Imprimir acórdão
Proc. n.º 794/02
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
A – O relatório
1 - A., recorrida nestes autos, veio requerer a aclaração do acórdão deste Tribunal Constitucional, abonando-se, em síntese, na fundamentação que, na parte mais impressiva, aqui se deixa transcrita:
«A - [...]
[...] Prescreve expressamente o n.º 2 do art.º 18º da CRP que 'a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos'. Sucede que, No douto acórdão referido, depois de se afirmar que tal direito à justa indemnização é um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, acrescenta, no que concerne a restrições, a segunda parte do que prescreve aquele n.º 2 do art.º 18º.
Todavia, Esqueceu de mencionar o que, muito clara e expressivamente, se prescreve na 1ª parte daquele mesmo n.º 2 do art.º 18º, esquecimento esse provocado necessariamente pelo facto de a Constituição da República em parte alguma prever qualquer restrição àquele direito fundamental da justa indemnização, consagrado no n.º 2 do seu artigo 62º.
[...]
B - [...]
[...]
A definição de solo apto para a construção, constante das várias alíneas do n.º
2 do artigo 24º, responde, pois, às exigências feitas pelo principio constitucional da justa indemnização, consagrado no artigo 62º n.º 2 da Lei Fundamental.
Ora,
Desta última passagem transcrita resulta que 'solo apto para a construção' é:
a) O que dispõe de acesso rodoviário e de rede de abastecimento de água, de energia eléctrica e de saneamento, com características adequadas para servir as edificações nele existentes ou a construir;
b) O que pertença a núcleo urbano não equipado com todas as infra-estruturas referidas na alínea anterior, mas que se encontre consolidado por as edificações ocuparem dois terços da área apta para o efeito;
c) O que esteja destinado, de acordo com plano municipal de ordenamento do território plenamente eficaz, a adquirir as características descritas na alínea a);
d) O que, não estando abrangido pelo disposto nas alíneas anteriores, possua, todavia, alvará de loteamento ou licença de construção em vigor no momento da declaração de utilidade pública.
Assim,
E para além do que se contem ainda no n.º 3 do citado art.º 24º do CE/91, os solos com as características referidas nas alíneas a) e b) do n.º 2 daquele art.º 24º são, só por isso e sem mais, considerados solos aptos para construção,
O que,
Em nosso modesto entender está em manifesta contradição com o que o douto acórdão que antecede diz imediatamente antes:-
Tal, porém, só acontece, quando essa potencialidade edificativa seja uma realidade, e não também quando seja uma simples possibilidade abstracta sem qualquer concretização nos planos municipais de ordenamento, num alvará de loteamento ou numa licença de construção - afirmação, aliás, repetida noutra parte do aludido acórdão.
Na verdade,
Os casos da aptidão construtiva que resultarem dos casos previstos na al. c) -- plano municipal de ordenamento do território -- e na al. d) - alvará de loteamento ou licença de construção - são situações que nada têm a ver com as referidas nas antecedentes als. a) e b) do mesmo n.º 2 do art.º 24º.
Ora,
Se o douto acórdão afirma, imperativa e inequivocamente, que a definição de solo apto para a construção, constante das várias alíneas do n.º 2 daquele citado art.º 24º, responde às exigências feitas pelo principio constitucional da justa indemnização, consagrado no art.º 62º, n.º 2 da CRP,
Como
Explica que a restrição inserta no n.º 5 do referido art.º 24º, que não está expressamente prevista na Constituição, possa ser considerada constitucional e, por isso, não ofensiva da 1ª parte do n.º 1 do art.º 18º da CRP ?
É que,
Quer se queira quer não, é este n.º 5 do art. 24º que dita a solução adoptada no precedente acórdão.
[...]
Não pode retirar-se a um terreno com as características da al. a) do n.º 2 do art.º 24º a sua capacidade de solo apto para a construção, para efeitos do pagamento da justa indemnização no caso de expropriação, só porque uma lei vem restringir este direito sem que tal restrição tenha sido minimamente prevista na Lei Fundamental.
C - A razão de ser das sequelas da classificação de um terreno como Reserva Agrícola Nacional, como da respectiva lei se colhe, é a de se pretender impor que tais terrenos sejam mantidos como exclusivamente aptos e destinados à produção agrícola.
Na verdade,
O próprio art. 1º do Dec.-Lei nº 196/89, de 14.06, reza o seguinte:
O presente diploma visa defender e proteger as áreas de maior aptidão agrícola e garantir a sua afectação à agricultura, de forma a contribuir para o pleno desenvolvimento da agricultura portuguesa e para o correcto ordenamento do território.
Assim,
Este preceito, conjugado ainda com o preâmbulo do respectivo decreto-lei, mostra inequivocamente que com a RAN se quis apenas garantir a afectação dos respectivos terrenos à agricultura.
Por isso,
Se o Governo, ao declarar a utilidade pública da expropriação de um desses terrenos para nele se construir seja o que for, está a pôr termo à 'vinculação funcional',
Cremos que,
É óbvio que, em respeito pelo direito fundamental da justa indemnização, terá tal terreno, para efeito da expropriação, de ser classificado como solo apto para a construção se enquadrável numa qualquer das várias alíneas do n.º 2 do art.º 24º do CE/91.
Assim,
Se um terreno enquadrável numa das situações previstas nas alíneas a) ou b) do n.º 2 do art. 24º do CE/91 for objecto de declaração de utilidade pública para nele ser construída uma estrada ou uma auto-estrada,
Porque
É que ele, no dizer do referido acórdão, já não pode ser considerado apto para a construção ?
Com efeito,
Se a própria declaração de utilidade pública refere a construção de um estrada, como se explica tal ?
Será
que,
Rasgar uma estrada ou edificar uma central de incineração não são actos de construção ?
Aliás,
O Código das Expropriações fala expressamente em solos aptos para a construção, e isso significa necessariamente que o termo construção foi aí usado no seu sentido amplo e não no sentido restrito de mera edificação.
Por isso,
Nem a existência dos Acórdãos neste referidos e a que adere são razão bastante para que se não reflicta devida e cuidadamente na situação e se altere um percurso que se terá de verificar errado.
[...]
D - A requerente não é licenciada em Direito nem tem dele conhecimentos específicos, pelo que há situações que ela não poderá jamais compreender e aceitar.
Na verdade,
Ela sabe que contra si correu um anterior processo de expropriação de uma parcela de terreno destacada do mesmo prédio donde foi destacada a ora em causa,
E que,
Apesar dos recursos jurisdicionais levados a cabo pela expropriante até à última instância permitida, o Tribunal de Relação, essa parcela (inserida também na RAN) foi considerada como terreno apto para a construção e paga como tal.
Ora,
Será que os tão falados princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça serão minimamente respeitados quando a requerente verificar que, no domínio da mesma legislação, duas situações exactamente iguais poderão vir a ter tratamentos diferentes e desiguais ?».
2 - O recorrente ICOR-INSTITUTO PARA A CONSTRUÇÃO RODOVIÁRIA respondeu ao pedido de aclaração, defendendo o seu indeferimento, já que “os requerentes, salvo o devido respeito, não pretendem qualquer esclarecimento, mas a modificação do julgado”.
B – A fundamentação
3 - A aclaração justifica-se quando uma decisão é obscura ou ambígua
[art.º 669º, n.º1, alínea a) do Código de Processo Civil, aplicável ao processo constitucional por via do disposto no art.º 69º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro]. A decisão é obscura quando o seu texto não permite entender o pensamento do julgador. É ambígua quando a decisão comporta mais de um sentido.
Como diz Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, págs.
151), “n[N]um caso, não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”. Acompanhando Fernando Amâncio Ferreira (Manual dos Recursos em Proceso Civil, 3ª edição, 2002, págs. 45/46) “Sendo função da aclaração iluminar algum ponto obscuro da decisão, através dela apenas se pode corrigir a sua forma de expressão e não modificar o seu alcance ou o seu conteúdo”.
4 - Ora examinado o pedido de aclaração, cujos fundamentos mais salientes se deixaram acima reproduzidos, constata-se que a recorrida não questiona a compreensão do discurso decisório em que se expressa o acórdão. Em ponto algum do seu requerimento ela coloca ao tribunal uma questão de interpretação do seu texto e a respectiva inteligibilidade. Senão vejamos, relativamente às diversas alíneas em que a recorrida subdivide esse seu requerimento. No que concerne à parte A. O que a recorrida sustenta é que o acórdão se
“esqueceu de mencionar, o que, muito clara e expressivamente, se prescreve na 1ª parte daquele mesmo n.º 2 do art.º 18º, esquecimento esse provocado pelo facto da Constituição em parte alguma prever qualquer restrição àquele direito fundamental da justa indemnização, consagrado no n.º 2 do seu art.º 62º”, o que a ser considerado levaria a conclusão diferente. O vício que imputa ao acórdão
é, assim, um erro de julgamento. No que diz respeito à alínea B. A recorrida, partindo da afirmação constante do acórdão de que “a definição de solo apto para a construção, constante das várias alíneas do n.º 2 do art.º 24º, responde, pois, às exigências feitas pelo princípio constitucional da justa indemnização, consagrado no art.º 62º, n.º 2 da Lei Fundamental”, apresenta-se, simpliciter, a defender que “solo apto para construção” é [apenas] aquele que é referido nas várias alíneas desse n.º 2 do art.º 24º do C. E./91 e que “não pode retirar-se a um terreno com as características da alínea a) do n.º 2 do art.º 24º [em que se incluirá o terreno em causa] a sua capacidade de solo apto para a construção, para efeitos do pagamento da justa indemnização no caso de expropriação, só porque uma lei vem restringir este direito sem que tal restrição tenha sido minimamente prevista na Lei Fundamental”, e a concluir por esta via de raciocínio, ao contrário da solução achada no acórdão aclarando, pela inconstitucionalidade do n.º 5 do mesmo artigo. A recorrida intenta, pois, demonstrar a existência de um erro de julgamento e a alteração do julgado. Relativamente à alínea C. Neste item do seu discurso, a recorrida pretexta, em resumo, que “a razão de ser das sequelas da classificação de um terreno como Reserva Agrícola Nacional [...] é a de se pretender impor que tais terrenos sejam mantidos como exclusivamente aptos e destinados à produção agrícola” e que, sendo assim, o respeito pelo direito fundamental da justa indemnização implica que esse terreno deva ser tido como “solo apto para a construção” quando destinado à construção de uma estrada ou a uma central de incineração. Do mesmo passo a recorrida se bate, pois, por uma outra solução do caso, suportada num suposto erro de julgamento deste Tribunal. Finalmente, quanto à alínea D. No segmento discursivo integrado nesta parte do requerimento, a recorrida faz a afirmação de que num anterior processo de expropriação relativo a uma outra parcela de terreno destacada do mesmo prédio, o Tribunal da Relação a considerou como terreno apto para a construção e interroga-se sobre se os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça serão respeitados “quando a requerente [que se diz não licenciada em direito nem ter conhecimentos específicos dele] verificar que, no domínio da mesma legislação, duas situações iguais poderão vir a ter tratamentos diferentes e desiguais”. Ora, também nesta dimensão do seu requerimento o que a recorrida visiona não é qualquer aclaração mas antes que o tribunal repense a questão e modifique a decisão tomada anteriormente. Temos, assim, de concluir que o acórdão não padece de qualquer obscuridade ou ambiguidade que devam ser aclaradas e que aquilo que a recorrida se apresentou a requerer, “de uma forma oblíqua”, foi uma modificação do julgado.
C – A decisão
5. Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal Constitucional decide indeferir o pedido de aclaração.
Custas pela requerente com taxa de justiça que se fixa em 10 UC.
Lisboa, 7 de Novembro de 2003 Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos