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Proc. n.º 469/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por decisão sumária de fls. 3237 e seguintes, não se tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A., pelos seguintes fundamentos:
“[...]
4. Constitui pressuposto processual do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto no caso dos autos –, a invocação pelos recorrentes, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade normativa que pretendem ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
4.1. O artigo 72º, n.º 2, da mesma Lei concretiza tal pressuposto, ao estabelecer que esse recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
O sentido funcional que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem atribuído à exigência constitucional e legal de que a inconstitucionalidade seja invocada durante o processo tem em vista dar ao tribunal recorrido a oportunidade de se pronunciar sobre tal questão, de modo que o Tribunal Constitucional venha a decidir em recurso. Deve portanto em princípio a questão de inconstitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido.
Só em casos muito particulares, em que o recorrente não tenha tido oportunidade de suscitar a questão de inconstitucionalidade é que este Tribunal tem considerado admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre tal questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal a quo (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 232/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., p. 1119 ss).
4.2. No caso em apreciação, pretende o recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional da norma contida no artigo
188º do Código de Processo Penal, numa determinada interpretação, que identifica
(supra, 3.).
Ora, o recorrente não suscitou de modo processualmente adequado, perante o tribunal a quo, a questão de inconstitucionalidade normativa que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Assim, não admira que, na decisão recorrida (supra, 2.), não surja tratada qualquer questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 188º do Código de Processo Penal, na interpretação assinalada pelo recorrente.
Na verdade, o ora recorrente, nas alegações produzidas junto do Supremo Tribunal de Justiça (o tribunal ora recorrido), limitou-se a colocar o problema da nulidade das escutas telefónicas efectuadas (cfr. supra, 1.), o que
é substancialmente diferente de suscitar uma questão de inconstitucionalidade relativamente à norma do Código de Processo Penal que estabelece os requisitos a observar aquando da realização de escutas telefónicas. E não pode considerar-se suficiente para dar como cumprido o ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade a invocação de um ou mais acórdãos do Tribunal Constitucional que se tenham pronunciado sobre a norma que o recorrente pretende ver apreciada no âmbito do presente processo.
Apenas no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional (supra, 3.) veio o recorrente imputar a uma determinada interpretação do artigo 188º do Código de Processo Penal a violação de um preceito constitucional, o que é manifestamente extemporâneo, atendendo ao disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional e ao artigo 72º, n.º 2, da mesma Lei, já referidos.
O ora recorrente teve, no entanto, oportunidade processual de suscitar a questão de inconstitucionalidade em momento anterior ao requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional (concretamente, nas alegações apresentadas perante o Supremo Tribunal de Justiça).
Não o tendo feito, não pode considerar-se preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso – a invocação da questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo – e, consequentemente, não pode do mesmo tomar-se conhecimento.
5. Acresce que, como se assinala no acórdão recorrido, as escutas telefónicas realizadas não foram utilizadas como meio de prova no processo.
Com efeito, segundo o entendimento do Supremo Tribunal da Justiça, as escutas em causa “são nulas, por não terem sido observados os requisitos previstos no art. 188° do Cód. Proc. Penal” e, em consequência de tal nulidade,
“não podiam ser utilizadas como meio de prova pelo Tribunal”. Ora, o Supremo concluiu que “essas escutas não foram utilizadas como meio de prova no acórdão recorrido, como seguramente resulta dos seus termos”.
Por outras palavras, as escutas telefónicas realizadas não foram relevantes, no caso, para a avaliação da matéria de facto com base na qual o arguido foi condenado. O tribunal formou a sua convicção com base na prova produzida em julgamento e, designadamente, nas declarações dos diversos arguidos no processo (veja-se o acórdão proferido em 1ª Instância, fls. 2827 a 2859).
Daqui resulta que a norma impugnada no presente recurso não foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça na interpretação identificada pelo recorrente e por ele considerada contrária à Constituição (supra, 3.).
Conclui-se assim que falta um outro pressuposto processual do recurso interposto – a aplicação na decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja inconstitucionalidade se pretende submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional.”.
[...]”.
2. Notificado desta decisão, A. veio apresentar reclamação para a conferência (requerimento manuscrito de fls. 3248 e seguintes), de acordo com o disposto no n.º 3 do art. 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1 – Todo o processado tem por base uma operação policial determinada, exclusivamente, pelo recurso a informação veiculada em escutas telefónicas, como decorre de nenhuma prova haver sido carreada para o processo no período que medeia entre legal autorização de escutas e operação policial detentiva e apreensiva, o que é corroborado pelos responsáveis da operação policial [...].
2 – Escutas telefónicas cuja transcrição [...] somente veio a ocorrer já em adiantada audiência de discussão e julgamento, em afronta à legislação então invocada, também aos acórdãos então oferecidos aos autos [...].
3 – Com a ordem de transcrição integral das escutas se dando estas por integralmente relevantes, ainda que por decisão proferida por jurisdição incompetente para a prática do acto.
4 – Assim se confirmando a alegada contaminação de todo o processado subsequente, quer quanto à operação policial, quer quanto às detenções e apreensões, reafirme-se, com violação do dispositivo legal invocado, seja do CPC seja de jurisprudência quase uniforme, então profusa, remissiva e oportunamente junta aos autos.
5 – De tudo decorre, ao contrário do decidido neste Tribunal, que o arguido
[...] cumpriu o formalismo [...].
[...]”.
3. O Ministério Público, notificado para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, respondeu (fls. 3255):
“1 – A presente reclamação carece de fundamento.
2 – Na verdade – e como se acentua na douta decisão impugnada – a questão de constitucionalidade, atinente à norma do artigo 188º do Código de Processo Penal, está obviamente precludida, já que o acórdão recorrido é perfeitamente claro no sentido de que tais provas – obtidas mediante escutas telefónicas viciadas por nulidade – não foram valoradas pelas instâncias, como fundamento da condenação do recorrente.
3 – Não sendo, deste modo, sequer “parte vencida” o recorrente no que respeita
às questões da invalidade de tal meio de obtenção de provas.”
Cumpre apreciar e decidir.
4. A decisão de não conhecimento do recurso, proferida nos autos, assentou em dois fundamentos: na não invocação pelo ora reclamante, de modo processualmente adequado, perante o tribunal a quo, da inconstitucionalidade da norma que agora pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional – a norma do artigo 188º do Código de Processo Penal, numa certa interpretação; na circunstância de a norma impugnada no presente recurso não ter sido aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça na interpretação identificada pelo recorrente e por ele considerada contrária à Constituição, já que as escutas telefónicas realizadas não foram relevantes, no caso, para a avaliação da matéria de facto com base na qual o arguido foi condenado.
4.1. Na reclamação deduzida, o ora reclamante afirma ter invocado nos autos legislação e jurisprudência que teria sido violada pelo tribunal.
Todavia, como se afirmou claramente na decisão sumária reclamada, essa “invocação” mencionada pelo reclamante não é suficiente para dar como verificado o pressuposto processual exigido nos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e
72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional: a suscitação, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade que se pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional.
4.2. Para além disso, o reclamante vem, uma vez mais, arguir a nulidade das escutas telefónicas realizadas no processo, que, em sua opinião, determinaria a
“nulidade de todo o processado subsequente”.
Sucede que, como se disse na decisão sumária reclamada, o Supremo Tribunal da Justiça entendeu que as escutas em causa “são nulas, por não terem sido observados os requisitos previstos no art. 188° do Cód. Proc. Penal” e, em consequência de tal nulidade, “não podiam ser utilizadas como meio de prova pelo Tribunal” (supra, 1.). Trata-se portanto de questão em relação à qual o reclamante nem sequer pode considerar-se “parte vencida”, tal como sublinha o Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu parecer (supra, 3.).
Indiscutível é, porém, que a apreciação de tal questão excede a competência do Tribunal Constitucional.
4.3. Finalmente, o ora reclamante insiste em que, quer a operação policial realizada, quer as detenções e apreensões a que se procedeu no processo, violaram “o dispositivo legal invocado, seja do CPC seja de jurisprudência quase uniforme, então profusa, remissiva e oportunamente junta aos autos”.
Tal argumentação revela com clareza que se pretende afinal submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional as decisões proferidas no processo e não qualquer uma das normas em que se fundamentou a decisão recorrida.
Todavia, como o Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente, o controlo de constitucionalidade que, nos recursos das decisões dos outros tribunais, a Constituição e a lei cometem ao Tribunal Constitucional é um controlo normativo, que apenas pode incidir, consoante os casos, sobre as normas jurídicas que tais decisões tenham aplicado, não obstante a acusação que lhes foi feita de desconformidade com a Constituição, ou sobre as normas jurídicas cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento em inconstitucionalidade.
As decisões judiciais, consideradas em si mesmas, não podem, no sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de tal controlo.
É assim manifesto que a reclamação apresentada não invoca qualquer razão susceptível de pôr em causa os fundamentos da decisão sumária reclamada.
Nada mais resta, pois, do que confirmar o decidido.
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 22 de Julho de 2003
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos