o despacho, que melhor espelha a responsabilização pessoal do juiz pela ordem de prisão que dá, é aquele em que o juiz enuncia, ele próprio, os motivos de facto da decisão tomada, em vez de se remeter para as razões invocadas pelo Ministério Público. Tal, porém, não significa que o exacto cumprimento do dever constitucional de fundamentação, mesmo estando em causa um despacho determinativo da prisão preventiva de um arguido, proscreva, em absoluto, a possibilidade de o juiz fundamentar a sua decisão, mediante remissão para a promoção do Ministério Público, a cuja conteúdo dá a sua adesão (ou por remissão para o conteúdo de outras peças processuais). A proibição de um tal modo de fundamentar existirá, seguramente, quando ele for susceptível de, legitimamente, criar a dúvida sobre se a ordem de prisão é uma decisão pessoal do juiz ou apenas um ‘ir atrás’ do Ministério Público. Só então, com efeito, o juiz deixa de desempenhar o papel, que é o seu, de garante das liberdades. Fora dessa situação, o juiz pode, perfeitamente, por razões de economia processual, remeter-se, no seu despacho, para a promoção do Ministério Público ou para outras peças do processo. Até porque, quando se remete para a promoção do Ministério Público, o juiz não está, propriamente, a aderir às teses de uma parte no processo. De facto, o Ministério Público, no processo penal, não é titular de interesses contrapostos aos do arguido. Cumprindo-lhe fazer valer o ius puniendi do Estado, há-de agir sempre com imparcialidade e objectividade, colaborando ‘com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito’ (cf. artigo 53º, n.º 1, do Código de Processo Penal). Ou seja: há-de empenhar-se em que se faça justiça. Para isso, ele ‘goza de [...] de autonomia, nos termos da lei’ (cf. artigo 219º, n.º 2, da Constituição), e os respectivos agentes são ‘magistrados’
(cf. o citado artigo 219º, n.º 4). Esse dever de colaborar na efectiva realização da justiça levou, inclusive, o legislador a reconhecer-lhe legitimidade para recorrer ‘de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido’ (cf. artigo 401º, n.º 1, do Código de Processo Penal): é que, a justiça reclama que se procurem punir os culpados, mas apenas os verdadeiros culpados. No processo penal, o Ministério Público é, assim, mais propriamente um órgão de justiça do que uma parte. Para concluir pela ilegitimidade constitucional do modo de fundamentação adoptado pelo acórdão recorrido, não é, por isso, razoável argumentar (como faz a recorrente) com o preceituado no artigo 158º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que, ao referir o modo de fundamentar ‘as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo’ (n.º
1), prescreve que ‘a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição’.
É que, não existe similitude entre a posição das partes no processo civil, que aí defendem interesses seus, e a do Ministério Público no processo penal, que aí prossegue, com imparcialidade e objectividade, interesses que, quando não são, exclusiva ou predominantemente, da comunidade, são encabeçados por particulares que, enquanto ofendidos, se podem constituir assistentes no processo [cf. 68º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal].”
No presente caso, os recorrentes entendem que, “promovendo o MºPº a aplicação da medida de coacção – prisão preventiva – e em que a defesa se oponha, contraditando os argumentos apresentados e aduzindo outros, novos, o juiz deverá fundamentar o seu despacho por forma que resulte desse despacho que ponderou os argumentos de ambos os lados”.
Com efeito, o artigo 205º, n.º 1 da Constituição contém um imperativo de fundamentação das decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente, como
é o caso. E admite-se que, como se diz no citado acórdão, a fundamentação com enunciação pelo próprio juiz dos fundamentos de facto e de direito em que se sustenta a decisão de prisão preventiva, e que inclua uma ponderação autónoma dos argumentos apresentados pela defesa, é aquela que melhor espelha a responsabilização pessoal do juiz por essa decisão.
Tal não exclui, porém, que, em determinados casos, o juiz se possa bastar com a remissão para a promoção do Mº Pº, dados os termos em que esta se encontra formulada – podendo até, em certos casos, a descrição dos fundamentos no requerimento do Ministério Público ser mais detalhada e facilmente controlável.
No presente caso, a fundamentação da ordem de prisão preventiva ocorreu por remissão para a promoção, a cujos fundamentos o juiz aderiu. Tal adesão é, porém, ainda uma forma possível de fundamentação desta decisão judicial. A ordem de prisão surge, inequivocamente, como uma decisão pessoal do juiz, e cujos fundamentos são controláveis. Podem ser apurados e controlados pelo confronto com essa promoção.
Aliás, a decisão ora recorrida – o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – entendeu que o despacho de primeira instância estava “devida e suficientemente fundamentado por remissão para a douta promoção do MºPº, já que a decisão proferida aparece inteiramente justificada face aos elementos, fácticos e jurídicos, adrede considerados e respeitantes a cada um dos recorrentes”
(itálico aditado).
Pode, pois, reiterar-se o julgamento de não inconstitucionalidade da norma em questão, efectuado pelo Acórdão n.º 189/99 (e v. também, no mesmo sentido, o Acórdão n.º 223/98, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 39º vol.,
1998, pág. 337).
7.Por último, os recorrentes impugnam a constitucionalidade da interpretação do artigo 204º, alínea c) do Código de Processo Penal segundo a qual a prisão preventiva se pode fundamentar nos “perigos” aí enunciados. Isto porque – argumentam – “a defesa destes perigos não constituem [sic] medidas cautelares do processo”:
“a utilização da prisão preventiva para fazer face aos perigos de continuação da actividade criminosa e perturbação da ordem e tranquilidade pública, constituem medidas extra processo que tem mais a ver com a defesa social e prevenção geral.” Dispõe o artigo 204º, alínea c) do Código de Processo Penal:
“Nenhuma medida de coacção prevista no capítulo anterior, à excepção da que se contém no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar:
(…) c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.”
Como se pode ver, esta norma exige a verificação em concreto do perigo de continuação da actividade criminosa, para a imposição da medida de coacção, incluindo (subordinada aos requisitos específicos do artigo 202º do Código de Processo Penal) a de prisão preventiva.
A imposição desta medida de coacção, com base nos perigos referidos no preceito citado, é apurada, pois, obviamente, num processo concreto, existindo (nos termos do citado artigo 202º, nº 1, alínea a)) “fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos” –, indícios, estes, porém, que não são só por si suficientes, sendo ainda necessária, como exigência do princípio da necessidade da medida, a verificação dos requisitos gerais do artigo 204º, alínea c).
Não estão, pois, em causa – nos termos da norma impugnada, que se refere à verificação concreta destes riscos – quaisquer abstractas preocupações, ditas
“extra-processuais”, de defesa social ou de prevenção geral. Assim, por exemplo, no presente caso, foi invocado o concreto perigo de continuação da actividade criminosa – tráfico de estupefacientes – e não qualquer abstracta preocupação de combate ao crime pelo qual estão a ser investigados os recorrentes.
A relevância de tal concreto perigo para a medida de prisão preventiva – verificados os seus restantes requisitos – não é contrária a qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente, aos consagrados nos artigos 27º e 28º da Constituição da República. E a norma do artigo 204º, alínea c) do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de invocação em concreto, num certo processo, da verificação dos perigos aí referidos poder servir para fundamentar a opção pela medida de coacção de prisão não é, pois, inconstitucional.
III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento do presente recurso relativamente à norma do artigo
215º do Código de Processo Penal; b) Negar provimento ao recurso quanto às normas dos artigos 97º, n.º 4, 141º, e 204º, alínea c) do Código de Processo Penal. c) Condenar os recorrentes em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 30 de Julho de 2003 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos